O que está em jogo na hora da seleção?

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Uma reflexão sobre Somos mesmo todos censores?, de Perry Nodelman

Alguns pensamentos a partir do livro Somos mesmo todos censores?, de Perry Nodelman,  publicado pela Solisluna Editora e Selo Emília, com tradução de Lenice Bueno.

Eis aí um título que todos aqueles que estão às voltas com a seleção de livros nas escolas deveriam ler. Nesta pequenina joia, o leitor encontra dois ensaios de Perry Nodelman, o primeiro escrito em 1992, sob o título Somos todos Censores e, o segundo, produzido 25 anos depois, especialmente para ser publicado pelo Selo Emília, a partir de uma revisão do autor acerca do texto inicial.

Em 1992, Nodelman nos alerta sobre a censura inerente a todo processo de seleção de livros para crianças, inclusive entre aqueles que pregam ser contra a censura. Se escolhemos alguns livros em detrimento de outros, fizemos algum tipo de censura.  Aliás, a própria literatura infantil teria nascido em solo fértil para a censura, na medida em que estabelece assuntos e formas especificamente voltados ao público infantil, cercando o terreno da infância, deixando de fora temas, por vezes, considerados espinhosos demais para as crianças. Temas que fariam parte do cruel mundo dos adultos, mas que deveriam ser protegidos das crianças, evitando certa adultização precoce. Quantos de nós, ao se deparar com um livro cujo assunto é considerado delicado ou difícil (morte, violência, abandono, abusos) não se questionaria: mas para uma criança? Esse tipo de livro? Será?

Àquela altura do mundo e de sua vida, trazendo exemplos domésticos e de sua prática como professor universitário sobre literatura infantojuvenil, Nodelman coloca-se criticamente contra qualquer censura aos livros infantis, argumentando, principalmente sobre como o conhecimento e não a ignorância é a melhor forma de proteger as crianças das maldades do mundo. Se sabemos sobre aquilo que é mal, se pensamos sobre ele, temos mais chance de evitar que esse mal nos assole, que entre em nossas vidas desavisadas. Uma criança que conhece uma história que aborde, por exemplo, uma situação de abuso infantil (evidentemente, com uma linguagem apropriada à infância) e que já pode refletir e conversar sobre isso, pode ser uma criança que saiba se proteger mais diante de uma situação real de abuso que possa lhe acometer.

Falando em situações vividas, Nodelman também aponta para o fato um tanto evidente de que esse mundo infantil protegido e ingênuo está muito mais em nossas cabeças e desejos do que tem correspondência no real. Há milhares de crianças expostas à pobreza, a exclusões de todos os tipos, a diversas formas de abandono, abusos e violências cotidianas. Muitas vezes, queremos protegê-las de ler uma literatura que aborde o mal, o sofrimento, mas como sociedade estamos de fato nos esforçando para protegê-las de viverem tudo isso?

Outro assunto um tanto delicado que o autor trazia em 1992 dizia respeito ao critério de idade, para a escolha de livros. Isso parece mesmo uma erva daninha difícil de exterminar no terreno da educação e da literatura infantil. Vamos combinar que apenas em nossas cabeças (de novo) as crianças de 4 anos são todas iguais ou têm a mesma experiência leitora e de vida, os mesmos interesses, as mesma capacidade ou disposição para ler os mesmos livros. Mas não é assim que agimos quando afirmamos que determinado livro é bom para crianças de 3 a 5 anos, por exemplo? Também não é uma forma de censurar?

Naquele momento, Nodelman era categórico: não era ingênuo a ponto de não achar que se selecionamos, sempre censuramos, mas estava certo de que não deveríamos censurar no sentido de proibir certos livros às crianças, mesmo aqueles que eram considerados de pouca qualidade, duvidosos ou que apresentavam estereótipos. Tudo poderia ser lido, desde que sempre contextualizado. Afinal, somos todos educadores. Outro argumento importante: muito mais que aprender nos livros, as crianças aprendem mesmo é convivendo com certos valores. Muitas vezes, por exemplo, não queremos que as crianças leiam sobre violência, mas se elas estão expostas a situações violentas em seu cotidiano ou a um discurso de ódio (olha aí, nossos tempos), na internet ou  na TV, então… Onde será que de fato aprendem mais sobre violência?

25 anos depois

Claro, ele fala de muito mais coisas nesse ensaio de 1992, fiz aqui um breve recorte. Mas eis que ele retoma esse texto 25 anos depois. O mundo é outro, ele também. Os escritos de 92 seguem em boa parte atuais. O que mudou? Nodelman segue sendo contra a censura, a não ser em certos casos. Quais? Naqueles em que, por exemplo, os livros são carregados de estereótipos. O autor se dá conta de que escreveu e escreve desde um determinado lugar, carregado de privilégios (homem branco, relativamente rico). Essa é uma das grandes mudanças de nossos tempos: não podemos mais ignorar o lugar de onde falamos.  Nodelman não está na pele do negro, do indígena, do homossexual. Como conhecer a sensação de ler um livro que fala sobre pessoas diferentes de mim? Como saber sobre a extensão do dano na criança que lê um livro cujo personagem que tem seu tom de pele, por exemplo, é ridicularizado ou desqualificado? Livros que reforçam certos estereótipos ou exclusões podem, de fato, fazer mal a certos leitores. Devemos ser cuidadosos na escolha. Leia-se: devemos, sim, em certas situações censurar esses livros. Ele cita alguns casos em seu país, Canadá. Aqui no Brasil, tivemos o livro Peppa, de Silvana Rando e temos a ampla discussão em torno da obra de Monteiro Lobato. Certamente um assunto para reflexão.

A seleção de livros e, portanto, a censura de uns em detrimento de outros é inevitável. Diante disso, o autor conclui: “então devemos fazê-la com humildade e com uma percepção constante do quão facilmente isso pode se transformar em algo mais reconhecidamente censório. Talvez fosse melhor fazermos isso enquanto tentamos ter consciência de nossas próprias formas de privilégio e seu possível efeito em nossas decisões de seleção, como elas podem estar nos persuadindo a deixar de fora coisas demais, ou talvez, preciso reconhecer, deixar de fora coisas de menos”.

Selecionar livros para crianças, portanto, exige cuidado, humildade, generosidade e comprometimento com o conhecimento do outro. Conhecimento sobre o mundo em que vivem, em toda a sua complexidade, para que possam pensar sobre este mundo e interagir melhor nele.

Autor: Perry Nodelman
Tradução: Lenice Bueno
ISBN: 978-65-86539-15-8
Idioma: Português
Formato: 13 x 18 cm
No de páginas: 96
Ano de publicação: 2020

Onde encontrar:
Solisluna Editora
Livraria Martins Fontes
Movimento Literário

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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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