Ficção, folclore e fake news

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janu@email.com Alves Januária Cristina

Como as histórias nos revelam a realidade

Se Pinóquio, o famoso personagem do italiano Carlo Collodi, chegasse hoje ao planeta Terra, certamente se sentiria mais em casa do que nunca. Encontraria milhares de indivíduos como ele, dizendo inverdades sem parar. Pinóquio descobriria, para total espanto, que as pessoas por aqui andam mentindo de maneira exponencial, e nem se seus narizes crescessem a todo momento, veriam algum problema nisso.

Não é à toa que a figura do boneco de madeira cujo sonho era virar gente voltou à moda nos últimos tempos. Ano passado, estreou nos cinemas a versão de Pinóquio do diretor italiano Matteo Garrone, com o indicado ao Oscar em “A Vida é Bela” (1997) Roberto Benigni no papel de Gepetto, o pai do menino. O também premiado diretor mexicano Guillermo Del Toro prepara para a Netflix uma animação em stop motion, com previsão de estreia este ano, na qual ambienta o clássico infantil na Itália de Mussolini, transformando Pinóquio em um herói antifacista. E o não menos estrelado diretor americano Robert Zemeckis também trabalha em uma outra versão da história para a Disney, tendo Tom Hanks como Gepetto. Apesar de a mentira não ser o elemento central da história de Pinóquio, ela assume, como podemos observar, destaque nas versões descritas acima. Por que será? Mentir, então, virou o “novo normal”?

Em tempos de fake news, pós-verdade e desinformação, a mentira está no centro do palco. Talvez o que melhor defina a crise de nosso tempo seja o fato de que estamos vivendo em um cenário no qual não conseguimos mais distinguir mentira de verdade. A ficção embaralhou-se a tal ponto com a realidade, que cada um “escolhe a sua verdade”, a que melhor lhe convém, os fatos, assim, vendo-se distorcidos e enquadrados com a lente que melhor servir a um determinado propósito. Nesse sentido, é bom entendermos melhor o que é a ficção e para que ela serve. É fundamental que a mentira seja reconhecida, com todas as letras e imagens, como uma mentira, e é uma pena que não estejamos condenados, como Pinóquio, a vermos nossos narizes crescerem quando mentimos!

Vida real vs. Ficção

Mark Twain, um dos maiores escritores norte-americanos, afirmava que a vida real é mais estranha do que a ficção pela simples razão de que a ficção precisa estar inscrita na perspectiva do possível, ou seja, ela precisa fazer sentido, caso contrário, “não pára em pé” e não convence. A escritora canadense Margaret Atwood diz que há uma grande diferença entre ficção e mentira. E o que marca essa distinção é que a ficção busca dizer a verdade sobre os seres humanos, ao contrário da mentira. Segundo um outro escritor, Salman Rushdie – que sabe bem a diferença entre uma coisa e outra, pois foi perseguido porque sua ficção retrata uma dolorosa verdade –, o propósito da literatura é revelar verdades. Já o propósito da mentira é o de obscurecer a verdade. Portanto, de várias maneiras, ficção e mentira são os opostos um do outro. Então, talvez exista um pequeno papel que a ficção pode exercer nesses tempos”. 

O que a ficção e a mentira têm em comum é que elas são histórias. E é por meio das histórias que aprendemos sobre nós mesmos, sobre o mundo em que vivemos, é por meio delas que nos aproximamos do que é o mal, o bem, o medo, a felicidade, a morte. E se as histórias fazem parte de nosso DNA, é por meio delas que entendemos o que nos acontece: é humanamente impossível experimentarmos tudo o que há no mundo, e são as narrativas que nos levam a todas as viagens que sonhamos fazer. Desse modo, se as histórias nos mostram o mundo, também podemos escolhê-las de acordo com o mundo que queremos ver. “Talvez ler bons livros seja parte do caminho de reconstruir o senso do que é o mundo real. Parece um paradoxo dizer que a ficção pode ajudar a verdade, mas penso que é real”, segue afirmando Rushdie.

O que as histórias nos ensinam

Daí a importância de lermos muitas, muitas histórias. Muitas visões de mundo, novas perspectivas, muitas perguntas, mais de uma resposta para cada questão. “Se um cidadão gastar um pouco de tempo em adquirir cultura, ler livros (…), se buscar mais de uma fonte, terá a possibilidade de criar um critério próprio para entender o que ocorre. Mas se escutar uma só voz, um só discurso, o de sua bolha, tudo estará determinado por essa voz”, afirma o também escritor Fernando Aramburu, autor do livro Pátria, já transformado em série pela HBO. Seu livro, que retrata um dos períodos mais sangrentos da Espanha, quando havia atentados do grupo terrorista ETA, foi considerado um marco da literatura como retrato de acontecimentos dos últimos tempos, e por isso ele diz que acredita firmemente no papel da ficção no combate à desinformação.

