Fronteiras da literatura juvenil atual

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AntonioVentura@revistaemilia.com Ventura Antonio

Compartilho aqui reflexões sobre este gênero híbrido – a literatura juvenil –, a partir do meu ponto de vista; e se nos determos mais atualmente – caberia dizer além de híbrido, errático. Daí, que suas fronteiras poderiam se parecer às do mapa da África, que não foram definidas nem por acidentes geográficos, nem pela existência de diferentes idiomas, nem pelo capital cultural dos habitantes que nasceram naquelas regiões, mas pelos poderosos que decidiram as fronteiras, tendo em vista os interesses das grandes corporações da época. Se existe um lugar em que é evidente o fato de o mapa não corresponder ao território, como bem disse o semiólogo polonês Alfred Korzybski (1879-1950), é esse continente, e, salvo todas as distâncias, claro, eu diria que também é, em grande medida, o desenho que oferecem as fronteiras atuais da denominada literatura juvenil. Fronteiras não delimitadas pela evolução do gênero, supondo que existisse, mas por razões alheias ao fato literário, mais relacionados com decisões editoriais, quando não comerciais.

Gostaria de exemplificar e contextualizar, muito rapidamente – e com cuidado – o que afirmo.

Gianni Rodari (1920-1980) dizia (cito de memória) que um livro infantil é aquele que se publica em uma coleção infantil. Sem chegar a uma proposta tão radical, partilho desta ideia quase que totalmente. Dois exemplos apenas: vocês acreditam que Cuando de noche llamam a la puerta, de Xavíer P. Docampo ou Un crocodilo debajo de la cama, de Mariasun Landa, ambos livros ganhadores do Prêmio Nacional, podem estar publicados em coleções como El Duende verde, editora Anaya, e Barco de Vapor, da SM, respectivamente? Merecem estes suportes infantis? Com todo respeito para com essas coleções, a quantos leitores adultos impedimos o prazer de ler estes livros por conta dessa decisão editorial?

Não sei, sinceramente, quanto influencia na literatura de que nos ocupamos, a ausência de uma tradição cultural, mas, é tão breve e tão estreito seu itinerário, que nos falta perspectiva para uma análise precisa que distinga luzes e sombras sobre esta forma peculiar de cultura impressa. Além disso, seu desenvolvimento se inicia na Espanha, somente uns anos antes da difusão generalizada dos meios audiovisuais de comunicação de massa. Soma-se a isso que, até a morte do ditador, o livro era um objeto suspeito, e a leitura na infância, em muitos lugares, um ato quase clandestino. Algo que volta, ainda que por motivos distintos, a acontecer na atualidade, entre os jovens.

Se voltarmos para antes de 1975, é difícil considerar que exista uma edição estável de qualidade neste âmbito, salvo algumas poucas editoras, sem dúvida importantes antecedentes, e somando-se, em cada caso, alguns títulos. Estou me referindo à La Galera, Juventud, e especialmente, a editora Miñon. Salvo estas, a meu ver, temos que chegar ao fim dos anos 1970 para encontrarmos sucessos editoriais, que também foram literários – algo que, na atualidade, só acontece de maneira excepcional – , e que são nesta ordem: as coleções de Labor Bolsillo Juvenil, Austral Juvenil, Alfagura e La Joven Colección, de Lóguez.

Diga-se de passagem: ainda pudessemos desfrutar no presente de uma oferta similar a que tivemos neste período.

Nessas coleções encontramos os primeiros livros de qualidade de autores espanhóis, e muitas das grandes obras de autores estrangeiros que, de alguma maneira, serviram de modelo para o modus operandi de nossos escritores, especialmente em Alfaguara e na Joven Colección, em que a presença daqueles era muito numerosa se comparado com os poucos títulos de produção nacional.

Desde então até nossos dias – deixarei de fora destas considerações os projetos editoriais pelos quais fui responsável – chegamos a novembro de 1990 e a fevereiro de 1991, para encontrar outros dois projetos que também foram literários.  São eles: Las Tres Edades, de Siruela e La Serie Oro de El Barco de Vapor. É importante recordar que os números 3 e 4 da primeira coleção foram Chapeuzinho en Manhattan, de Carmen Martín Gaite (1925-2000) e Narradores de la noche, de Rafik Schami (1946 -); e a segunda, cuja tarja vermelha começava, provavelmente com a melhor novela La aventura imortal de Max Urkhaus, de Joan Manuel Gisbert (1949 -), El misterio de la mujer autómata; e em seu número 3 recuperava Cosa de niños, de Peter Bischel (1945 -), sob o título El hombre que yá no tenía nada que hacer.

Antes, durante ou depois destas coleções, o que o panorama nacional ofereceu foram alguns títulos com certo destaque, mas isolados e, em muitos casos, tornados invisíveis pela própria coleção que integravam, cujas marcas de identidade respondiam a isso que genericamente poderíamos chamar de um “balaio de gato”, quando não diretamente, um desastre. Talvez o exemplo mais evidente deste último seja a obra de Elieser Cansino (1954 -), El mistério de Velázquez.

Um fenômeno a que gostaria de me referir muito rapidamente, pois acredito que mereça um comentário, mesmo que sucinto, dado o tema que estamos tratando, é o da aproximação dos autores canônicos à produção editorial juvenil, e, creio que foi precisamente nessas coleções, junto com a Espaço Aberto, ainda que nesta um pouco mais tarde, onde encontramos exemplos disto. Las Tres Edades, de fato começou com um livro de Alejandro Gándara (1957 -), El final del cielo, e, no ano seguinte, publicou uma obra excelente de José María Merino (1941 -), No soy un libro, com o qual ganhou o Prêmio Nacional de Literatura Infantil, ou se preferirem Los trenes del verano. Poucos anos depois, na Série Ouro do Barco a Vapor, também na série vermelha, aparecem Ulaluna, de Jesús Ferrero (1952 -), e El viaje americano, de Ignácio Martínez de Pisón.

A chegada destes autores ao gênero, não só supôs uma renovação – necessária na relação de escritores – como também na aparição de gêneros e tratamentos novos, em um território em que começava a cansar a excessiva presença daqueles livros que denominamos novelas escolares.

Não pretendo dizer que a chegada destes escritores ao mercado editorial juvenil tenha significado só coisas positivas. A bem da verdade, a maioria dos primeiros livros de muitos desses autores significou ares novos a um panorama muito monótono, mas, em seguida, o tempo nos mostrou que se tratou de um fenômeno efêmero, pois depois as sombras começaram a aparecer, como já havia acontecido anteriormente com os autores específicos do gênero.

Seja como for, as características do panorama literário e, por extensão, do editorial espanhol, em castelhano – premeditadamente e por economia, não por nacionalismo – deixou de fora deste comentário a literatura latino americana das décadas de 1980 e 1990, distintas entre elas, apresentavam em seu conjunto uma dignidade que, no decorrer do século, perderam paulatinamente as publicações dirigidas aos jovens.

Não sei o quanto é bom, pensando na cultura impressa e nos leitores, os efeitos dos livros da saga Harry Potter, cujo primeiro volume Harry Potter e a pedra filosofal veio a público em 1997, mas, do que não tenho dúvida, é da enorme influência que – ao menos na Espanha – e temo que também em outros países – exerceu, em grande medida para o mal, na oferta editorial.

Não vou entrar na análise do valor leitor ou da qualidade literária destas obras, pois sua repercussão social desbanca os limites do fazer literário e editorial, tornando-se, em seguida, um fenômeno midiático, de que se aproximaram, logicamente, os leitores, mas, e sobretudo, muitos não leitores. Mas não é esse o motivo de minha análise. O motivo é a enorme influência que este fenômeno exerceu em muitas editoras, cujo catálogo foi violentado pela presença de livros que seguem os passos do personagem de Rowling, e não necessariamente para oferecer obras de qualidade, mas meros artefatos, em muitos casos, concebidos mais pelos diretores de marketing que pelos editores, cujo parentesco com a literatura é mera coincidência, e cujo exemplo paradigmático na Espanha poderia ser Memórias de Idhún, de Laura Gallego (1977 -), da SM.

Eu mesmo sofri esta violência na editora onde então trabalhava. Herdei um catálogo de ficção juvenil com uma nítida identidade, cuja referência era a Coleção Tus Libros. Quando oito anos depois, deixei a editora e revisei o catálogo que meu sucessor herdaria, me dei conta que tinha sido responsável por uns cinquenta resíduos tóxicos jogados no mercado editorial. Livros absolutamente prescindíveis, mas que, durante os anos que durou o calvário, suas vendas salvavam com folga a conta, e que, ano a ano, foram aumentando sua presença no catálogo.

E não foi esta, a meu ver, a editora que mais se travestiu. Se compararmos alguns selos de primeira linha em número de publicações, seu catálogo dos anos 1980 com o da primeira década deste século, teremos uma ideia exata da transformação a que estou me referindo.

E, para terminar, por favor, não leiam em minhas palavras, que qualquer tempo passado foi melhor. Durante estes anos, também assistimos ao surgimento de obras, inclusive de novos autores, que enriqueceram um gênero que, sinceramente, não creio que exista, em termos literários, más sim editoriais, e que, em muitas ocasiões passaram despercebidos, quando não foram completamente invisíveis, ou foram visíveis somente para os atentos a este fenômeno.

Não creio que a cultura impressa escape do processo de liquefação, no sentido a que se refere Zygmunt Bauman (1925 -), neste mundo em que vivemos, caracterizado pela inconsciência e pela efemeridade. Nossos usos e estratégias, nossas condições de vida e nossas respostas a ela se modificam com tal velocidade que não podem se consolidar nem se traduzir em hábitos e costumes. Nosso mundo avança a uma velocidade vertiginosa, mas sem rumo, muda compulsivamente, mas sem consistência. O imperativo categórico é “estar em dia”. Nossa cultura não educa à reflexão com profundidade nem à atitude de busca, mas à olhada fugaz. Por isso, não existem convicções firmes, somente opiniões diletantes que podem mudar em seguida, seja na política ou no debate intelectual. E, talvez, esse gênero poderia ser mais um entre tantos.1Texto apresentado no  28 Encontro de Verines, Pendueles, Astúrias, em setembro de 2012.

Tradução Thais Albieri


Imagem: Ilustração de María Hergueta, para Quando você não está aqui, Editora Pulo do Gato.


Nota

  • 1
    Texto apresentado no  28 Encontro de Verines, Pendueles, Astúrias, em setembro de 2012.

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  • Antonio Ventura

    Nasceu em Madri, foi professor do ensino público durante 19 anos, criador da coleção Sopa de livros, da Editora Anaya, em 1997, onde foi diretor de publicações. Atualmente, é editor da Jinete Azul. Foi fundador da revista Babar (1989) e da revista Bloc (2007) e dirigiu as publicações infantis da Oxford University Press da Espanha. Tem mais de trinta livros publicados para adultos, jovens e crianças. É membro da Rede de Apoio Emília.

    AntonioVentura@revistaemilia.com Ventura Antonio

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