Esperança em forma de literatura

Post Author
christianemaia@emilia.org.br

Cada um de nós é constituído, em parte, por sua ancestralidade. Traços biológicos, históricos e culturais que nos constituem e nos conectam com a comunidade a que pertencemos. Penso que a maneira com que nos relacionamos com o mundo e intervimos nele tem, em muitas medidas, uma forte relação com a forma como nos relacionamos com a herança cultural a que somos expostos.

Em algumas regiões do mundo, como na Ilha de Moçambique, as crianças passeiam pelas págnas da História a caminho da escola ou do mercado e vivenciam cotidianamente as marcas da ocupação portuguesa em Moçambique representada pelos grandiosos monumentos que fazem recordas o poder do colonizador. As marcas do período colonial podem também ser sentidas nas ruelas da “cidade de macuti”onde vive a maior parte da população, de origem macua. Suas casas feitas com paredes de barro e cobertura vegetal registram o abismo social que se vivenciava no sículo XVI e que continua a ser observada no século XXI.

A Guerra de independência, e os 20 anos de Guerra Civil ocorridas a posteriores, também deixaram marcas profundas na maneira de viver da população local. O IDH de Moçambique é 0,446 1 UNDP; TEMPOS INCERTOS, VIDAS INSTÁVEIS:Construindo o futuro num mundo em transformação. Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/22. Disponível em https:/hdr.undp.org/human-development-report-2021-22. Acesso em 05 de Out. 2022 situado entre os 10 piores do mundo. Muitos são os componentes deste índice, mas quero destacar aqui a educação, ressaltando alguns aspectos importantes deste indicador em nível nacional e na província de Nampula, onde se localiza a Ilha de Moçambique.

A primeira língua da maior parte da população moçambicana é a língua nativa, no caso da Ilha de Moçambique a língua Emakhua, que é também a segunda língua mais falada no país, depois do português. Muitas crianças chegam à primeira classe do Ensino Primário sem falar a Língua Portuguesa. A Educação Infantil é uma realidade ainda muito distante da população em geral e não compõem a estrutura da Educação Básica, sendo regulamentada pelo Ministério de Ação Social. Existeum alto índice de atividade laboral entre as crianças, seja auxiliando as mamãs na machamba 2 Nome dado às áreas de cultivo de subsistência. ou realizando pequenas tarefas nos mercados e nas ruas das cidades. Algumas crianças chegam ao fim da Educação Básica sem nunca ter tido contato com livros de literatura, sendo seu único contato com a língua escrita os manuais didáticos. Diante dessa realidade é muito comum que as crianças terminem o ciclo de alfabetização sem efetivamente estarem alfabetizadas.

No último censo 3 Instituto Nacional de Estatística, IV Recenseamento Geral da População e Habitação. Indicadores Sócio-demográficos Moçambique. Disponívl em http://www.ine.gov.mz/iv-rgph-2017/iv-recenseamento-geral-da-populacao-e-habitacao-2017-indicadores-socio-demograficos-mocambique/view . Acesso em 05 de Out. 20222 , realizado em 2017, constatou-se que 39,3 % da população é analfabeta e que apenas 16,9% terminou o ensino primário (até a sétima classe). Esse número é ainda mais preocupante se olharmos apenas para a população feminina, são 49,7% em situação de analfabetismo.

Nesse contexto, ações como as realizadas pelo Centro de Aprendizagem Enia Yowitxhuta são fundamentais para o desenvolvimento integral das crianças que vivem na ilha. Muitas ONG’s e diversos programas internacionais atuam em território moçambicano, mas suas atividades não são suficiente para atender às necessidades de aprendizagem da população local em um contexto tão complexo quanto o exposto aqui. Então associações comunitárias, agremiações culturais e outras estratégias de organização de organização coletiva são fundamentais para implementação de ações locais de apoio à educação e difusão cultural em diferentes níveis.

O Centro de Aprendizagem Enia Yowitxhuta nasceu em 2018, com o apoio de cidadãos italianos que viviam na ilha e que identificaram a necessidade de uma organização coletiva para apoiar às famílias locais na educação das crianças. O trabalho é desenvolvido por atores locais que dispõem de seu tempo para complementar o trabalho escolar e oferecer diferentes oportunidades de aprendizagem a crianças e jovens da região. As atividades funcionam no contra-turno do período escolar e permitem que as crianças experienciem diferentes habilidades e caminhos de aprendizagem.

