O Senhor das Moscas, revisitando William Golding

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O Senhor das Moscas: um novo prefácio1Este texto foi apresentado como projeto final ao curso A literatura me mata – existe literatura juvenil?, organizado pelo Laboratório Emília de Formação e selecionado entre os melhores. A escolha de O Senhor das Moscas, de William Golding, se deu, incialmente, pelo impacto que a obra me causou quando a li pela primeira vez durante o curso e se fortaleceu quando soube que a obra encerra, na história de sua criação, um ato de protesto do autor contra uma certa maneira de conceber a juventude, o jovem leitor e a literatura infantojuvenil.

Conta a filha de Golding2Lord of the Flies: a 60th anniversary celebration ebook. Disponível no link. que, em 1951, seu pai lia para os filhos um clássico da literatura para jovens. Tratava-se de The Coral Island3Ballantyne, R.M. (1858). The Coral Island: A Tale of the Pacific Ocean., uma aventura robinsonesca sobre três garotos que naufragam em uma ilha do pacífico e aprendem a se virar sozinhos. Considerado um dos primeiros livros do gênero hoje denominado infantojuvenil, inaugurou um padrão que se repete até o presente em muitas obras desse gênero. Como costuma ser o caso, ainda hoje, de tantas sagas disponíveis nas coloridas prateleiras de grandes livrarias, a história era vivida por personagens da mesma idade dos potenciais leitores, personagens estes de caracterização pouco complexa e que retratavam modelos a serem seguidos (ou evitados). Coral Island sublinha a “realidade” imediata dos potenciais leitores (por exemplo, embora a história se passe em uma ilha distante, as cenas tendem a se concentrar em detalhes domésticos da sobrevivência: como faziam comida, como construíam abrigos, etc.). Os protagonistas são bons moços, perfeitos representantes de crianças bem-comportadas da era vitoriana, defensores do cristianismo missionário e do imperialismo no pacífico como modo de melhorar a vida de “selvagens”.

Golding resolveu então escrever sua versão do que aconteceria se crianças tivessem que se virar sozinhas em uma ilha. Pai de três e professor do ensino fundamental, tinha confiança em seu conhecimento sobre seus filhos, seus alunos e também sobre a criança que tinha sido. Conhecimento suficiente, segundo ele, para afirmar com segurança que meninos daquela idade jamais se comportariam como aquelas imaginados por Ballentyne. Escreveu continuamente, nas situações mais variadas, inclusive durante férias em casa de parentes, no meio da algazarra das crianças, até terminar e publicar, em 1954, esta bela, porém dilaceradora distopia.

Humanos, demasiadamente humanos…

Você tem em mãos a história de um grupo de meninos que se encontram absolutamente sós, sem nenhum adulto por perto, em uma ilha indefinida, após a queda do avião em que estavam sendo evacuados, durante uma guerra que também não é nomeada. Eles precisam aprender a sobreviver e, inicialmente, se apegam às normas aprendidas em suas vidas anteriores. Aos poucos, no entanto, longes do contexto em que foram criados, os meninos vão revelando seus impulsos mais viscerais. Ao contrário dos “bons garotinhos britânicos” dos livros infantis de seus filhos, Golding retratou crianças como as conhecia: complexas, contraditórias, capazes da mais comovente bondade e da mais aterradora agressividade. Sobre seus personagens, dizia: “não se esqueçam que sofrem daquela famosa doença: a de serem, simplesmente, humanos…”

 Uma escolha para dos jovens

Golding não quis escrever mais uma história para jovens. Se seus personagens mais importantes levam nomes que aludem à Ilha Coral4Ralph e Jack. Não sabemos o nome de Piggy (e isso, como você verá, é muito significativo), mas alude-se em dado momento, de forma irônica, à sua semelhança com o terceiro personagem de Coral Island, Peterkin., isso foi feito em tom de ironia. Seu romance, como toda Literatura, não tem idade. Nega concessões a uma suposta mente imatura e jamais subestima os leitores. Por isso, não irá encontrar aqui um herói com quem poderia, confortavelmente, olhar os outros personagens desde um ponto privilegiado. Nem haverá respostas fáceis sobre o bem e o mal, civilizados e selvagens, mocinhos e piratas. Talvez por isso mesmo, O Senhor das Moscas vem sendo, nessas décadas todas, uma escolha dos jovens, atravessando os acontecimentos que marcaram a segunda metade do Século XX e a virada do milênio, até os dias de hoje. São os jovens que reclamam a obra para si, discutindo-a, recriando-a, tecendo novas tramas ao redor da história, relacionando-a, à sua maneira, com suas vidas. Navegando pela internet, deparamo-nos com produções jovens de arte mangá, poemas, fanfic, ideias para cosplay, quizzes (e.g., “qual personagem do Senhor das Moscas é você?), entre outras manifestações. As leituras se multiplicam a cada resenha, a cada análise minuciosa dos numerosos símbolos presentes na obra e suas interligações (a concha, os óculos, Castle Rock, o cabelo de Ralph, as frases de Simon…). Vemos assim, mais uma vez, que os jovens adotam para si, de forma complexa, certas obras de literatura que muitos adultos, ingenuamente, acreditam ser “difíceis”.

