Jon Klassen, a arte de rir de si mesmo

Post Author
AriannaSquilloni@revistaemilia.com Squilloni Arianna

Conta-se que o próprio pai da filosofia ocidental, Tales de Mileto, andando uma noite observando as estrelas, caiu em um poço. Uma criada, vendo-o, riu dizendo que ele estava tão concentrado tentando descobrir o que acontece no céu, que não sabia o que havia debaixo de seus pés.

De acordo com Bergson1O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade, Henri Bergson, São Paulo, Editora Martins Fontes., nos tornamos ridículos e suscitamos risos quando abandonamos a versatilidade humana para nos tornar um tanto mecânicos. Como o filósofo, que extasiado com o céu, não olha onde pisa.

Os personagens de Jon Klassen possuem em sua concepção visual esta mesma rigidez. Por exemplo, o urso que protagoniza Eu quero meu chapéu de volta (WMF Martins Fontes) tem um corpo monolítico em que apenas os olhos têm vida própria e assumem o controle da comunicação. Quase sem querer, nos sugerem a ideia de que são os pequenos detalhes que nos delatam.

Mas além disso, este urso se torna mecânico, porque está obcecado pelo seu chapéu: alguém o tomou e ele o quer de volta. “Você viu meu chapéu? ”, pergunta sempre a qualquer um que encontre, enquanto que as respostas que recebe variam da tentativa de ajudar a completa indiferença, passando pela ocultação fraudulenta. Tão centrado está o urso em buscar seu chapéu que não o reconhece nem quando o vê.

Por um lado, temos um urso cego pela perda de seu valioso bem, um urso reduzido a uma ideia fixa e, portanto, simplificado, mecanizado; por outro, uma realidade que não se encaixa. Uma vez que o cenário, quase teatral, evidencia a ironia de uma resposta em particular, a da lebre.

O cômico no conto do urso se dá em diversos planos, desde o jogo irônico da imagem até a própria caracterização do personagem ridículo em seu desamparo, – e no entanto, não o experimentamos todos, como crianças, diante da perda de nosso chapéu favorito, ou, como adultos, diante da perda da carteira ou das chaves de casa?

Mas o cômico aparece, também, no uso da linguagem que se contradiz na primeira resposta da lebre e, em seguida, na resposta duplicada pelo próprio urso, quando esse passa a se sentir culpado.

Pirandello diria que esse urso renova sua comicidade, descobrindo-se portador de um insuspeito – e ao mesmo tempo suspeito – palavreado, de maneira que se apresenta agora através de algumas características, que não se encaixam com a ideia que tínhamos feito desse urso manso.

Eis que a posse e suas implicações com o poder – a autoridade e / ou dignidade que desprendemos através dela – podem provocar cegueira, tanto que a recuperação do chapéu é acompanhada de um castigo exemplar, ou pelo menos é isso que o autor nos deixa imaginar. Se trata de um ato libertador, total, assimilador, sem apelação possível. De maneira que a única testemunha do roubo desaparece na cara da vitima.

A mesma coisa acontece na história do peixinho que aparece com um chapéu coco que não lhe pertence, mas que decidiu que lhe ficava melhor do que a seu dono, por que o que faz um peixe grande com um ridículo chapéu coco? Quem é esse peixinho para decidir se o chapéu coco cai bem ou não a seu dono?

Mais concentrada e fácil de conseguir é a atenção requerida do leitor no caso do livro Este chapéu não é meu (WMF Martins Fontes). O ritmo da leitura é marcado por um jogo de olhos do peixe grande que desmente cada uma das hipóteses salvadoras do ladrãozinho e, consequentemente, desloca o olhar do leitor, que sobe e desce do texto à imagem.

Texto e imagens em conjunto criam um espelho distorcido do outro em uma clássica relação de ironia. À segurança do peixinho, que nos conta seu álibi e que sabe se salvará, se enfrenta no contraponto à imagem que se encarrega de desmontar todas e cada uma de suas ilusões.

O filósofo se perde nas estrelas, o resto de nós, seres humanos, se perde numa identidade definida através da posse, através de um chapéu que nos diz quem somos, nos oferecendo uma máscara.

Como a maquiagem excessiva de uma velha senhora que provoca o riso, segundo Pirandello2El humorismo, Luigi Pirandello (EO 1908), Cuadernos de Lange, 2007., por contradizer com sua exuberância o ideal de senhora que costumamos ter. Nas palavras de Pirandello o humor nasce disso, da contradição e, diferentemente de Bergson, possui um rasgo marcadamente triste: rimos dos defeitos dos outros, da sua incapacidade de estar à altura de suas próprias expectativas, do seu esforço para estar neste mundo. Mas seu esforço é igual ao nosso no momento em que percebemos não ser nada mais do que marionetes nas mãos da sorte.

E, curiosamente, é quando reconhecemos nos outros, nossas próprias dificuldades, que simpatizamos não tanto com ele, mas com nós mesmos. Nos vemos refletidos em um espelho que nos diz que na verdade estamos rindo de nós mesmos e que nosso riso nos permite conectar de maneira amável – e ainda com inclemente sinceridade – com nossas fraquezas, que costumamos esconder atrás da fachada de dignidade, que vestimos como um chapéu justo antes de fechar a porta de casa e sair a nos enfrentar com outras pessoas que habitam o mundo em que vivemos.

Ao que parece Jon Klassen é bom observador e disso sabe muito. Nos tira a presunção, não tanto ao nos fazer cair em um buraco por distração, mas lembrando-nos o afetuosamente ridículos que somos quando nos esquecemos de viver, para nos obcecarmos por possuir.

Tradução Lurdinha Martins

Notas

  • 1
    O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade, Henri Bergson, São Paulo, Editora Martins Fontes.
  • 2
    El humorismo, Luigi Pirandello (EO 1908), Cuadernos de Lange, 2007.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Arianna Squilloni

    Arianna Squilloni vem da Itália, onde estudou filologia latina e grega. Desde 2002 vive em Barcelona, Espanha, onde em 2008 criou a editora A buen paso, especializada em livros infantis ilustrados. Colabora com revistas especializadas e participa regularmente de conferências e debates. Escreve principalmente para crianças (Em casa de meus avós, Ekare, 2011; Martin, grumete a capitan, Thule, 2013; Um mar de mundos, Thule, 2014). Mas também publicou um livro de poesia para adultos (Invierno de Abril, Edicions SD, 2013) e um ensaio (En el labirinto de la palavra, um guia de viagem, Pantalia, 2014).

    AriannaSquilloni@revistaemilia.com Squilloni Arianna

Artigos Relacionados

7 coisas indispensáveis para um editor de literatura para crianças e jovens

dolores@revistaemilia.com.br Prades Dolores

O jogo secreto de Maurice Sendak

anagarralon@revistaemilia.com Garralón Ana

Não conta pra mim

marinacolasanti@revistaemilia.com.br Colasanti Marina

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *