Hucklerberry Finn

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AdolfoCordova@revistaemilia.com Córdova Adolfo
Finn

 

1.

Existem personagens secundários que nos inquietam. Intuímos que eles têm mais o que dizer, mas ficam quietos. Caminham atrás de nós. Arrepiam a pele híbrida de escamas, de penas, de cristais vermelhos, de pelo comprido, curtida por cada palavra secundária que lemos sobre suas vidas.

Às vezes, porém, os personagens menores rompem esses silêncios, suas vozes nos chamam mesmo depois que fechamos o livro. E querem que inventemos novos bosques, que estendamos a mão com uma maçã vermelha e os deixemos morder, o doce sabor do encantamento. Não se preocupam em ser condenados, e, se isso acontece, condenar-se prolonga suas vidas no tempo do relato.

Os coadjuvantes permanecem em nossas imaginações diurnas e na escuridão dos sonhos, não só pelo que lemos sobre o que foram, mas pelo que imaginamos que poderiam ser. Perseguimos o momento antes e depois do princípio ao fim de sua história. Projetamos nossas perguntas essenciais ao terreno da ficção: de onde vem essa personagem? Aonde vai depois? Quem é?

Fazer isso talvez represente o maior poder da ficção. O poder de nos perguntar pelo outro, de nos imaginar no lugar do outro e de ensaiar viagens possíveis. Por isso, os coadjuvantes podem ser guias magníficos em toda busca: escrevemos nossos finais e nossos começos onde o autor deixou espaços; e há muito espaço ao redor dos coadjuvantes, além da inquietude.

2.

Para poder ser, há que ser outro,
sair de mim, me achar entre os outros,
os outros que não são se eu não existo,
os outros que me dão plena existência,
não sou, não há eu, sempre somos nós,
a vida é outra, sempre além, mais longe…

Octavio Paz, Piedra de sol, 1960 (Tradução livre).

Pinoquio
Roberto Innocenti. Pinocho. Kalandraka, 2005.

3.

A charmosa menina do cabelo turquesa já vivera mil anos naquele bosque quando salvou Pinóquio. O cavaleiro Rei Mono e seu séquito nem sempre estiveram a serviço da malvada bruxa do oeste; nem Baloo seguiu a vida inteira os passos de Mogli.

Nunca se atreveu a contar, mas como foi que a avó daquele menino transformado em rato perdeu seu polegar? Onze blusas e uma sem manga: o que aconteceu com o mais jovem dos príncipes para ser condenado a viver com uma asa de cisne?

Se tivesse que fazer um retrato da infância, escolheria qualquer uma dessas personagens. Não procuraria os protagonistas, que sempre levantam a voz, observaria os coadjuvantes, porque se aproximam da natureza periférica da criança;

Em seu ensaio Llama azul, Gustavo Martín Garzo faz referência, justamente, ao príncipe do conto Os cisnes selvagens, de Hans Christian Andersen, que, ao fim da história é condenado a viver com uma asa de cisne. Garzo escreve:

Todos sentimos dentro de nós algo delicado e fugaz que queremos tornar real, mas somos torpes e incapazes de levar isso adiante, somos todos portadores de algo valioso, ao que não prestamos a devida atenção.

O menino, a menina, o adolescente, sente que tem uma asa de cisne, uma perna de pau, o cabelo turquesa, uma mão sem polegar.

Entra-se no mundo sem jeito, com total dependência, esperando instruções. Wendy, A fechadura de Alice, O homem de lata, Watson, Mendieta; Susanita, Felipe, Guile, existem com o outro, para o outro, mas cada um tem uma voz que, às vezes, quer dizer mais. Este é o caso de Huckleberry Finn.

  

4.

Mark Twain publicou sua obra mestra quando decidiu levar da periferia ao centro um grande personagem secundário: Huckleberry Finn. O vagabundo cativante, “o menino selvagem”, alheio às normas, o camarada incondicional de Tom Sawyer, inocente e valente desde sua comovente infância.

Twain não resistiu. Saltou no vazio para encher o silêncio que deixara a personagem e deu a ele uma voz própria e um novo fio argumentativo. Mandou-o navegar sem a bússola: Tom Sawyer. Obrigou-o a deixar a posição cômoda da personagem secundária em cujos ombros não cai o peso de encontrar os tesouros e ganhar as batalhas. Tirou-o da cartola. Deixou-o crescer.

Mas Huck não foi o primeiro.

Tudo começou com uma mulher e uma guerra. A mulher se chamava Helena e a guerra aconteceu em Troia.

O antecedente mais importante que encontro para abordar a transformação de uma personagem secundária em protagonista é a Ilíada e a Odisseia, de Homero.

Ulisses é um dos principais guerreiros na Ilíada, mas o texto está centrado na ira de Aquiles. É na segunda parte do poema épico que Ulisses ou Odisseu protagoniza sua viagem, seu retorno, sua Odisseia. E Aquiles vira só uma recordação.

Os caminhos que oferecem as personagens secundárias para estender aos relatos a partir das obras literárias, cinematográficas, televisivas e digitais são recorrentes e antigos.

Na Gramática da fantasia, Gianni Rodari Rodari o descreve como “efeito de amplificação”. A amplificação, diz, pode ser considerada a estrutura de qualquer descobrimento, seja ele artístico ou científico. “Um elemento secundário do conto original “libera” a energia do novo conto atuando como ‘amplificador’”, explica Rodari.

Escrever uma história partir de uma personagem secundária é um procedimento conhecido no jargão televisivo como spin off e muito mais frequente nesse meio.

  

5.

Depois de estudar o que fez Mark Twain para mudar Huckeleberry da periferia da novela As aventuras de Tom Sawyer, ao centro de sua obra mestra – As aventuras de Huckeleberry Finn – estabeleci seis passos que podem servir para exercícios criativos que procuram levar a uma personagem secundária ao centro de seu próprio relato; mas também podem funcionar como metáfora para exercícios e discussões em que queiramos dar visibilidade ao que se mantém invisível, as histórias secundárias, ou para detonar reflexões que promovam inclusão e a reivindicação das minorias.

Trata-se, à maneira de Campbell, de uma espécie de viagem do herói, uma viagem do herói secundário. 

1. Mudança de foco. Desde a primeira palavra na nova história, a realidade é contada com a voz do antigo personagem secundário. Essa mudança de perspectiva é parte de uma nova caracterização do secundário. Agora ele conta a história: vê, fala e decide. “Você não sabe nada sobre mim se não leu um livro chamado As aventuras de Tom Sawyer, mas isso não tem importância…”, disse Huckeleberry Finn no início de sua novela.

capa

2. Emancipação. O secundário se liberta de seu antigo papel. Estabelece-se o mundo como era antes e o secundário já não está confortável aí, nem com o lugar nem com as personagens. Há um confronto, uma necessidade de diferenciação, uma falta de identificação com o antigo protagonista. Em relação à narrativa, ocorre uma morte simbólica do antigo papel do secundário. Huckeleberry Finn diz que se aborrece com os jogos imaginativos de Tom, ele já não vê os tesouros nem os ladrões dos quais fala seu amigo. Huck enfrenta problemas reais: vive com seu pai alcoólatra e teme por sua vida, o que o faz decidir fingir sua própria morte e fugir.

3. Uma razão de ser. Para salvar-se e liberar-se, o coadjuvante começa uma aventura com um novo fio argumentativo e em um contexto diferente. Huck deixa seu lugar e explora a região com maior amplitude, onde ninguém sabe quem ele é. Ninguém o define como coadjuvante e pode ser uma nova personagem, com a responsabilidade de desenvolver e concluir sua própria história. Além do desejo de liberdade, Huck encontrará outra personagem que tentará ajuda-lo.

4. Um coadjuvante para o coadjuvante. O novo herói não vai sozinho durante o percurso. Para estabelecer com mais clareza sua nova posição, aparece uma nova personagem coadjuvante que o acompanha. É a partir da visão do outro que se definem os papéis – o que antes era coadjuvante e agora é protagonista precisa ter seu próprio coadjuvante. Maria Nikolajeva no livro Retórica del personaje en la literatura para niños dedica um capítulo ao personagem coadjuvante e fala de quanto dele necessita o protagonista, não somente como acompanhante, pois é por meio do secundário que o herói se reconhece, se coloca em xeque. Os dois estão entrelaçados. Huck encontra o bondoso e inocente escravo – Jim – e decide ajuda-lo a conseguir sua liberdade. Nele reflete uma nova imagem sobre si mesmo: a de líder.

5. Provas morais. Para fortalecer seu caráter, o novo protagonista viverá a típica “viagem do herói”, descrita por Joseph Campbell com os encontros entre diferentes personagens que definem a personagem central. Nessas provas, adota traços do protagonista original. Um dos maiores dilemas de Huck é se continua ou não ajudando Jim, pois teme ir ao inferno se o fizer.

6. Validação. Reconhecimento do herói original. O protagonista original não se ausenta do todo da aventura. O antigo coadjuvante se recorda e se pergunta como agiria se estivesse em determinada situação, e mais: ao final da história, reaparece para acrescentar à aventura do antigo secundário. Há uma reconciliação e um reconhecimento. Os papéis originais se restabelecem parcialmente, mas o ex coadjuvante tem mais força  porque observou as situações de mais ângulos, conhece as duas perspectivas: a periferia e o centro de uma história. O protagonista o valida, agora, como herói capaz.

Desde o final da história, Huck e Tom vivem uma aventura juntos outra vez; nela, e pelo enredo, mudaram os nomes: Huck é Tom e Tom é Huck. Tom aceita o convite de Huck: terminar de libertar Jim.

6.

