Morrer diante das câmeras

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De tempos em tempos se deveria promover nas escolas e universidades o exercício de pôr à prova a linguagem, as palavras. Sobre tudo, porque nos convertemos em sociedades ruidosas, tremendamente estridentes. “Hoje estamos inundados de palavras inúteis, em quantidades enormes de palavras e imagens. A estupidez nunca é muda nem cega”, declarou Gilles Deleuze, pois nessa maré de dizeres, dispor de espaços de silêncio e reflexão a partir dos quais se pode encontrar um pouco de sabedoria, ou simplesmente, algo a dizer, é tão estranho como incomum. Porém a linguagem, as palavras precisam ser postas à prova porque não é o mesmo falar de feminismo hoje e ontem. Feminismo hoje faz referência ao corpo e voz das mulheres, ao direito de escolher, a luta por achatar uma curva de desigualdade que corre em todo sentido. Nem é o mesmo dizer capital, consumo, operários. As ideologias revolucionárias do século passado, não previram nada sobre tornar-se escravo de si mesmo, saltando horas e corpos, como se os limites de nossas capacidades, se medissem grupal ou globalmente. Nem sobre esse progresso estendido a dimensões tão absurdas que aniquilaria capital e trabalho. Ou, como disse Simone Weil, talvez devêssemos “ter suficiente valor intelectual como para perguntarmos se o termo revolução é algo mais do que uma palavra, se tem conteúdo preciso, se não é, simplesmente, uma das numerosas mentiras suscitadas pelo desenvolvimento”.

Weil se fez essa pergunta quando existem provas suficientes de que muitas das revoluções – principalmente, as apresentadas sob aparência de vitória – foram uma maneira de fazer desaparecer “certa forma de opressão para instalar outra nova forma de opressão”. Ou, como ser livres numa sociedade que promove a liberdade? Deveríamos pôr à prova a palavra liberdade, o que significa, a que apelamos? Que tipo de tradução da realidade fazemos quando fazemos uso dela? Porque, talvez, o único espaço em que a liberdade segue tendo sentido é quando está relacionada ao conhecimento, a educação. Mas a dívida que temos com nossa educação pública é tão brutal, que a mesma educação deixou de significar o que alguma vez quis dizer “pessoa educada”.

Ter conhecimento de uma quantidade de dados, porque a formação se reduziu a equações matemáticas, essa é a linguagem que a domina, completar habilidades de maneira que os números fornecidos pelas provas, assegurem educação de “qualidade”. Dados duros que não dizem nada, porque na formação de um indivíduo existem matizes que a linguagem dos números não considera. Se diz “os programas são iguais para todos”, como se essa frase fosse garantia da realidade, de fatos concretos, como se um rapaz da periferia tivesse as mesmas oportunidades que outro de uma escola privada. E já que estamos nisto, a palavra oportunidade também deveria pôr-se à prova, pois o que é uma oportunidade, quando se produz e a quem é dado recebê-la? Os números não consideram casos, pelo menos, não da maneira que a linguagem traduz o cotidiano, iluminando zonas escuras, evidenciando a miséria. Os números são genéricos e as particularidades caem em um poço do qual ignoramos quase todo.

Agora, se efetivamente, considerarmos a possibilidade de pôr à prova a linguagem para entender como modula a frequência que recebemos diariamente, de que forma a traduz e oferece alguma liberdade na hora de escolher nosso compromisso com o uso ou desuso de um conceito, afirmação ou ideia, deveríamos nos deter e pensar quão desumano e miserável pode ser assistir a morte de um homem, frente as câmeras.

Nos apressamos em empunhar da palavra “denúncia” quando filmamos a injustiça, quando acreditamos que essa maré ou corrente de barulho e fúria necessita ver crianças atropeladas e mortas na Rambla de las Flores 1Rambla de las flores se refere ao atentado terrorista ocorrido em Agosto de 2019, em Barcelona.ou corpos caindo das torres gêmeas, ou assistir o momento em que um ser humano se torna um monstro, esse policial animal que esmaga o pescoço de sua vítima, George Floyd, um homem que pede para parar, que grita socorro, que não pode respirar, então o que se levanta junto com a estupefação e a raiva, é a palavra voyeurismo. Porque tampouco significa o mesmo que ontem, o vício de assistir sexo ao vivo e em direto foi substituído pela possibilidade de se ver morrer diante de uma câmera. Que tipo de excitação produz a quem transmite essas imagens? Que falta de empatia os conduz a pular o pudor e a dignidade da vítima? A mãe de Gustavo Gatica 2Gustavo Gática ficou brutalmente ferido nos olhos durante o levante social no Chile, em novembro de 2019. teve que pedir publicamente que não publicassem fotos de seu filho ferido nos dois olhos, porque a massa enfurecida espalhou a fotografia de seu rosto sangrando pelos olhos. Que tipo de animais somos que assumimos que o ferido, torturado ou oprimido, não tem direito a essa intimidade de sua própria ferida?