Há muitas definições do que é mentira e as histórias de ficção se valem delas para nos alertar sobre o que é verdade. O grande mestre dos “causos” e “histórias de trancoso”, o escritor Ariano Suassuna, foi brilhante ao nos brindar com um dos personagens mais icônicos da literatura brasileira: Chicó, protagonista de um de seus livros mais conhecidos – O Auto da Compadecida. Narrador de histórias como ninguém, Chicó “contava um conto e aumentava um ponto”, encerrando suas histórias com o indefectível: “Ah, não sei, só sei que foi assim” – a “deixa” que revelava que o que acabara de contar pertencia ao reino da ficção. Mas não da mentira. As histórias de Chicó são facilmente reconhecíveis e sua estrutura fantástica nos dá pistas da sua inverossimilhança. Diferentemente das mentiras – e para não deixar de falar nelas, das fake news – arquitetadas para criar confusão entre fato e ficção, para embaralhar a nossa percepção (ainda que contenham muitas explicações), as histórias de ficção não mentem, porque retratam o nosso inconsciente, aquilo que sentimos e pensamos e, na maior parte das vezes, não nos damos conta. São verdades invisíveis a olho nu.

Por conta do sucesso da série Cidade invisível da Netflix, o folclore nacional e suas histórias fantásticas têm estado na “boca do povo”. Meu livro Abecedário de personagens do folclore brasileiro foi usado como fonte de pesquisa e inspiração do diretor Carlos Saldanha, criador da série. Com muita criatividade, ele colocou os personagens do folclore brasileiro num contexto contemporâneo, urbano, usando a imaginação e o senso crítico, para nos mostrar o quanto a ficção pode desvelar o real de uma maneira mais contundente do que qualquer notícia. Numa história em que trafegam o Boto, a Iara, o Saci-Pererê, a Cuca, O Tutu Marambá e o Curupira, entramos em contato com questões que são feridas profundas desse país: a destruição da natureza, o desmatamento indiscriminado, a situação de exclusão social de populações urbanas e rurais, a pobreza, o preconceito, mazelas que passam sob os nossos olhos todos os dias sem que prestemos atenção.

A ficção e o combate à desinformação

E assim não poderia deixar de ser: o folclore é a identidade de um povo em seu mais profundo significado; cada personagem, cada narrativa, conta sobre o nosso imaginário, o qual se expressa em atitudes cotidianas e traduz o modo como entendemos o mundo. Isso, consequentemente, dá origem aos problemas imensos que estamos tendo de lidar todos os dias.

Sem mais delongas, gostaria de encerrar este artigo indicando o filme Relatos do mundo, recém-lançado pela Netflix, baseado no romance homônimo de Paulette Jiles, dirigido por Paul Greengrass. Na história, o Capitão Jefferson Kyle Kidd é um veterano de guerra que trabalha como “contador de notícias”. Ele viaja de cidade em cidade levando diversos jornais para narrar os principais acontecimentos do mundo para as pessoas daquela comunidade. Além de uma trama repleta de sutilezas simbolizadas por seu encontro com uma garota órfã, Kidd (Helena Zengel), um dos temas principais do filme é demonstrar o poder das notícias na vida da sociedade. E o personagem de Tom Hanks descortina isso de uma maneira absolutamente sutil, original e emocionante: ele escolhe narrar as notícias em que as pessoas são o foco e, ao mostrar que atrás de cada notícia há um ser humano como qualquer outro, revela a natureza sobre a qual se fazem as histórias e as notícias.

E é aí, na beleza dos contos, na importância do folclore, dos livros e das narrativas, que talvez resida uma possibilidade para a “cura” para o fenômeno da pós-verdade, uma “receita” para o combate à desinformação. Precisamos conhecer as histórias – todas elas, de ficção ou não – para vivermos em plenitude e em comunhão, porque elas são a fonte primária da empatia. No fim das contas, como escreve outro grande autor o latino-americano Eduardo Galeano, “os cientistas dizem que somos feitos de átomos; eu, porém, creio que somos feitos de histórias”.


Imagem: Ilustração Roberto Innocenti para Pinocchio.


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  • Januária Cristina Alves

    Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, infoeducadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, vencedora também do Prêmio Valdimir Herzog de Direitos Humanos. É especialista em Educação Literária e Midiática, formadora de educadores e consultora de projetos educativos e culturais para diversas instituições. Em 2019 lançou o livro “Como não ser engando pelas Fake News”, na Coleção Informação e Diálogo, da Editora Moderna. Desde 2019 faz parte da GAPMIL, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco, uma organização composta por mais de 700 organizações, governos e indivíduos nos cinco continentes. Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br.

    janu@email.com Alves Januária Cristina

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