Na dúvida, sim

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Recentemente me perguntaram quais são os critérios para a emissão de pareceres das voluntárias para o projeto Remição em Rede1O projeto “Remição em Rede” implementa clubes de leitura em penitenciárias do Estado de São Paulo e tem como base a “lei de remição de pena pela leitura” que prevê que cada livro lido mensalmente pelo detento pode diminuir sua pena em quatro dias. O preso tem a possibilidade de ler 12 livros por ano e conseguir até 48 dias de remição da pena. Esta rede que atualmente beneficia 200 detentos de 10 penitenciárias é composta pelo Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (FUNAP/Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e as Editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia.. “Como vocês tem certeza que o detento de fato leu o livro?”. A resposta parece fácil, mas não é. Isso me remete à uma vivência do passado e uma lição que aprendi com o meu pai.

Ele era um homem de princípios e seguia à risca a função de jurado em audiências populares. Uma vez, ficou dois dias fora de casa, isolado, para emitir seu parecer. Quando chegou em casa, minha mãe perguntou: “culpado ou inocente?”. Tentando chegar numa resposta que estivesse o mais próximo da justiça, disparou: “quem aqui é só culpado ou inocente?”. Ele contou que o júri ficou dividido sem chegar a um consenso, resolvendo votar individualmente. Até o último segundo, meu pai teve dúvidas. No fim, votou sim, para o acusado ficar livre. E explicou: “Tenho para mim que é melhor deixar um culpado livre do que um inocente preso”.

Essa lembrança me volta à tona quando preciso dar meu parecer confirmando se realmente a obra foi lida integralmente a partir da análise de uma resenha escrita pelo detento. Com certeza, não é a resenha que eu, voluntária que analisa e emite um parecer, escreveria. Aliás, nenhum de nós escreveria da mesma forma. São dezenas de opiniões, impressões e sensações sobre uma mesma leitura. Cada um tem seu repertório, seu universo simbólico. É ele que vai gerar conexões diversas com o livro, levar às identificações com cenas e personagens, despertando dimensões conscientes e inconscientes.

É preciso lembrar que a leitura depende de quem lê. Então, volto à resenha que tenho em mãos. O detento e autor dessas quatro páginas é Lucas. Ele se conecta com o personagem principal, sofre suas angústias, cita passagens em que ele está sendo julgado, excluído, em que não é aceito ou amado pelos pais. Lucas comenta as sensações ao ler uma, duas, três passagens da obra. Se indigna, se percebe no mesmo contexto do personagem. Faz uma leitura do livro e também de si, e reflete sobre a própria vida. Sua resenha me emociona. E eu o que digo? Valorizo as escolhas que ele fez ou foco em trechos que não foram citados e podem ser considerados fundamentais?

Claro que no nosso modelo de parecer temos critérios norteadores para analisar a leitura. Verificamos se há citação de personagens principais e secundários, contextualização de tempo e espaço da narrativa, papéis dos personagens e sua importância na obra, conexões com fatos externos ao livro mencionados na resenha. Preenchemos um quadro em que colocamos um X no “sim”, “não” ou “parcialmente” para cada um dos critérios.

Mas imagine o mundo que existe entre essas três sentenças? Quantas nuances temos entre um sim e um parcialmente? É nesse universo que nós voluntárias transitamos, partindo do pressuposto da confiança. Somos corresponsáveis em emprestar um olhar generoso para além dos X nos quadrados.

O nosso compromisso maior é com a formação de leitores. Com a relação que o detento estabelece com as palavras, a obra literária. Com as trocas nos clubes de leitura e com o ato de escrever. Apostamos que a literatura humaniza e amplia o olhar.

É essa essência que levamos para os juízes que recebem as resenhas e os nossos pareceres. O nosso propósito é devolver a cota de conhecimento, cultura e o sentido de comunidade que foram anteriormente negados. O sim do juiz também é um voto de esperança, de que os participantes dos clubes de leitura saiam das prisões tendo passado por uma experiência transformadora. Para quem teve tantos nãos como ponto de partida, a regra é pressupor um sim quando houver dúvidas.

Reconheço lá atrás, nas palavras do meu pai, o legado recebido. Percebo que confiança e esperança são faces de uma mesma moeda, e podem ser aprendidas quando passamos o aprendizado adiante. Dizer sim à literatura e ao leitor é dar lugar ao sonho e imprimir um novo tom no solo onde outros sins serão possíveis.


Imagem: Ilustração Fernando Vilela, Lampião e Lancelot, Ed. Pequena Zahar.


Notas
  • 1
    O projeto “Remição em Rede” implementa clubes de leitura em penitenciárias do Estado de São Paulo e tem como base a “lei de remição de pena pela leitura” que prevê que cada livro lido mensalmente pelo detento pode diminuir sua pena em quatro dias. O preso tem a possibilidade de ler 12 livros por ano e conseguir até 48 dias de remição da pena. Esta rede que atualmente beneficia 200 detentos de 10 penitenciárias é composta pelo Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (FUNAP/Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e as Editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia.

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  • Janine Durand

    Janine Durand é educadora e fundadora da Jnana Consultoria. Responsável por implementar mais de 150 clubes de leitura pelo Brasil, é articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede e articulista da Revista Emília.

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