Uma ilha dentro de nós

Não é à toa que a ilha de Golding é tão fascinante. Mais uma vez, a comparação com Coral Island é esclarecedora. Naquele romance infantojuvenil, temos ricas descrições botânicas, imagens detalhadas da exuberante vegetação e da fauna, dá-se nome a tudo. A narrativa de Ballentyne puxa o leitor para o concreto. Parece partir da premissa de que os jovens terão mais facilidade em imaginar (no sentido mais concreto de conjeturar imagens), quanto mais detalhes concretos forem oferecidos. Em contraste, Golding nos oferece uma ilha sem nome, um mato genérico, até as frutas que os meninos comem são anônimas. Destaca-se a opressão de um mundo em que nada que fazia sentido antes parece se manter em pé. Como afirma Ralph em dado momento, ao constatar como as feições dos colegas mudam segundo a luz do dia: “Se rostos mudam quando iluminados de cima ou debaixo… o que é um rosto então? O que é qualquer coisa?” (p. 29, tradução minha).

A história começa perto da praia, e na praia se mantém enquanto os laços com o além-mar ainda são fortes. A praça pública, o poder consensual, a organização da vida e do espaço (lugares para comer, para dormir, para brincar, para fazer as necessidades…) ainda se sentem necessários. A esperança do retorno se mantém acesa com o fogo que dia e noite é alimentado para que a fumaça seja vista de longe. Aos poucos, porém, assim como a malha de suas roupas, esses fios que uniam as crianças ao mundo que conheciam vão se desgastando. A narrativa, então, adentra cada vez mais a ilha, aproximando-se de seu centro escuro, de sua parte “pouco amigável”, como é chamada por um dos personagens. Assim também, vamos penetrando gradualmente nas camadas menos conhecidas, menos re-conhecidas, menos amigáveis dos garotos e, consequentemente, de nós mesmos. Cada um dos personagens, como nós leitores, tem sua praia ensolarada, que se abre para o mundo, mas tem também sua face escura, seu coração selvagem. A ilha de Golding é inesquecível porque mora em cada um de nós.

Por que apenas meninos?

Para terminar, não poderia deixar de abordar, muito brevemente, a questão de não haver uma única mulher ou menina em toda a história (a não ser na memória do pequeno Percival, que chama chorando pela mãe no breu da noite).

Recentemente, li algo sobre uma nova versão cinematográfica do Senhor das Moscas, com meninas no lugar dos meninos. Isso gerou um sem-fim de comentários de jovens homens e mulheres, entre divertidos, indignados e estupefatos. Mas também reacendeu a pergunta: “por que só há meninos na obra?”. Creio que a resposta simples é que a história é essa, e que, se fossem meninas, a história seria diferente, nem que seja por esse fato. Mas, é claro, há outras questões importantes, e muitas delas levantam calorosas discussões entre os jovens. Não quero me adiantar sobre nenhuma delas, mas prometo que, seja você do gênero que for, não lhe faltará aqui alimento para seu pensamento, não só sobre este tema, como também sobre infinitos outros. Porque assim é a Literatura: não nos dá respostas, mas nos instiga a fazer perguntas insólitas e, sobretudo, respeita nosso direito a imaginar novas possibilidades. Como afirmou William Golding, ao receber o Prêmio Nobel da Literatura em 1983, “as palavras podem, por meio da dedicação, da paixão e da sorte do escritor, provarem ser a coisa mais poderosa do mundo.”5Discurso de William Golding ao receber o Prêmio Nobel.


Imagem extraída do blog Pílulas em Brasa, http://pupilasembrasas.com.br/2016/07/livro-o-senhor-das-moscas/.


Notas

  • 1
    Este texto foi apresentado como projeto final ao curso A literatura me mata – existe literatura juvenil?, organizado pelo Laboratório Emília de Formação e selecionado entre os melhores. A escolha de O Senhor das Moscas, de William Golding, se deu, incialmente, pelo impacto que a obra me causou quando a li pela primeira vez durante o curso e se fortaleceu quando soube que a obra encerra, na história de sua criação, um ato de protesto do autor contra uma certa maneira de conceber a juventude, o jovem leitor e a literatura infantojuvenil.
  • 2
    Lord of the Flies: a 60th anniversary celebration ebook. Disponível no link.
  • 3
    Ballantyne, R.M. (1858). The Coral Island: A Tale of the Pacific Ocean.
  • 4
    Ralph e Jack. Não sabemos o nome de Piggy (e isso, como você verá, é muito significativo), mas alude-se em dado momento, de forma irônica, à sua semelhança com o terceiro personagem de Coral Island, Peterkin.
  • 5
    Discurso de William Golding ao receber o Prêmio Nobel.

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  • Eileen Pfeiffer Flores

    É Doutora em Psicologia e Professora-Adjunta no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Coordena o Projeto de Extensão Continuado Livros Abertos (www.revistalivrosabertos.org), criado em 2011, em que estudantes universitários, professores da rede de ensino e outros membros da comunidade atuam como mediadores de leitura junto a crianças e jovens em escolas, abrigos e comunidades. O Projeto, por meio de palestras, rodas de conversa, oficinas e outros eventos, busca criar espaços de debate e reflexão crítica sobre literatura infantojuvenil, leitura compartilhada e formação de leitores, integrando pesquisa, extensão e ensino em um contexto multidisciplinar.

    EileenPfeifferFlores@revistaemilia.com Pfeiffer Flores Eileen

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