A frondosa árvore da Literatura

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RicardoAzevedo@revistaemilia.com Azevedo Ricardo

Creio que a literatura de ficção e poesia deve ser vista como uma frondosa árvore cheia de galhos e esses galhos representam diferentes literaturas, todas legítimas e todas irmãs pois são fruto de um mesmo tronco.

As chamadas literaturas para crianças e jovens são galhos dessa mesma e única árvore onde florescem as outras literaturas. As formas literárias populares, contos, quadras, poesia de cordel etc. também.

No sentido que estou falando, pouco importa se a obra é de um escritor clássico e consagrado, de um autor iniciante ou mesmo desconhecido, caso de muitas obras populares.

Antes de mais nada, a literatura e a arte seja adulta, infantil, juvenil, popular ou outra, tanto faz, deve ser avaliada por seu caráter estético. Ou seja, deve ser avaliada por:
– sua originalidade
– sua capacidade ficcional;
– recursos como a metáfora (o texto diz uma coisa, mas pretende dizer outras) entre outras figuras de linguagem;
– o discurso marcado pela subjetividade (oposto à objetividade típica dos textos didáticos, técnicos e utilitários);
– a exploração inventiva e consciente da linguagem;
– a abordagem de temas humanos complexos (chamo de “assuntos que ninguém sabe” porque não podem ser ensinados. Por exemplo, a busca do autoconhecimento; as paixões humanas; as contradições e as ambiguidades; as angústias; a construção da própria voz; a loucura; a colisão entre as idealizações e a realidade; a efemeridade e a morte, entre outros assuntos da vida concreta).

Quem vai dar “aulas” ou propor “metodologias” sobre as paixões, sobre a morte ou sobre as contradições humanas? Quem vai escrever um livro técnico a partir de metáforas, experimentações sintáticas e abordagens singulares e subjetivas da linguagem? Quem vai defender a ideia de que um manual didático pode e deve ter diferentes leituras e interpretações?

Uma coisa é certa: criar uma obra de ficção e poesia que tenha qualidade – independentemente de gêneros, movimentos, escolas literárias ou da pretensão de atingir este ou aquele público – sempre foi e sempre será algo muito difícil de fazer.

Por outro lado, as obras literárias costumam ser impregnadas de ideologias e crenças. Nem teria como ser diferente, afinal, cada autor tem sua visão de mundo, sua ideologia e suas crenças. Mas a relevância e a qualidade da obra não vêm daí. Este é o ponto.

Se queremos informar sobre um assunto ou defendemos uma causa ou uma crença ou pretendemos ensinar algo, viramos professores, militantes, religiosos, especialistas, jornalistas, redatores ou algo assim e, neste caso, produzimos textos utilitários que pretendem que 100% dos leitores tenham uma mesma e única interpretação.

Confundir textos utilitários com textos literários é a fórmula exata e certeira de como não formar leitores. Imagine ler um poema de Carlos Drummond de Andrade ou de Murilo Mendes preocupado em descobrir que mensagem única e verdadeira o poema traz!

Os textos de ficção e poesia trazem perguntas e não respostas e por essa razão dão margem a diferentes interpretações. Aliás, seu autor também costuma andar cheio de dúvidas e constrói seu trabalho a partir delas.

Textos de ficção e poesia, creio, são sempre tentativas subjetivas e intuitivas de experimentar a verdade. Entrar em contato com textos subjetivos e intuitivos pode nos humanizar e até nos tornar mais civilizados, pois permite acessar pontos de vista inesperados e desconhecidos sobre assuntos complexos embora cotidianos e, dessa forma, pode ampliar a visão que temos de nós mesmos, dos que são diferentes de nós, da vida e do mundo.

Enquanto adultos, sejam pais ou professores, não compreenderem a diferença entre livros técnicos e didáticos e livros de ficção e poesia, vai ser muito difícil formar novos leitores em nosso país.

Texto baseado no artigo “A literatura prefere assuntos que ninguém sabe”, escrito para o Catálogo de livros 2019, da Editora Ática.

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  • Ricardo Azevedo

    Escritor e ilustrador paulista nascido em 1949, é autor de mais cem livros para crianças e jovens. Ganhou quatro vezes o prêmio Jabuti - Alguma coisa (FTD), Maria Gomes (Scipione), Dezenove poemas desengonçados (Ática) e A outra enciclopédia canina (Companhia das Letrinhas) - , o APCA e outros. Tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México, França e Holanda. É bacharel em comunicação visual pela Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em letras pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na área de cultura popular, é professor convidado em cursos de especialização em arte-educação e literatura. Dá palestras e escreve artigos, publicados em livros e revistas, abordando problemas do uso da literatura de ficção na escola.

    RicardoAzevedo@revistaemilia.com Azevedo Ricardo

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