Denunciar as atrocidades que fale de nossa espécie contra si mesma ou contra o planeta, flora e fauna incluída, não pode nos conduzir ao mesmo nível do ato animal daquele policial que não escuta nem acolhe a dor que entranha das palavras “não posso respirar”. Pensar assim, é substituir uma forma de dor por outra, animando-nos como em um circo com o “venham ver”, porque presenciar o momento íntimo, sagrado inclusive, em que um homem perde a vida, não é uma questão de prazer de nenhum tipo, é um golpe a nossa humanidade, uma queda livre à selvageria.

Para denunciar o racismo, fascismo, tortura, repressão e outras deformações que sofremos a causa da doença mental de superioridade, estão as palavras e imagens quando estas têm sentido, quando pondo a prova nossa linguagem, compreendemos que ao falar de racismo hoje, estamos fazendo alusão a um sistema, não só uma atitude individual, mas a uma máquina que ampara o fato de que uma condição humana pode ser objeto de maltrato, abuso, repressão ou qualquer outra forma de crueldade. Não existe supremacia, exceto na mente de loucos e doentes, indivíduos que por alguma razão não evoluíram ao ponto de entender que, como dizia Natalia Ginzburg, não existem razões de orgulho baseadas em simples condições humanas. Aqueles que exaltam méritos à cor da pele, ao gênero ou condição sexual, sofrem um tipo de afasia, estão desconectados a tal ponto da linguagem, que entendem por orgulho algo que foi dado pelo simples fato de nascer.

Então, deveríamos promover o exercício de pôr à prova a linguagem, as palavras, para que signifiquem, para que tenham peso preciso, para deter essa inflação de discussões sem importância na maré diária de ruídos. Para entender o momento crítico que atravessa nossa humanidade, oscilando entre o humano e o desumano, convém apelar a memória também, para que a História não seja esse mito de eterno retorno, onde o que se refere à política e ao pacto social, vá do autoritarismo a democracia, da militarização ao pacifismo em uma roda interminável. Submeter nossos atos ao pensamento, pondo a prova a linguagem, implica deter-se para pensar aqui e agora, que seres humanos queremos ser, que tipo de sociedade queremos construir.

Tradução Lurdinha Martins



Imagem: Ilustração Daniel Kondo, Retrato de João Pedro Mattos Pinto (2005 – 2020).


Notas

  • 1
    Rambla de las flores se refere ao atentado terrorista ocorrido em Agosto de 2019, em Barcelona.
  • 2
    Gustavo Gática ficou brutalmente ferido nos olhos durante o levante social no Chile, em novembro de 2019.

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  • Sara Bertrand

    Sara Bertrand vive e trabalha em Santiago do Chile. Estudou História e Jornalismo na Universidad Católica de Chile, onde lecionou no curso "Apreciação estética de livros juvenis" no diplomado homônimo da Facultad de Filosofía y Humanidades. Escreve para a Fundación La Fuente e ministra oficinas no Laboratório Emília. Foi vencedora do New Horizons Bologna Ragazzi Awards 2017 com La mujer de la guarda (Babel, 2016); do White Ravens 2017 com No se lo coma (Hueders, 2016); da Medalla Colibrí 2019, com o Manifiesto literal, mujeres impresas (Planeta, 2018); do Prêmio Banco del Libro de Venezuela 2016 com Cuando los peces se fueron volando (Tragaluz, 2015), e em 2018, com La mujer de la guarda. Foi traduzida para o francês, catalão, italiano e português. Seus últimos livros são Afuera (2019, Emecé) e A mulher da guarda (Solisluna/Selo Emília, 2018) – este último tendo obtido o Selo de Distinção da Cátedra UNESCO no Brasil, em 2019.

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