Eu não sei falar de amor

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kinda@emilia.org van Gastel Kinda

Desde pequena sempre adorei contar em casa do meu dia ou fazer os seminários na escola. Mas me pergunta sobre sentimento, que você vai ver eu tropeçar nas palavras, usar repetidamente meus vícios de linguagem ou só cair no silêncio mesmo. Eu não sei falar de amor. Talvez por falta de referências do amor romântico na minha vida, amor foi se tornando quase um tabu. Sabe aqueles assuntos que você só deseja abrir um buraco no chão que te engula? Falar de sentimento como um todo virou confuso, nebuloso, um novelo cheio de idas e voltas, e que ninguém acha a ponta. Baco me entende, no seu novo álbum “Quantas Vezes Você já foi Amado?”, que trata exatamente sobre amor (e o não amor) nas vidas negras, ele puxa uma conversa e confessa “Cássia, eu sou poeta, mas não aprendi a amar” (inclusive bota Lágrimas pra tocar). Isso não quer dizer que a gente não ame – e muito – só esse caminho, essa fórmula do mundo, não foi nos ensinada. Daí a beleza de criar nosso amor singular, autêntico, que reflita quem nós somos; mas daí também o sofrimento de lidar em não ter o que o mundo vende.

Estamos ciclando ora com o não amor que nos acostumamos, crendo que a felicidade, o afeto e o cuidado não existem entre nós. Eu vejo isso em falas e feridas daqueles ao meu entorno. Eu olho para as minhas próprias cicatrizes e o boicote de tanto tempo (de maneiras inconsciente várias).

E depois quando finalmente nos lançamos, temos que aprender a lidar com as complexidades que se esbarram o todo tempo. Amor aqui nunca foi cor de rosa. Ele esbarra em julgamentos, nas nuances intragáveis de um país interracial, em invisibilizações, desumanizações e esbarra também no sangue nos nossos que escorre tão brutalmente, que faz sentir que amor vira quase descabido. Aprendemos que amor coexiste com a raiva. E ela mesmo é sintoma do amor que sustentamos pelos nossos… é não aceitar a dor histórica e estrutural dos nossos. Mas a violência batendo às nossas portas, também nos ensina violência. E me pego pensando que eu não queria aquele quiosque no Rio de Janeiro como “homenagem”, eu queria mesmo era ele pegando fogo, pra ver se queimávamos os vestígios de tanta dor, arder qualquer normalização de quem achou aquilo só mais um caso e ainda jogar as cinzas nos olhos de quem falasse que isso era um ato extremista. Porque a gente tá cansado, a gente só quer o nosso, a gente só quer a vida.

E a gente também quer o amor. Mas da forma que ele puder ser. Que ele nos caiba, que ele seja agridoce, meio amargo, com pimenta e calor. Vamos ter que reconstruir, se não ele nunca vai nos servir. E eu me recuso a viver em um mundo que não haja amor pra mim. Até que isso se construa, com novos sentidos e possibilidades individuais e coletivas, se acostumem a nos ouvir falar sobre amor, se acostumem com a não lógica e com as contradições em si. Mas isso não pode fazer o mundo anular o fato de que, apesar de séculos de coração e corpos partidos, sermos seres que continuam a amar. E isso precisa continuar a nos guiar, à nossa proteção e à nossa liberdade.

EMARANHADOS DE UMA DEFINIÇÃO (poesia de 2017)

Eu quero um poema capaz de traduzir meus amores em palavras
Consigo quase desenhar um contorno nesses sentimentos
Ao redor, essa fronteira que não me faz transbordar
com o indeciso do que sinto rumo ao infinito

Essa linha é o meu desejo, de amor que me acalente,
que tenha ombro protetor, que me dê amor e me escolha como primeira
Dentro dessa fronteira uma carne turbulenta vive,
se comprime, luta pra romper o espaço que lhe dão

Essa carne carece palavras e clama uma definição
Essa carne sangra, sem pudor
Nela, se rebate todos os amores asfixiados
Nela morre todo romantismo
Nela só há dor, e a palavra amor
Já é longe, não tem mais sentido

Terá alguém pra desmanchar esses nós e entender o amor que eu sinto?
Espero uma alma que dedilhe canções
ou palavras de uma singela poetisa ou locutor
Que possam descrever meu amor como é

Um intérprete na língua de sinais
Que o veja como belo e horrendo, muito diferente de cruel, como me acusam
Um amor que hoje mais sofre que sorri e que
vive matando esperanças como uma criança mata formigas

Mas e se eu rompesse essa barreira?
Estaria eu fundo sincera comigo ou perdida na loucura,
vagando no indefinido desse amor?

Imagem: Ilustração Anna Cunha.

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  • Kinda van Gastel

    Filha das águas, vinda da Bahia e perambulante por esse mundo. Jovem negra, é uma das diretoras executivas do Engajamundo, organização de juventudes brasileiras que trabalha com participação política, mobilização e ativismo frente as pautas socioambientais. Trabalha com comunicação e advocacy, e é formada em Energia e Sustentabilidade pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Dança nas horas vagas, às vezes com as mãos, outras com as palavras.

    kinda@emilia.org van Gastel Kinda

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