O belo compartilhado

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En el trasfondo de todos los fondos
no hay más que un sentimiento al que llamamos amor.
Y una extraña cualidad a la que llamamos belleza.

(Carlos Fernández Liria)

Ela estava atenta, concentrada, tão absorta naquele vento nas folhas que ele não se deteve no rosto da mulher, mas seguiu seu olhar e se entregou, também ele, guiado pelo olhar dela, àquele balanço dos galhos, àquele tremor de verdes. Mais tarde ele descobriu que os olhos dela eram belíssimos, mas o que ele então pensou foi que a beleza da mulher estava em sua forma de olhar a beleza, e foi assim que começou a história de amor entre eles. Ela, com ele, queria oferecer tudo de belo que via, que tinha visto; e ele, com ela, abria os olhos para o mundo. Ela nunca dizia “sou feliz”, mas às vezes dizia “que lindo”, e queria sair correndo para dizer a ele e pegá-lo pela mão para que ele também pudesse admirar toda aquela beleza. Ele nunca dizia “como você é linda”, mas às vezes dizia “como é lindo o que eu olho com você”.

O belo clama por ser compartilhado.

Todos conhecemos a experiência. Nada mais bonito do que sair para contemplar as amendoeiras em flor com os amigos, ler lentamente uns versos para quem se ama ou descobrir uma paisagem serrana para os recém-chegados que ainda não conhecem a região. O belo é mais belo quando nos é dado com os outros: os campos florescem mais brancos e perfumados, os poemas soam mais precisos e intensos, as paisagens tem mais cores e se abrem mais e mais fundo quando as apreciamos em boa companhia. Mais ainda, os amigos, os amores e as companhias o são justamente porque se maravilham e estremecem com as mesmas coisas belas. Como se fossem as diferentes formas de beleza compartilhada que fundassem alguns desses diversos “nós” com os quais constituímos nossas vidas.

A dedicatória da famosa elegia de Miguel Hernández diz isso claramente: em Orihuela, seu povo e o meu, morreu para mim como um raio Ramón Sijé, a quem tanto queria”. Não morreu, mas morreu para mim. E não a quem tanto amava, mas com quem tanto amou. Um amigo é amado porque tudo de bom no mundo é amado com ele. E tudo de bom no mundo é amado porque o compartilhamos com os amigos. Por isso sua perda é tão nossa e tão irreparável. Por isso não só morrem, mas morrem em nós, como se nós mesmos ficássemos diminuídos por aquelas ausências dolorosas e incompreensíveis. Como nos parece frágil, sem ele, sem ela, todo início de fevereiro, a brancura dos campos; como são sem graça, sem eles, todo início de novembro, o ocre das encostas; e quão falsa e sem graça nos parece nossa voz quando lemos apenas para nós mesmos aqueles versos que amamos. Quase diríamos que o belo é, precisamente porque o sentimos com outros.

É verdade que todos os dias nos encontramos com caminhantes e leitores solitários. Mas muitos escrevem seus passeios ou suas leituras com a esperança de compartilhá-los com alguém, mesmo um estranho, e todos anseiam poder, um dia, passear ou ler com outra pessoa. Além disso, nem o caminho que percorremos, nem os livros que lemos foram feitos por nós. Sua própria existência já remete a um mundo comum que nos precede. O belo, poderíamos dizer, não aparece, mas comparece, e nesse comparecimento revela o nosso ser-comum. Em seu diário de luto pela morte da mãe, Roland Barthes lamentava não poder mais subir ao apartamento para contar a ela que a primeira neve do inverno havia chegado: “neve, muita neve em Paris; é estranho. Ela nunca estará mais lá para vê-la, para dizer a ela” (2). Na realidade, ninguém vê a primeira neve sozinho. Também aí, nessa brancura suave que chega todos os anos de repente, como uma surpresa, sente-se muito a falta de quem não está, e de quem poderia estar. É por isso que dá tanta vontade de contá-lo a alguém.

Onde está a beleza então? Na rosa, naquele que a olha, ou na estranha sensação de comunidade que o contemplar nos dá, com as pessoas que amamos, amamos um dia, ou que poderíamos amar, a efêmera redondeza de suas pétalas desabrochadas? A beleza não é nem objetiva nem subjetiva, nem mesmo intersubjetiva. Não é o belo “em si”, nem o belo “para mim”, nem mesmo o belo “para nós” que importa. Como então podemos pensar em uma experiência do belo que transcende o eu, e que também transcende os amigos, os parentes os amantes com quem a compartilhamos? Como pensar uma experiência da beleza com todos ou para todos ou, melhor, com qualquer um ou para qualquer um? Como fazer do belo uma categoria não apenas estética, mas também ética e, sobretudo, política? Seria a beleza um dos componentes do nosso ser-em-comum? Seria possível pensar em uma relação entre o belo e o bom? Pode-se falar em um direito à beleza? E esse direito, seria individual ou coletivo?

Quando dizemos que um teorema é verdadeiro ou que uma prisão é injusta, apelamos para uma espécie de razão comum com pretensões de universalidade, a razão pura ou a razão prática, para falar em termos kantianos. Mas a que instância apelamos quando dizemos “isto é belo”? Qual é o salto abismal que separa “eu (ou nós) gostamos” do “isto é belo”? A resposta kantiana é que quando dizemos “isto é belo” sentimos que poderia ser para todos ou, em outras palavras, sentimos que isso que sentimos, o belo, também o sentiríamos se fôssemos outro. O que Kant disse é algo assim como que a beleza nos torna capazes de sentir no lugar de qualquer outro e, a isso, ele chama de “sentimento comum”, algo que em espanhol poderíamos chamar de “senso comum” ou, melhor, “bom senso”. Dependeria o belo de algo parecido com um “senso comum”? Não seria a beleza o próprio sinal do comum, do mundo comum, da pertença de todos a um mundo comum? O belo não seria aquilo que pretende, por sua própria existência, ser compartilhado? Não seria a beleza o que nos permite sair de nós mesmos para nos reconhecermos nos e com os outros, em todos os outros, com qualquer um? Todas as leituras políticas da Crítica do juízo, obra que Kant dedicou à razão estética, tentam desenvolver esse ponto.

Em seu livro mais recente, Carlos Fernández Liria nomeia esse sentimento político do belo com uma palavra que não é kantiana, mas que nos vem da Revolução Francesa: ele o chama de “fraternidade”. O que sentimos diante da beleza é, em suas próprias palavras, “que estamos sentindo com o coração do outro, que em nossas veias circula o mesmo sangue, que somos parentes consanguíneos dos demais seres humanos, ou seja , que somos irmãos”. Um pouco mais adiante, “diante da beleza sentimos que sentimos com o coração de todos os outros. E assim temos a certeza de que o mesmo sangue corre nas veias de toda a humanidade. Sentimos o que Robespierre chamou de fraternidade. A liberdade e a igualdade não passam de um pedaço de papel sem a fraternidade. Os três são essenciais para elevar o nível de cidadania” (3). Isto porque se a verdade nos revela que somos iguais e a justiça nos diz que somos livres, o sentimento da beleza nos torna irmãos. Porque não temos escolha a não ser compartilhá-lo ou, melhor, porque não seria beleza se não o compartilhássemos.

É verdade que a experiência da beleza é dada a cada um de nós de um modo singular, que nos encontra sozinhos e nos deixa sem palavras. Mas também nos dá o impulso de convocar os outros para que também o sintam e, além disso, uma grande vontade de falar. Não porque diante de um pôr do sol, diante de um quadro de Goya ou ao sair do cinema onde vimos um filme de Kiarostami, nada precise ser dito, mas porque são justamente essas coisas que fundamentam o mundo comum (as que realmente o fazem comum) a partir do qual o falar se torna possível. Fernández Liria assim o diz: “contemplando essa imensa objetividade que nos deixa sem palavras, lembramos que podemos nos comunicar. E por que? Bem, porque não somos subjetividades solipsistas e incomensuráveis, porque estamos diante de um mundo comum. Não somos intimidades fadadas a fazer piruetas para nos colocarmos no lugar do outro. O outro e nós compartilhamos o mesmo mundo, aquele que temos diante (…). Quando a razão vem para tentar chegar a um acordo, o coração já nos disse muitas coisas, as suficientes para querer falar entre nos. A beleza compartilhada (aquela que comparece entre nós) sustenta o amor e a amizade. Mas quando essa partilha e aparência do belo incluem a todos, então se abre e se constitui esse mundo comum, que é condição não só da linguagem, mas também da comunidade humana e, portanto, da política. Uma política que é desejo (e exigência) de liberdade e de justiça para todos, claro, mas também desejo (e luta por) por uma beleza fraterna e compartilhada.

Além disso, de que serviriam a verdade e a justiça, a igualdade e a liberdade, se não houvesse um belo mundo para defender, comungar, compartilhar; um mundo em que vale a pena viver; um mundo inapropriável que não pode pertencer a ninguém porque apela a todos. É a beleza que nos ancora num mundo em que a brancura da neve, a precisão de alguns versos ou a amplitude de um horizonte nos são essenciais, simplesmente porque sentimos que são belos, que são de todos e que merecem ser defendidos e compartilhados. Talvez seja por isso que inventamos coisas como escolas, universidades, museus, bibliotecas e jardins (de leitura, arte e conversa): para dar espaço à beleza cívica, coletiva, política, democrática, pública, republicana e falada; dar lugar à beleza comum, em comunidade e compartilhada.

Texto originalmente publicado na Revista Jardín LAC, em 16 de outubro de 2020, https://www.jardinlac.org/post/lo-bello-compartido.

Tradução Dolores Prades

Notas

1  Carlos Fernández Liria, poeta, ensaísta e professor de filosofia espanhol. Autor de vários livros sobre filosofia e educação.
2 José Ramón Marín Gutierrez (1013 – 1935), mais conhecido como Ramón Sijé, foi jornalista, escritor e ensaísta espanhol.  O poeta Miguel Hernández (1910 – 1942) escreveu o poema “Elegía” sobre sua morte prematura.
3 Ver Jean Luc Nancy, La comparution. Paris: Christian Bourgois, 2007.
4 Roland Barthes, Diario de duelo. México: Século XXI, 2009, p. 97.
5 Carlos Fernández Liria, Sexo y filosofia. El significado do amor. Madri: Akal, 2020, pág. 239.

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  • Jorge Larrossa

    Jorge Larrosa é professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona. Graduado em Pedagogia e Filosofia, doutor em Pedagogia, realizou pós-doutorado no Instituto de Educação da Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault da Sorbonne, em Paris. Autor de A experiência da leitura. Estudos sobre literatura e formação, Pedagogia Profana. Ensaios sobre linguagem, subjetividade e educação, Entre linguagens. Linguagem e educação depois de Babel, entre outros. Organizou o projeto Elogio da escola, editado em 2017.

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