Palavra boa é bicho solto

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É com alegria, artigo raro nesses tempos, mas tão imprescindível quanto respirar, comer e abraçar as pessoas que digo: acesso importa.

Acesso. Por via fluvial, por via aérea, por chão de terra vermelha ou asfalto que já dizimou qualquer possibilidade de árvore. Acesso. Nem que seja pela fresta ou pela desajeitada festa que seja.

Por que ali do outro lado tem gente. E tem quem esteja na força bruta e linda das experiências iniciais. E sempre haverá. É imperativo a gente nascer, crescer e buscar viabilidade nesse mundo. E não conheço viabilidade maior e mais vinculadora do que encontrar um eixo narrativo para si. Eu explico. A percepção acachapante de se perceber parte de uma narrativa. É forte e faz querer seguir adiante.

E as possibilidades da palavra fazer esse elo são muitas. Palavra falada, cantada, narrada com corpo ou só voz, palavra brincada, comida como receita ajeitada, como quadrinha, trava língua improvisada como repente regular com ou sem métrica solta ou escolhida a dedo e virtuose. Palavra em registro histórico ou palavra dos grandes mestres dos terreiros e quintais. Palavras de tantas sonoridades ressoando em tantos corpos de uma malha rompida e refeita de tessitura complexa como são as palavras faladas no Brasil.

Até que a menina saiba cantar sua folha frase, do relato presente no emocionante trabalho de pesquisa de Estela Caputo. Há de estar mergulhada nelas as palavras e as histórias. Mas preciso alertar você que lê. Há uma selvageria misteriosa que rege a aderência das palavras ao corpo, ao intelecto ao coração de cada um de nós.

Não é toda história, palavra ou música que adere em cada corpo. Como uma bromélia não se hospeda em qualquer árvore. Por isso a vastidão de possibilidades importa. Importa também a terra fértil do tempo e dos sentidos construídos coletivamente no terreiro onde se planta palavra, se cultiva silêncios, se refaz no tempo o espaço de palavra florescer.

Diante de olhos pequenos, ávidos, imaginações abertas é uma alegria incandescente quando uma história vira um livro. Essa carta de amor que se pode morar nela. É uma força que adultos desenham, escrevem e juntos consolidam o espaço da literatura para a infância. Para a juventude também e para a vida adulta por que até depois de existir ainda seremos as histórias. É essencial que se preserve cada etapa da criação literária os debates a noção de que escrever e ilustrar para criança é algo cuja complexidade deve ser preservada como floresta vasta e absolutamente viva.

Volto agora ao começo. Acesso importa. Ao livro. Às histórias. E é nessa intersecção que nascem minhas perguntas. O livro ilustrado para a infância é nesse momento, ou a maior parte dele escrito no sudeste. Ainda que muitos pesquisadores circulem até outros territórios e teçam escutas e pesquisas preciosas, são suas as narrativas a respeito do que ouviram ou é seu o projeto gráfico as escolhas as parcerias os direitos sobre a obra.

Lembro muito pouco de conhecer o nome das fontes. História narrada por José Maria de tal cidade. Foto não lembro de nenhuma.

As histórias têm um refúgio chamado tradição oral, uma fonte energeticamente tão consistente como magma que circula no centro da terra como sangue nas veias como pertencimento líquido para onde sempre podemos voltar mas, vejo aí um perigo. A invisibilidade. Quem são as comunidades? As pessoas? As fontes? Se o samba bebeu dos terreiros, quais foram? O que protege seus direitos autorais? O que nessa lógica da propriedade privada sobre o patrimônio intelectual preserva os donos, guardiões da oralidade?

Talvez seja romântico pensar que são encantados e desprovidos dessas necessidades capitalistas. Vivem no sagrado Brasil Profundo. Que possam ganhar a superfície do reconhecimento material e sejam erguidos ao status de mestres, como vi uma vez serem os criadores Nordestinos repentistas, xilogravuristas e tantos outros em uma bonita Bienal do Ceará em um tempo não tão distante.