Dentro das atividades realizadas pelo Centro estão visitas às praias da ilha para a recolha de resíduos que depois são reutilizados na construção de objetos, desenvolvendo habilidades motoras e artísticas durante essa prática, e, interiorizando diferentes conceitos de educação ambiental. As saídas externas também tem agenda semanal certa: a Biblioteca Municipal, lá as crianças podem ser crianças e alimentar sua imaginação com histórias de princesas, animais falantes e mundos mágicos.

É na Biblioteca Municipal, também que esses pequenos podem conhecer um pouco mais do mundo real que está além-mar, além do oceano que banha a ilha e que provavelmente elas nunca conhecerão. Um mundo que apesar de distante já faz parte de suas memórias afetivas. A região tem um intenso fluxo de turistas, nacionais e internacionais, que durante todo visitam os recantos históricos instalados na Ilha de Moçambique, Patrimônio Histórico da Humandade reconhecido pela UNESCO desde 1991.

Agora a equipe do Centro de Aprendizagem Enia Yowitxhuta tem um novo projeto: ter sua própria sala de leitura! O objetivo desse projeto é possibilitar um maior acesso das crianças atendidas pela associação ao universo literário, assim como fortalecer o vínculo dos miúdos com a língua escrita e com a aprendizagem investigativa. Também acreditam que um maior acesso e tempo destinado ao contato com a Língua Portuguesa, na sua forma escrita, possibilitará uma diminuição nas dificuldades de aprendizagem e uma queda na repetência e na evasão escolar.

A equipe da Centro acredita que as dificuldades impostas pela difícil realidade cotidiana podem ser amenizadas com um aumento do contacto com a literatura. São nos momentos de leitura que a imaginação é ativada e a esperança de dias mais alegres fazem surgir sorrisos nos lábios e brilho nos olhos dos miúdos.

Entre os títulos escolhidos pela insituição para o início do projeto estão algumas obras com temas científicos e obras de referência como dicionários, atlas geográficos e etc. Mas a maior parte da lista é composta por livros produzidos em Moçambique, por escritores moçambicanos, com histórias de seu país. Registros de histórias tradicionais e de novos contos e enrredos que têm como cenário e vocábulo os costumes, as paisagens e a emoção ancestral.

Na lista, entre as produções moçambicanas, figuram publicações bilíngues, escritas em Língua Portuguesa e Lingua Emakhua, resultado de um recente esforço nacional de valorização das culturas e línguas locais que presenteou o mercado literário com belíssimas produções e trouxe novo fôlego aos movimentos literários, aos programas de alfabetização e à valorização das línguas nacionais.

Sendo uma pequena associação sem vinculação a nenhum grande programa internacional, o Centro de Aprendizagem Enia Yowitxhuta não tem recursos próprios para concretizar esse projeto de forma independente, assim está a reunir forças com a população local e a criar mecanismos de financimento coletivo para que possa colocar em prática a sua sala de leitura.

O meu desejo é que a sala de leitura se transforme em um núcleo de difusão literária na comunidade da Ilha de Moçambique e que mais ações como essa possam se multiplicar por todo território e levar muitas outras crianças a vôos indescritíveis.

Imagem: Ilustração de Angelo Abu para o livro À sombra da mangueira, da Editora Peirópolis.

Notas

  • 1
    UNDP; TEMPOS INCERTOS, VIDAS INSTÁVEIS:Construindo o futuro num mundo em transformação. Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/22. Disponível em https:/hdr.undp.org/human-development-report-2021-22. Acesso em 05 de Out. 2022
  • 2
    Nome dado às áreas de cultivo de subsistência.
  • 3
    Instituto Nacional de Estatística, IV Recenseamento Geral da População e Habitação. Indicadores Sócio-demográficos Moçambique. Disponívl em http://www.ine.gov.mz/iv-rgph-2017/iv-recenseamento-geral-da-populacao-e-habitacao-2017-indicadores-socio-demograficos-mocambique/view . Acesso em 05 de Out. 20222

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Christiane Maia

    Christiane Maia é historiadora, pedagoga e mestre em educação em Ciências e Matemática. Já atuou como professora e esteve em papéis de gestão de escolas de educação básica no Brasil. Experenciou diferentes aventuras em espaços de educação não formal, dentre os quais o movimento escoteiro, o qual transformou sua percepção sobre o protagonismo juvenil. Vive em Moçambique desde 2019 onde atua voluntariamente em ações de formação de professores e coordena uma pequena empresa que fornece produtos com potencial educativo, cuja a maior celebridade é o livro.

    christianemaia@emilia.org.br

Artigos Relacionados

Lampião e Lancelote

dolores@revistaemilia.com.br Prades Dolores

O fim da infância

miguelangelo@emilia.org Angel Serna Miguel

Leituras da quarentena

contato@revistaemilia.com.br Emília

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *