Literatura e seu potencial transformador

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irenildes@emillia.org Santana Irene

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Pai, me ensina a olhar!”
Eduardo Galeano

Inspirados na experiência de Diego, será que podemos considerar a literatura como uma experiência que nos ensina a olhar? Ou ainda, será que por meio da literatura  também podemos ampliar o nosso olhar?

A minha experiência lendo o livro Um defeito de cor da autora Ana Maria Gonçalves, me influencia a responder sim para as duas perguntas. Desde que comecei a leitura, carrego a história comigo e fico tentando lembrar dos detalhes das ruas de Salvador na Bahia, mesmo já tendo passado diversas vezes por elas quando visito minha família, o livro me chama atenção para miudezas que na minha próxima viagem quero conferir de perto. E não é apenas os detalhes da cidade que tenho vontade de conferir, também tenho sido instigada a pesquisar sobre a história não-contada da escravização dos povos trazidos do continente africano e a ampliar meu conhecimento sobre as inúmeras revoltas e resistências silenciadas nos livros de história que fizeram parte da minha formação básica. Todos esses movimentos desencadeados por esta obra literária também aumentam o meu interesse em saber não só sobre a história do Brasil mas também sobre a história da minha família e sobre a minha própria história. Não há como negar este livro está me ensinando a olhar.

Muito além dos objetivos pedagógicos, algumas obras literárias como esta são capazes de mobilizar sentimentos, sensações e até nos convocar para a ação. Além disso, não podemos esquecer que a literatura também pode ser política e uma forma de resistência, nos provocando a questionar convicções e a refletir sobre a nossa realidade. A autora Conceição Evaristo (2020)1Conceição Evaristo | Escrevivência, Leituras Brasileiras, 06 fev. 2020, 23:17 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QXopKuvxevY, acesso em 20 jan. 2022. relata que o discurso ficcional pode cobrir uma certa lacuna que a história como ciência têm e que a literatura pode preencher este vazio, principalmente no que se refere a história das populações negras. Porém, o que normalmente vemos nas obras de autores, na sua maioria brancos, é a aparição distorcida de pessoas negras que na maioria das vezes reforça preconceitos. Estas obras cumprem o contrário de ampliar o nosso olhar, elas muitas vezes fazem a manutenção do racismo estrutural e normalizam violências e opressões sofridas pela população negra. Por isso, é importante que os autores brancos não só revejam como retratam as pessoas negras em suas obras, mas também que os autores e autoras negras tenham cada vez mais espaço e incentivo para publicarem as suas obras, para que elas possam chegar não só nas livrarias mas também nas escolas. Atualmente, mesmo com a lei 10.6392 A lei 10 639 é uma lei do Brasil que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. , a maioria das escolas não possuem um acervo consistente com autores e protagonistas negros. Com isso a literatura que poderia cumprir não só um papel pedagógico mas também transformador, tem na verdade contribuído principalmente nos acervos disponibilizados nas escolas públicas, com a manutenção de narrativas brancas e eurocêntricas.

Esta escassez de autores e livros protagonizados por negros nas escolas é uma das tantas formas de silenciamento da população negra. O professor Kabengele Munanga (2010)3MUNANGA, Kabengele. Nosso racismo é um crime perfeito. Entrevista concedida à Fundação Perseu Abramo, 08 out. 2010. Disponível em:  https://fpabramo.org.br/2010/09/08/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito-entrevista-com-kabengele-munanga/. Acesso em 20 jan. 2022. em uma entrevista, fala sobre como o racismo no brasil é um crime perfeito e cita uma frase de Elie Wiesel que diz que “ o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda é pelo silêncio”. Ele nos chama a atenção de que o silêncio é a maneira de matar a consciência de um povo. Por isso, legislações como a lei 10.639 de ensino da cultura negra, são extremamente importantes para por meio da educação provocar uma mudança de consciência que podem sustentar transformações estruturais no Brasil. Ele ainda destaca que introduzir a história do negro no Brasil é parte do processo de construção do orgulho negro. Para que de fato a lei seja implementada de forma consistente é importante que haja o compromisso da gestão, revisão do projeto político pedagógico, investimento na formação de professores e em obras literárias que permitam ampliar as visões de mundo dos estudantes, disponibilizam novas narrativas, estimulam a convivência com as diferenças e também despertam interesse dos estudantes pela sua própria história.

É importante destacar que a leitura pode nos abrir para novos mundos, mas que não devemos esquecer que a escrita pode nos ajudar a organizar o nosso mundo interno e dar vazão para nossos sentimentos. Conceição Evaristo (2020) destaca a função curativa do processo de escrita, ela relata que o exercício da literatura é a sua maneira de não adoecer, e quando ela fala de adoecimento está falando de adoecimento emocional, para ela a arte é uma válvula de escape e a literatura é a possibilidade que ela tem de sair de si mesma, de indagar e de inventar um outro mundo. Portanto, quando falamos de literatura devemos estimular não só a leitura mas também o processo de escrita, este estímulo é relevante tanto para que os estudantes tenham um espaço criativo para expressar seus sentimentos e vivências, mas também para que tenhamos novas gerações de escritores e que a diversidade do Brasil esteja representada na literatura tanto nos personagens como nos autores. E se você chegou até aqui e está com vontade de ampliar seu repertório ou de levar para a sala de aula autores e protagonistas negros, veja a seguir a minha sugestão de obras para ampliar o seu olhar:

  1. Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves
  2. Torto Arado – Itamar Vieira Junior
  3. Eu Tituba, a bruxa negra de Salem – Maryse Condé
  4. O mar que banha a ilha de Goré – Kiusam de Oliveira
  5. Angola Janga – Marcelo D’Salete

Imagem: Danielle McKinney, The secret Garden, 2021.

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  • Irene Santana

    Irenildes Santana (Irene Santana), é psicóloga e educadora, pós-graduada em pedagogia da cooperação e psicologia transpessoal. Atua no desenho e na gestão de projetos educacionais voltados para escolas públicas em território nacional direcionados para recomposição de aprendizagens, desenvolvimento de habilidades socioemocionais, igualdade de gênero e raça. Além disso é facilitadora e formadora de professores, jovens e lideranças comunitárias.

    irenildes@emillia.org Santana Irene

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