Percebo que há dois pesos e duas medidas: o direito à propriedade intelectual no livro publicado e a terra livre da oralidade. Quem dera todos tivessem nome e direitos. Percebo por que circulo entre esses universos há quase 24 anos como narradora e escritora. E nesse tempo que me emociono, agora já quase um quarto de século, vi muita gente corajosa cruzando estradas,rios, atravessando verdades, despindo saberes, calando diante do desconhecido com malas grandes e pequenas trabalhos consistentes outros mais frágeis ( para usar as palavras do meu bonito amigo giuliano tierno que para falar de trabalhos ainda com muito a descobrir chamou de frágil e achei a coisa mais bonita de se dizer quando como a gente olha para um bb prematuro e ao chamar de frágil já pressupõe que sua força não tarda a vir)

E confesso que já vi com surpresa livros primorosos se esvaziarem de sentido diante de contextos os tornavam estrangeiros demais. Já vi narradores muito atrapalhados cujas escolhas eu não faria serem absolutamente amados por experimentarem um grau de abertura ao seu público que me desconcertou. Já vi narradores virtuosos milimetricamente intimistas e os admirei, já experimentei ser chamada de Mick Jagger das crianças (por um jornalista de verdade, daqueles raros) quando contei histórias em uma virada cultural para um mar de crianças, ah que alegria me deu esse título! Já vi narradores se acharem sacerdotes e agirem no retalho a palavra dos outros narradores como crítica especializada, já vi escritores com a ilusão de que poderiam chancelar ou não os narradores sobre como e se contariam suas histórias. Já vi gente reduzir a vastidão de alcance de um livro e uma história a limitante juridiquês. Quem em sã consciência agiria para enfraquecer o mercado editorial já tão atacado? Já vi gente a pleno pulmão, braços cheios de livros variados para tentar fazer chegar algum livro como uma bromélia nova para uma árvore solitária. Já vi professores emocionados por ter acesso ao livro. Já viajei com bagagem demais e voltei com menos objetos, menos livros, menos certezas e mais daquela substância viva e irrevogável chamada escuta.

Que gente bonita se dispõe a correr quilômetros para fazer chegar palavra. Que gente bonita chama pra perto todo tipo de história em festivais, escolas, bibliotecas, praças públicas. Que gente bonita canta toda noite de festa as coisas que não podemos esquecer. Quem dera soubéssemos sempre a origem e seus nomes e seus rostos para dar crédito. Quem dera não dependessem dos pesquisadores do sudeste para serem reescritos.

Do outro lado do livro há crianças, infâncias, contextos, perguntas e experiências que carecem de palavras diversas e farta. Narradores diversos e vastos. Professores diversos com seus corpos e entendimentos únicos. Um desafio gigantesco num país de proporção continental uma tessitura de saberes maravilhosamente complexa. E sonho o dia que esses saberes feitos de palavra e gente sejam tão reconhecidos remunerados e creditados.

E hoje, só hoje gostaria de experimentar a sensação de que escritores, ilustradores, narradores ,professores, editores, mestres artesãos da palavra e das músicas, comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, caiçaras, bibliotecários, agentes de leitura, articuladores culturais pertencessem a um pacto único de amor pelas palavras e pelas infâncias e pelo direito a fabular. Palavra boa é bicho solto.

Imagem: acervo de Kiara Terra

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  • Kiara Terra

    Nasceu em São Paulo e sempre gostou de inventar palavras. Cursou Arte Dramática no Célia Helena Teatro-escola e Comunicação das Artes do Corpo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com habilitação em Performance Arte. Em 1998 iniciou a pesquisa do método de narrativas colaborativas a partir da escuta das perguntas do seu público. Fundou A história Aberta que integra oralidade e improvisação. Em cada história narrada o público torna-se coautor do espetáculo com perguntas curiosas e memórias surpreendentes que torna-se parte da história narrada. Viajou por importantes iniciativas ligadas à defesa dos direitos das crianças e jovens com fundações nacionais e internacionais. Publicou livros de literatura infantil e sobre literatura. Atualmente mora em Portugal e é doutoranda em Sociologia da infância na universidade do Minho.

    kiara_terra@revistaemilia.com Terra Kiara

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