É possível uma sociedade leitora?

Post Author

Leer Iberoamérica Lee 2022

Quando, há 5 anos, nos juntamos para propor o Seminário Leer Iberoamérica Lee à feira do Livro de Madrid, estávamos convencidos da enorme contribuição que as experiências dos países da América latina poderiam representar para Espanha e para outros países europeus.

Países historicamente leitores, e apesar de estarem sofrendo os efeitos provocados pela contemporaneidade nas práticas de leitura, a promoção da leitura e a formação de leitores ali nunca se apresentaram como questões da mesma forma que para nós, latino-americanos. A existência de bibliotecas, o acesso aos livros, o preço de venda e até a sua difusão são incomparáveis. Enquanto na América Latina a luta ainda é pelo direito à leitura e à literatura, os europeus têm – ou tinham – isso garantido. Evidentemente os problemas existem, mas são de outra ordem, uma vez que o acesso ao livro pode não ser uma questão para a grande maioria da população. 

Nesse sentido, as temáticas abordadas ao longo dos últimos anos no Seminário Ler Iberoamérica Lee contribuíram para o compartilhamento de referências teóricas e práticas que, cada vez mais fortemente, evidenciaram o caráter histórico social da leitura. Dito de outro modo: como a leitura, a literatura e a formação de leitores podem se constituir em um importante fator de emancipação de acordo com o tecido social em que se inserem?

Nada de novo até aqui, ainda que o passo para mistificar o poder da leitura e da literatura seja curto. Daniel Goldin já dizia que, entre os quadros nazistas, a leitura era uma prática, eles eram grandes leitores, assim como fruidores de manifestações artísticas elevadas. Podemos também pensar nas políticas e na força das bibliotecas nos EUA, materialmente de fazer inveja a qualquer país, mas que deixam muitas dúvidas sobre seu poder de transformação social. Nesse país, que condensa todas as contradições da sociedade capitalista de forma extrema, o acesso aos livros está garantido, há bibliotecas, há livros e, no entanto, assistimos horrorizados a uma sucessão de eventos racistas, bárbaros, motivados por um profundo individualismo e negação sistemática do Outro/a.

A potência e a força que a leitura representa nos países da América Latina esteve fortemente marcada ao longo dos quatro anos do Seminário, aumentando os contrastes em cada edição. Nesta última, estes ficaram mais evidentes, o que permite pensar em um grande desconhecimento de uma parte do público europeu de nossas realidades e de tudo o que vem ocorrendo em termos de recuos e avanços em nossos países. Talvez pela distância, não fique claro o significado e a força dos movimentos sociais afirmativos (assim como nas últimas eleições chilenas e colombianas) que essas conquistas por visibilidade têm para a sua base, para o avanço das lutas antirracistas e contra as profundas desigualdades e injustiças impostas à imensa maioria constituída – não por acaso por negras, negros e indígenas.

Nesta última edição de Leer Iberoamérica Lee – É possível uma sociedade leitora?, as participações de Vélia Vidal (Colômbia), Gabriela Wiener (Peru) e Bruno Souza, Janine Durand e Ketlin Santos (Brasil) marcaram a distância entre as experiências com a leitura nesses países da América Latina.

Além das semelhanças existentes, sua identidade decorre do terreno social onde a leitura se desenvolve e se destaca como uma força emancipadora. De um lado, o Chocó, no Pacífico colombiano, uma das regiões mais pobres e abandonadas do país, onde se concentra a maior população afrodescendente colombiana (lembrando que a Colômbia é um dos países mais racistas da América Latina, o que nos dá a dimensão do significado da eleição de Francia Marques como vice presidenta).

No caso do Brasil, a participação de Bruninho e Ketlin, como representantes da Biblioteca Caminhos da Leitura de Parelheiros, mostrou a força e a potência de um projeto que, tendo como eixo a leitura, se enraíza na comunidade, abraçando uma multiplicidade de ações que permitem pensar e lutar por uma vida digna, tanto material como cultural. Em Parelheiros, pela leitura, se chega aos cuidados dos bebês, das mulheres grávidas, pelas mãos cuidadosas das mães mobilizadoras, na Casa do Meio do Caminho, e pelo livro Nascidos para ler no melhor lugar para se nascer. Chega-se também à agricultura e a uma alimentação saudável. A leitura age como eixo para resgatar e afirmar a comunidade, o coletivo, a prática genuína da igualdade que rompe com o silêncio e abre para olhares mais amplos e afirmativos, tão necessários para garantir os direitos e a vida.

Nesta edição, falou-se de muitos temas importantes: desde a era das incertezas e do desconhecimento, à literatura como ato fundador de humanidade; da leitura para todos, como direito – pois, como disse Vélia, “nossa gente tem o direito à imaginação”. À pergunta “que leitor queremos?”, Bruno contrapôs: “Que leitor não queremos?” E afinal, “que mundo queremos?”. Falou-se em leitores contagiados por meio dos afetos, e mais uma vez foi reafirmada a importância de, nas palavras de Jorge Larrosa, “uma escola para todos em geral, e ninguém em particular”, “uma escola mais lenta, disponível para a escuta, onde sejam introduzidas muitas linguagens e trabalhada a complexidade, tratando o mundo na escola” – nas palavras de Inês Dussel. Sua fala terminou com uma reflexão sobre palavra e poder, sobre a ausência de palavras que possam nomear os nossos tempos.

Sara Bertrand estabeleceu uma conexão entre escrita, leitura e memória como atos de resistência. E Janine Durand, numa intervenção de tirar o fôlego, falou sobre a importância dos clubes de leitura, em especial dos clubes de leitura nas prisões, como trincheiras literárias. Falou do papel de retaguarda que todas e todos aqueles que, privilegiados, devem estar, lado a lado, com os movimentos sociais. Palavras incisivas que, com suavidade, assim como Vélia, colocaram o dedo em todas as feridas abertas, não deixando espaço para meias palavras, evasões ou ambiguidades. 

José Miguel Wisnick participou à distância, com uma fala esclarecedora sobre a força da literatura. Sua reflexão se centrou em como a ficção lida com o Eu – o Eu como um Outro – a literatura oferece a possibilidade de habitar um Outro que não é Eu. Esse movimento de obliquação, só a literatura é capaz de promover, a abertura transversal para o outro que permite constituir mundos abertos, pontes. Este, contudo, não é o único movimento possível; também existem narrativas toscas, brutas, nas quais o Outro passa a ser alvo, em que, em vez de se construir pontes, instala-se uma cultura de violência que transforma as palavras em tiros de ficção. Ao contrário da obliquação – possibilidade de experimentar o Outro –, esta inversão o anula, invisibiliza, liquida. Vivemos nesses tempos, em que as fake news subvertem a realidade, criando um mundo onde as palavras perdem seu sentido e se instalam como armas de uma guerra contra todos os avanços e conquistas.

A profundidade da crise que toma conta de muitos países da América Latina certamente não é fácil de entender, mas seus efeitos são arrasadores: como é viver em países onde a morte sistemática de jovens negros faz parte do cotidiano? Ou onde o Estado se baseia numa proposta de destruição e aniquilamento? Ou onde presos convivem em condições subumanas? Ou onde mais de 33,1 milhões de pessoas passam fome, como é o caso do Brasil? Onde milhares de famílias são obrigadas a abandonar suas casas, por não ter mais condições de pagar aluguel? Onde milhares de crianças e jovens de escolas públicas, durante a pandemia, não tiveram acesso às aulas on-line, o que já representa um atraso de pelo menos dois anos em relação aos alunos das escolas privadas, uma geração perdida, que representa um crescimento do abismo já provocado pela desigualdade? 

Nós (que somos “a favor da vida”, como disse Vélia no Seminário, e que temos e acreditamos em projetos de transformação social, na guerrilha literária) queremos spe – raiz latina de esperança que significa “expandir, ter êxito, levar adiante” – para nossos projetos. Sem ela, seria impossível viver em nossos países, mas acredito que não só. Seria impossível apostar nos projetos e ações que apontem para um futuro, no qual a descolonização dos olhares, o combate ao racismo e a desigualdade são condições para sua realização. 

Esperançar, esse é o verbo, como diria Paulo Freire, que move a todas e todos que trabalham em favor da democratização do direito à leitura, que acreditam na guerrilha literária. Leer Iberoamérica Lee tem construído e tecido, ao longo destes quatro anos, pontes e redes, numa forte aposta no direito à leitura literária como forma de resistência para a conquista de visibilidade e afirmação de identidades. Trincheiras literárias para combater os tiros de ficção de aniquilação da vida.

Nota

[1] O Seminário Internacional Leer Iberoamérica Lee é uma iniciativa da colaboração entre o Laboratorio Emília de Formação [fruto da parceria entre Inês Miret (Neturity) e Dolores Prades (Instituto Emília)] com José Castilho (Jose Castilho Consultores). Na sua 4 edição, foi tratado o tema E possível uma sociedade leitora? Todos os seminários estão disponíveis no site https://leeriberoamericalee.com/.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

Artigos Relacionados

BCBF24 | Projeto de promoção de leitura de crianças indígenas na Austrália ganha o prêmio ALMA 2024

Leitura – direito da cidadania para todos

Quando a história é outra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *