Imagens nos livros ilustrados/Palavras nos livros ilustrados

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leonardsmarcus@emilia.org.br Leonard S. Marcus

Recentemente, em março de 2021, a página “Fairtales: The Stories, the People and the Magic of BCBF”, do site da Feira Internacional de Livros de Bolonha, publicou um texto do historiador e crítico de livros para crianças Leonard S. Marcus, para divulgar um novo prêmio, o “Astra International Picture Book Writing Contest”.

A originalidade desse prêmio está no fato de se destinar a escritores – e não a ilustradores –, apesar de envolver livros ilustrados, ou livros-álbum, nos quais as imagens desempenham um papel incontestável.

Originalmente chamado em inglês picture book, o livro ilustrado passou a ser designado por uma palavra única – picturebook – depois que a pesquisadora Barbara Baden o definiu como um objeto que resulta da combinação entre texto, imagem e design:

“Um picturebook é texto, ilustrações, design total; um item fabricado e um produto comercial; um documento social, cultural e histórico; e, acima de tudo, uma experiência para uma criança. É uma forma de arte que se apoia na interdependência entre imagens e palavras, na disposição simultânea de duas páginas espelhadas e no drama da virada da página. Em si mesmo, suas possibilidades são ilimitadas.” 1 Ver BADER, Barbara. American Picturebooks: From Noah to the Beast Within. New York: Macmillan, 1976.

O prêmio, cuja entrega ocorrerá em 4 de outubro de 2021, envolve três categorias: 10 mil dólares para o vencedor, 5 mil dólares para os três concorrentes que ficaram em segundo lugar e mil dólares para os seguintes vinte classificados.

O júri foi constituído, além do próprio Leonard S. Marcus, por outros seis representantes de vários países, entre os quais estava Dolores Prades, fundadora, diretora e publisher da Emília.

Leonard S. Marcus é um consagrado crítico de literatura infantil em língua inglesa e recentemente começou a colaborar com a Editora Astra, criadora do prêmio. Embora seu objetivo ao escrever fosse convidar escritores para participarem do concurso, o texto publicado no site da Feira de Bolonha apresenta reflexões tão vigorosassobre o livro ilustrado que com certeza pode interessar a estudiosos e interessados no tema. Reproduzimos a seguir um trecho desse texto.

Lenice Bueno

O que faz com que um livro ilustrado seja um livro de qualidade? Artistas, escritores e editores vêm se fazendo essa instigante pergunta por uns bons cem anos! Palavras e imagens… imagens e palavras. É preciso criar mágica quando se alcança a exata combinação dos dois – mas não existe fórmula mágica para chegar a um bom resultado. Um pouco de história pode, entretanto, pelo menos, nos dar umas poucas e boas dicas.

Randolph Caldecott 2 Randolph Caldecott (1846-1886) foi um ilustrador britânico que, ao lado do impressor Edmund Evans e de artistas como Walter Crane,  Kate Greenaway e outros foi responsável pelo que ficou conhecido como a “Era de Ouro” (The Golden Age) dos livros infantis na Inglaterra. Edmund Evans criou novos métodos de impressão que facilitaram o uso de cores e possibilitaram que texto e ilustrações fossem reunidos na mesma página, causando uma revolução no processo de criação dos livros ilustrados. O trabalho de Caldecott foi tão importante que seu nome foi dado a uma prestigiosa medalha, a Caldecott Medal, concedida anualmente nos EUA ao ilustrador cujo trabalho mais se destacou. – o maroto e visionário ilustrador da era vitoriana – merece nosso reconhecimento por ser o artista que reinventou o livro ilustrado como a forma de arte mais vigorosa que conhecemos atualmente. Caldecott jogou fora a velha e estática forma de organizar palavras e imagens na página como colunas de tijolos, criando, em vez disso, cenas dinâmicas desenhadas com um senso de liberdade e um olhar dirigido para a ação que frequentemente parece chegar no limite da animação. Caldecott sabia tudo sobre o espaço em branco, tudo sobre como dizer “mais com menos” e tudo sobre como juntar palavras e imagens num tipo vigoroso de dança que flui livremente. Os artistas criadores de livros ilustrados nunca deixaram de aprender com seu exemplo de gênio – muitas vezes, sem saber disso – ao dedicarem seu tempo para observar de perto o trabalho prestigioso de um dos estudiosos e admiradores mais ardorosos da obra de Caldecott, Maurice Sendak.

Não sendo ele mesmo um escritor, Caldecott pesquisou uma variedade de fontes de textos para ilustrar. Em alguns livros, ele simplesmente pegou versos infantis (“nursery rhymes”) favoritos das crianças, como “Hey, Diddle Diddle”, 3A “nursery rhyme” é algo semelhante ao que chamamos no Brasil de “parlenda”. Uma tradição inglesa, ela se constitui em uma forma típica de versos de non sense para crianças pequenas, como “Hey didle-diddle”, que não tem tradução. e lá se foi, criando sem parar um mundo visual profundamente elaborado ao seu redor. Para A divertida história de John Gilpin (The Diverting History of John Gilpin), seguiu um caminho diferente, ao escolher uma balada de movimento mais rápido (que havia sido originalmente escrita para adultos), sobre as desventuras de um homem desastrado montado sobre um cavalo desgovernado.

Imagens de Randolph Caldecott para The Diverting History of John Gilpin.

Será que as crianças se interessariam por um livro que não colocava uma personagem infantil no centro do palco? Claro que sim – se a história e as imagens fossem suficientemente exuberantes e dessem a elas a oportunidade de rir livremente do comportamento ridículo de um adulto. Tomi Ungerer, John Burningham e William Steig – todos eles deram continuidade a essa inteligente descoberta sobre as histórias que as crianças adoram nos dias de hoje.

Página dupla In The Night Kitchen, de Maurice Sendak, não publicado no Brasil.
Capa de O homem-lua, de Tomi Ungerer (Martins Fontes)
Capa de Bóris e Amos, de William Steig (Cia das Letrinhas).
Página dupla de We’re Going in a Bear Hunt, de John Burningham.

Por volta dos anos de 1940, também as ideias sobre educação baseadas na nova ciência da psicologia infantil tiveram impacto sobre os livros ilustrados. Os escritores passaram a falar menos sobre o que as crianças deveriam ser e mais sobre como elas realmente são: frequentemente travessas, às vezes mal comportadas e sempre apresentando uma surpreendente e ampla variedade de emoções. Além disso, com o “aprender fazendo” começando a tomar o lugar da memorização mecânica como paradigma na sala de aula, criadores de livros ilustrados procuraram novas maneiras de envolver as crianças como colaboradoras em seus livros. Nem sempre um livro ilustrado precisa contar uma história: ele pode, em vez disso, criar uma experiência imersiva – um “happening” – para uma criança e seus pais compartilharem. A poeta norte-americana Margaret Wise [Brown] considerou seu [The] Noisy Book como um jogo de adivinhar estridente que incentivava as crianças a imitar os sons da rua em uma cidade – a batida de uma britadeira, o estrondo de um caminhão que passa – com toda a força de seus pulmões.

Capa de The Noisy Book, de Margaret Wise Brown, ilustrações de Leonard Weisgard.

O italiano Bruno Munari e a tcheca Kvêta Pacovská criaram livros de imagens com recortes e facas, características de brinquedo, que apresentavam portas de faz de conta para as crianças abrirem, buracos recortados no livro através dos quais as crianças podiam espiar e tantas coisas mais. Com estilo artístico graficamente ousado, Munari e Pacovská, ou o ilustrador soviético Vladimir Lebedev, ou o norte-americano Leonard Weisgard e outros, se moveram habilmente do realismo para uma abstração colorida, abrindo espaços mais amplos para a imaginação da criança florescer. Um dos mais recentes livros do artista francês Hervé Tullet Aperte aqui (Press Here!) é talvez o livro ilustradomais inteligente que já apareceu.

Páginas abertas de Nella Notte Buia (Na noite escura), de Bruno Munari.
Páginas abertas de Alphabet Pop-Up, de Kvêta Pacovská.
Capa de Aperte aqui, de Hervé Tullet (Ática).

Alguns artistas chegaram a dar um dia de folga para seus amigos escritores e criaram seus livros ilustrados inteiramente sem palavras, ou “silent books” [ou livro-imagem], livros ilustrados que convidam as crianças a contarem suas próprias histórias baseadas nas sugestões apresentadas pelas ilustrações.

Anno’s Journey, de Mitsumasa Anno, do Japão, é um gigantesco exemplo dessa postura radicalmente colaborativa. Artistas como da geograficamente distante Coreia, como Suzy Lee, da Colômbia, Dipacho e David Wiesner, dos Estados Unidos continuaram a investigar a miríade de possibilidades apresentadas pelo silent book.

