Em busca de uma educação estética

Post Author
SaraBernard@gmail.com Bertrand Sara

Vamos testar a palavra “repetição” e o lugar que ela ocupa na história do pensamento, pois relacionamos “repetição” com generalidade ou similaridade, pensamos em simetrias, “eu vivi isso”, “meus pais/avós me disseram isso”. Mas, como afirma Deleuze, “a generalidade expressa um ponto de vista segundo o qual um termo pode ser trocado por outro, pode substituir outro (…) A repetição, por outro lado, é uma conduta necessária e fundamentada apenas com relação ao que não pode ser substituído. A repetição como comportamento e como ponto de vista diz respeito a uma singularidade que não é intercambiável, insubstituível”.

Nossa vida cotidiana contribui para o mal-entendido, porque em inúmeras ocasiões sentimos que já passamos por algo assim e reafirmamos essa ideia, mas a repetição implica ir ao coração daquilo que se repete, um poema só pode ser repetido se for aprendido de cor, não é possível imitar a alma, clonar um coração. Não há repetição na arte, mesmo que as semelhanças façam parte de sua história. Walter Benjamin observou que o que foi feito por seres humanos sempre pode ser refeito por outros seres humanos. Um artista descobre uma nova forma de linguagem e ela é imitada -reproduzida- até que o tédio se instale; mas o poema original requer esse coração e esse sangue, sem eles, haverá apenas o “cheiro” ou o “gosto” de algo familiar.

Por que perguntar sobre a repetição quando falamos de leitura? O que a repetição tem a ver com a sala de aula e a literatura? Por que pensar sobre seu lugar em nossas vidas? A resposta curta seria “porque vivemos aprisionados por nossos hábitos”. O difícil é dar espaço para a novidade ou a dúvida, lutar contra nossos hábitos, as categorias com as quais ordenamos o mundo são mais confortáveis do que questionar os porquês, então a repetição surge como um mecanismo natural. Um espaço que contém o belo e o feio, funciona como um arquivo, nossa maneira conhecida de resolver o presente. Recorremos à nossa memória toda vez que precisamos resolver um problema, forçados a não esquecer, “lembre-se, elabore a memória para não repetir”, disse Freud, mas nem sempre procuramos a memória que cura, mas o hábito.

Ler sobre a memória é entrar em histórias particulares, pessoais, muitas vezes invisíveis, aquelas que não estarão representadas na linha do tempo que as escolas ensinam – data de tal e tal batalha ou tal acordo – porque não pertencem a nenhuma história oficial, mesmo quando testemunham isso; mas essa memória que permite o reencontro com o outro e funciona como um mecanismo de sobrevivência, às vezes atua como uma armadilha de linguagem, porque, embora tenha semelhanças com o passado, nossa experiência nunca será uma repetição e nós a enfrentamos como se fosse.

Não há repetição possível em nossas vidas, mas mesmo assim – a menos que ocorra algo tão vertiginoso e sem precedentes como o acidente nuclear em Chernobyl, um espaço do qual não há registro – tendemos a invocar a memória. A repetição, então, é formulada à moda nietzschiana, como uma condenação do hábito. O mito do eterno retorno torna-se a repetição como um pensamento do futuro, um jogo de memória.

Daí a importância de uma educação estética.

Em outras palavras, ler e pensar, ler e imaginar.

A relação entre arte e repetição não é caprichosa, a arte é o oposto de qualquer ideia preconcebida, ela mostra a singularidade e a diferença, a possibilidade certa de observar a matéria e refletir sobre as respostas. Seu território é a novidade, a busca por representações e formas que não podem ser classificadas ou categorizadas, sempre no contexto da criação, do que se origina e aspira a essa origem. O oposto é a mumificação da linguagem, do pensamento, a morte. O terreno da arte é a vida, mesmo quando ela se propõe a representar o horror, a morte ou o vazio. Mesmo quando é uma repetição da repetição, como fez Warhol.

E então ficamos chocados quando, diante de problemas de vários tipos, a lógica da guerra e sua linguagem surgem como uma resposta natural. O caso de Chernobyl talvez seja o mais triste, pois, como sabemos hoje, essa forma militar de resolver o problema gerou uma crise ambiental e de saúde que é um dos capítulos mais horríveis da história do século XX e cujas consequências estarão presentes no planeta pelos próximos séculos. À distância, as respostas ao alerta sanitário da Covid-19 foram semelhantes: estado de emergência, militarismo, restrição de liberdade, guerra contra um “inimigo invisível”, “linha de frente”, “heróis”, “venceremos”.

Para sair desse círculo infernal e não pensar nos eternos retornos como expressões de vontades de poder como imaginava Nietzsche, essa luta perpétua que arrasta a humanidade em ciclos que vão do autoritarismo à democracia, do genocídio aos refugiados, dos presos políticos à doença contagiosa, é preciso olhar de outra forma, imaginar outra resposta. Em outras palavras, manter o espírito artístico.

Na curiosidade demonstrada por crianças e adolescentes, há um círculo virtuoso que devemos incentivar.