A personagem secundária que fez o a viagem que o transforma em protagonista é mais poderoso. Tem duplo domínio: sabe ceder e não teme guiar. Huck vive sua própria viagem, mas não esquece de que foi coadjuvante e sabe estar sempre disponível. Conhece os dois mundos. Fez-se visível, mas sabe que, rapidamente, é útil usar a capa da invisibilidade.

Huck vira Tom Sawyer, sem deixar de ser Huck. É Robinson e Sexta-Feira, Dom Quixote e Sancho, Sherlock Holmes e Watson, Peter e Wendy, Frodo e Sam. Vive na alternância de papéis. Não é um protagonista fechado em si mesmo e em sua aventura, não tem problema em ficar na segunda posição e permitir que, em alguns capítulos, outros se destaquem. É flexível: permite que outros mandem. Permite aos outros ser ao seu lado. Herói e anti-herói, coadjuvante e protagonista, bom e mau, segundo seu próprio juízo, e, definitivamente, um espelho mais amplo para o leitor.

Pode-se dizer ainda: é mais humano, menos literário. Um signo de uma literatura avançada para a época: reafirmou a busca por individualidade e superou a estrutura binária e simples das personagens dos contos de fadas tradicionais: rico ou pobre, bom ou mau, bonito ou feio.

Para o acadêmico Peter Coverney, a construção dessa personagem e de sua viagem de coadjuvante para protagonista são tão perfeitas que se pode afirmar que Mark Twain escreveu As aventuras de Huckeleberry Finn duas vezes, mas a primeira falhou, o que deu origem a Tom Sawyer.

7.

Mas Huckleberry talvez seja só um pretexto, um exemplo, uma metáfora para fechar este ensaio com outra reflexão. Para além da personagem literária, surge outra consciência, a do coadjuvante maior: a criança, o jovem, a literatura infantil e juvenil.

Somos secundários em um meio que ainda considera a literatura para crianças e jovens um subgênero. A literatura infantil e juvenil carregou o estigma de literatura secundária, periférica, que acompanha a formação puramente pedagógica e instrumental. Menor. Como menores são as crianças. “Os menores”. Se ser criança é menor, falar, ler e escrever sobre eles, também o é.

Mas os meninos e as meninas também respondem e se rebelam. Desobedecem e falam sem levantar a mão. Saem de casa. Batem portas de propósito.

Huck é a metáfora desse menino rebelde, a possibilidade de mudar a história e os papéis das personagens. Sua viagem é o percurso para o crescimento. O processo por meio do qual a criança encontra sua voz e se faz ouvir. O processo pelo qual qualquer voz secundária, marginal, pode exigir conhecimento.

E há finais felizes. Huck é só um de muitos exemplos – na literatura e na vida – de vozes que foram escutadas.

Permitir, promover e construir viagens da periferia ao centro é um trabalho sempre em construção, mas é possível.

As personagens coadjuvantes querem morder o fruto proibido para colocar-se em xeque, reconhecer-se. Ofereçamos a maçã. Construamos barcos para navegar rio Mississipi abaixo.

8.

A lasca está no chão. A peça do marceneiro está no centro. Dezenas de toras de madeira são sua sombra. E são a peça.

Mas a peça (uma cadeira, um violão, uma marionete) não existe sem a lasca. A lasca é o caminho amarelo, o barco voador, o ventre de um grande tubarão. Conduz, cobiça, sinaliza um rastro. A lasca permite ser a marionete.

A peça era um menino, o menino Pinóquio, e um rastro de migalhas, um caminho de ladrilhos amarelos, que conduzem a ele. Pinóquio existe graças a todos os que o nomeiam, os que o moldam com seu olhar. A lasca de Pinóquio é o mestre Plum, Gepeto, Come fogo, a charmosa Fada Azul, seu amigo Grilo Falante e até a grande baleia que o come.

Não existem peças sem lascas.

Nem personagens principais sem secundários.

Nem homens nem mulheres que não foram crianças.

Nem escolas, nem bosques, nem famílias sem histórias pequenas, circundantes, vitais.1]Conferência apresentada durante as Jornadas Internacionales de Literatura Infantil y Juvenil 2015 – 23 de abril a 20 de maio – em Santiago e em sete cidades argentinas.

Tradução Thais Albieri

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    ]Conferência apresentada durante as Jornadas Internacionales de Literatura Infantil y Juvenil 2015 – 23 de abril a 20 de maio – em Santiago e em sete cidades argentinas.

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  • Adolfo Córdova

    Nasceu em Veracruz, México, em 1983. É jornalista, escritor e promotor de leitura radicado na Cidade de México. Mestre em Livros e Literatura Infantil e Juvenil pela Universidad Autónoma de Barcelona, escreve regularmente no jornal Reforma e em outros meios digitais e impressos, colabora com a Biblioteca Vasconcelos. Membro da Rede de Apoio da Emília. Mantém o blog Linternas y bosques.

    AdolfoCordova@revistaemilia.com Córdova Adolfo

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