Algumas imagens de silent books

Página dupla de Anno’s Journey (A jornada de Anno), de Mitsumasa Anno
Ilustração de David Wiesner para Tuesday (Terça-feira).
Ilustração de página dupla de Sombra, de Suzy Lee (Cia das Letrinhas).
Página dupla de Migrantes de Issa Watanabe (Selo Emília & Editora Solisluna & Raposa Vermelha)

Deixando um pouco de lado essa categoria especial de livros, uma das mais surpreendentes tendências nos livros ilustrados das últimas décadas tem sido o notável desequilíbrio entre o crescimento explosivo do número de artistas que trabalham com o gênero e o crescimento muito mais modesto no que diz respeito aos escritores. Por que isso estaria acontecendo? Diz-se o tempo todo que vivemos num “mundo visual”: talvez essa percepção difundida ajude a explicar a tendência.

É verdade que os editores confiam mais fortemente nas ilustrações como ferramenta de vendas; que os pais têm mais possibilidades de julgar um livro por suas imagens numa grande livraria; e enquando a arte original de livros ilustrados é exibida em museus e galerias pelo mundo afora, as palavras nos livros são geralmente tratadas como algo secundário.

Seja como for, os escritores de livros ilustrados nem sempre recebem a atenção que merecem! Enquanto isso, do ponto de vista das próprias crianças, as palavras com que têm contato nos seus primeiros livros permanecem significantemente transformadoras: como sua primeira experiência de prazer na audição de histórias, da não ficção narrativa e da poesia; como sua melhor introdução ao poder lúdico da linguagem de que se apropriam e como uma ferramenta para a vida.

Sendo um resenhista com anos de experiência, sempre me encontrei na situação de analisar um novo livro visualmente extraordinário apenas para descobrir, minutos depois, que as palavras que acompanhavam as ilustrações não estavam à altura das imagens. De vez em quando, porém, um livro se revelaria escrito com toda a beleza selvagem, percepção incomum e clareza emocional de uma letra de canção, conto ou poema memorável, fazendo-me recordar mais uma vez que coisa encantadora um livro ilustrado de qualidade pode ser para qualquer leitor, jovem ou velho.

Tradução Lenice Bueno


Imagem: Ilustração compartilhada por @julianmarquina em seu blog.


Notas

  • 1
    Ver BADER, Barbara. American Picturebooks: From Noah to the Beast Within. New York: Macmillan, 1976.
  • 2
    Randolph Caldecott (1846-1886) foi um ilustrador britânico que, ao lado do impressor Edmund Evans e de artistas como Walter Crane,  Kate Greenaway e outros foi responsável pelo que ficou conhecido como a “Era de Ouro” (The Golden Age) dos livros infantis na Inglaterra. Edmund Evans criou novos métodos de impressão que facilitaram o uso de cores e possibilitaram que texto e ilustrações fossem reunidos na mesma página, causando uma revolução no processo de criação dos livros ilustrados. O trabalho de Caldecott foi tão importante que seu nome foi dado a uma prestigiosa medalha, a Caldecott Medal, concedida anualmente nos EUA ao ilustrador cujo trabalho mais se destacou.
  • 3
    A “nursery rhyme” é algo semelhante ao que chamamos no Brasil de “parlenda”. Uma tradição inglesa, ela se constitui em uma forma típica de versos de non sense para crianças pequenas, como “Hey didle-diddle”, que não tem tradução.

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  • Leonard S. Marcus

    Crítico e professor universitário norte-americano na área de literatura para crianças. Formado em História na Universidade de Yale em 1972, ele é também mestre em Artes pela Universidade de Iowa e recebeu o título de doutor honorário do Bank Street College of Education em 2007. Autor de Margaret Wise Brown: Awakened by the Moon e outros 25 livros premiados – entre eles Randolph Caldecott: The Man Who Could Not Stop Drawing, uma biografia do artista inglês considerado o “pai” dos livros ilustrados – escreve sobre livros infantis em língua inglesa e seus autores. Ele é também um dos curadores do Museu Eric Carle, professor na Universidade de Nova York University e na School of Visual Arts e, recentemente, passou a ser Editor Colaborador Astra Book House.

    leonardsmarcus@emilia.org.br Leonard S. Marcus

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