Suas energias são recarregadas com novas ideias e formas, e se é verdade que um poema só pode ser repetido se for aprendido de cor, podemos ter certeza de que o mesmo acontece com o espírito das crianças e dos jovens. Não é possível imitar seu sangue, esse tipo de fogo, devemos lhes garantir espaços para a criação. Essa energia que se renova (inquietação, raciocínio e criação), no futuro, proporcionará uma saída do círculo infernal da repetição. Não se trata de exultar a juventude a ponto de afirmar que tudo o que ela propõe é bom, nem que tudo o que é novo é bom. Trata-se de reconhecer o espaço que a dúvida tem no desenvolvimento de nossos povos e indivíduos. Cada época tem seus problemas, mas também suas formas de resolvê-los. O interessante é lembrar que a educação ocupa um lugar essencial em termos de saúde do pensamento. Se não procurarmos imaginar, no sentido artístico mais amplo, outra maneira de resolver o presente ou de digerir o passado, dificilmente será uma educação que contribuirá para o futuro histórico. Como Le Guin apontou, “o exercício da imaginação é perigoso para aqueles que se aproveitam do estado das coisas porque tem o poder de demonstrar que o estado das coisas não é permanente, nem universal, nem necessário”. Alongando as coisas, poderíamos dizer que uma educação que esquece o tipo de energia presente em uma sala de aula fracassa.

Voltemos aos nossos minutos de leitura, àqueles momentos em que ficamos presos em um livro, muitas vezes, lemos para lembrar, para afirmar “isso aconteceu” e voltamos aos livros com esse impulso, para conhecer essa história, para elaborar essas respostas, mas repetimos, porque não consideramos que essa memória particular pode ter uma resposta geral, que as perguntas implícitas em um livro também podem ser as nossas. A desconfiança, o ressentimento ou o horror ocorrem, a luz e a escuridão, os indivíduos e as sociedades oscilam entre os dois. Não é possível ler o presente com os olhos do passado, devemos ler com a consciência dessas feridas. Essa é a importância do relato escrito: traduzir as nuances para que a memória chegue até nós com todo o seu poder e mistério.

Como acontece na vida das pessoas, de tempos em tempos, as trevas voltam a assombrar nossas sociedades, reativam delírios, posições extremas e ninguém entende nada, porque só quem grita mais alto é ouvido e o barulho povoa tudo e parece que vamos enlouquecer em meio a esses fogos cruzados, um contra o outro, todos contra todos. Enquanto isso, os livros continuam nas prateleiras, lembrando que um dia elaboraram aquele trauma, narraram aquela ferida, mas nós não ouvimos, esquecemos que uma biblioteca reúne conversas e lemos como se pertencessem a um museu de variedades, de coisas que aconteceram e que não têm nada a ver com o mundo que habitamos, como se as palavras não tivessem nada a ver com nossa raça, nossa espécie, como se não soubéssemos que os seres humanos começaram a lutar por aquele pedaço de terra, desconfiando do outro. Nós nos preparamos e estocamos, sem nos preocuparmos com o fato de que acumularemos mais do que precisamos, porque talvez amanhã. Ouvimos e escutamos, mas permanecemos surdos, não o suficiente para entender que essas palavras não foram escritas em vão, que elas estão lá como uma saída e que nossos discernimentos podem ser diferentes. Uma biblioteca oferece a possibilidade de olhar do alto daqueles que passaram pelo fogo, pela miséria, reconheceram seus mortos, assumiram sua história.

No livro Patos e leões-marinhos – Conversas sobre literatura e juventude, faço um convite para abordar a leitura com outros olhos, até mesmo com esperança, porque as palavras estão lá, também testemunhos, experiências de vidas únicas e irrepetíveis, e, talvez, se as abordarmos reconhecendo seu poder inovador, a possibilidade que elas têm de gerar perguntas em nossas crianças, adolescentes e jovens, entenderemos que qualquer educação deve começar com o desejo de que cada aluno conheça a si mesmo, conheça seu ambiente, o espaço que habita, conheça seus colegas e deseje loucamente oferecer novas respostas ao mundo.

Texto originalmente apresentado no encontro realizado por ocasião do 1º Festival Literário da Secretaria Municipal de Educação – Fli Sampa, agosto de 2023.

Imagem: Detalhe de obra exposta na Mostra DRIFT – Vida em coisas, de 2007. Bronze fosforoso, luz de LED, sementes de dente-de-leão, domo de vidro.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Sara Bertrand

    Sara Bertrand vive e trabalha em Santiago do Chile. Estudou História e Jornalismo na Universidad Católica de Chile, onde lecionou no curso "Apreciação estética de livros juvenis" no diplomado homônimo da Facultad de Filosofía y Humanidades. Escreve para a Fundación La Fuente e ministra oficinas no Laboratório Emília. Foi vencedora do New Horizons Bologna Ragazzi Awards 2017 com La mujer de la guarda (Babel, 2016); do White Ravens 2017 com No se lo coma (Hueders, 2016); da Medalla Colibrí 2019, com o Manifiesto literal, mujeres impresas (Planeta, 2018); do Prêmio Banco del Libro de Venezuela 2016 com Cuando los peces se fueron volando (Tragaluz, 2015), e em 2018, com La mujer de la guarda. Foi traduzida para o francês, catalão, italiano e português. Seus últimos livros são Afuera (2019, Emecé) e A mulher da guarda (Solisluna/Selo Emília, 2018) – este último tendo obtido o Selo de Distinção da Cátedra UNESCO no Brasil, em 2019.

    SaraBernard@gmail.com Bertrand Sara

Artigos Relacionados

Forma e sonho

MairaLacerda@revistaemilia.com Lacerda Maíra

Jemmy Button

YnaiaBarros@revistaemilia.com Barros Ynaia

Migrar

ElenaPoniatowska@revistaemilia.com Poniatowska Elena

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *