Papel em branco

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O que é uma folha de papel em branco para uma criança muito pequena? Ou mesmo para uma criança já letrada, um adolescente ou para nós, adultos?

O que é estar diante de uma folha de papel em branco, diante de um espaço no qual todas as possibilidades de representações e anotações gráficas – verbais, visuais, musicais – estão em estado latente, pedindo para serem acordadas?

O que significa estar neste lugar quando e onde é possível acontecer tudo?

Edith Derdyk-Paço das Artes
Vento branco, Edith Derdyk, 2005. Paço das Artes (foto Gal Oppido)

Uma folha de papel em branco é, de fato, um espaço movente para todos: seja criança, adolescente ou adulto! E por muitas e muitas vezes, estar diante de uma folha de papel em branco, potencializando todos os nossos possíveis e impossíveis, provoca um estranho afastamento de nós mesmos. Este estranho afastamento pode ser provocado pela vertigem ou miragem que a brancura de uma simples folha de papel nos suscita. Talvez muitas dessas dificuldades se deem quando os códigos de representação, que funcionam como modelos a priori de uma ideia de desenho, desembarcam antes da experiência em si, antes da conquista de uma expressão, antes da descoberta da força da linguagem, antes das experiências de espaço que no corpo são ativados ao traçar linhas, depositar marcas, cindir rastros sobre a superfície da folha de papel.

É muito curioso e instigante constatar a existência de um arco extenso de possibilidades para as linhas traçadas no espaço do papel que podem se transformar em escrita, como grafismos, mapas, notações musicais, equações matemáticas ou figuras, em registros de muitas ordens distintas. Todos esses registros são sinais gráficos carregados de significados. Porém, ao pensarmos no desenho como linguagem expressiva, esses sinais gráficos são imbuídos de tonalidades não necessariamente funcionais, ganhando um relevo singular e poético.

No entanto, quando possuem um destino prévio, antecipados pela nomeação, pela representação, pela designação, pela função, parece que a ordem da experiência originária da ação de desenhar – traçar e marcar linhas no espaço do papel – é tragada por formatos prévios, sendo deletada para uma camada esquecida sob a aparência de um modelo de “bom desenho”. Sempre é bom atualizar que a simples ação de traçar sinais sobre uma superfície pode provocar, em todos nós, descobertas perceptivas e cognitivas, fundantes para a constituição do pensamento e do conhecimento.

Frente à tantas possibilidades e impossibilidades que se projetam, quando estamos diante de uma folha de papel em branco, prestes a mergulhar no primeiro traço e lançar a isca para o desenho se manifestar de forma expressiva e criativa, iremos, aqui neste pequeno texto, refletir sobre os modos de aquisição da linguagem do desenho – expressões de acontecimentos gráficos na superfície do papel, nosso campo eleito da representação. Importante destacar, pois o desenho, linguagem que transita em todas as áreas do conhecimento – arte, ciência e técnica –, tem uma latitude e uma longitude muito mais extensa do que “somente coisa de lápis e papel”, expressão cunhada por Mário de Andrade em seu pequeno ensaio Do desenho1Mário de Andrade, “O desenho”, em Aspectos das artes plásticas no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984., que aponta, sobretudo, as qualidades conceituais, mentais e abstratas que o desenho presentifica, em sua natureza. Se repensarmos estes horizontes mais extensos, podemos ressignificar o desenho quando este é compreendido apenas como “coisa de lápis e papel”.

O desenho é ato perceptivo e cognitivo, simultaneamente, seja para a criança, seja para o adulto. A ação de desenhar não se reduz somente às habilidades manuais, artesanais, materialmente visíveis. O desenho é , sobretudo, construção do pensamento. O desenho – linguagem tão antiga e tão permanente na civilização – atravessa todos os tempos, manifestando-se em distintos suportes, instrumentos, materiais, nos ofertando um repertório extenso de possibilidades espaciais, manifestações e atuações, não restrito e circunscrito apenas dentro do universo gráfico.

De todo modo, quando nos referimos ao desenho como “coisa de lápis e papel”, a ação de desenhar acontece de forma breve e facilmente reconhecível, com certeza, por todos aqueles que freqüentam escolas. O desenho acontece também fora do território escolar, pela sua própria natureza abrangente e transitória e, talvez, até de forma mais extensiva e natural, não apenas utilizando lápis e papel, mas com qualquer material e instrumento que possa aparecer pela frente – qualquer ponta/instrumento (pedra, graveto, as próprias mãos, alfinete, galho…) e qualquer superfície material (vidro, argila parede, chão, terra, muro……): experiências estas que a escola deveria absorver de forma mais ágil e abrangente.

Este modo mais específico e usual do desenho se manifestar como “coisa de lápis e papel”, atende apenas uma das infindas possibilidades de se organizar como linguagem poética, atendendo facilmente às demandas escolares por conta da facilidade dos materiais e, portanto, oficializando e institucionalizando a ação de desenhar como uma ação gráfica, na maioria das vezes sem possibilitar o acesso a outros recursos e procedimentos – sejam estes de ordem material ou conceitual.

Eis a oportunidade de repensarmos o que contém e o que está contido nas distintas reações e atitudes quando estamos diante de uma folha de papel em branco, por vezes inibindo qualquer ação justamente por formalizar esta ação; e por outras vezes desatando um imaginário que aterrisa neste campo eleito da representação – a folha de papel.

Edith Derdyk – Pinacoteca
Onda seca (instalação), Edith Derdyk, 2007. Pinacoteca do Estado de São Paulo (foto Edith Derdyk)

Ao refletirmos sobre os modos de aquisição da linguagem do desenho desde os primórdios da infância, torna-se, portanto, fundamental considerarmos tanto a natureza transitiva do desenho, presente em distintos campos do conhecimento, quanto sua agilidade e flexibilidade para acontecer em qualquer lugar, em qualquer espaço, com qualquer material, em qualquer hora, com qualquer pessoa – seja alfabetizada ou não, seja criança ou não.

A partir destas observações, iniciamos aqui uma breve investigação sobre os impasses que surgem e que, por vezes, nos paralisam quando, diante de um campo movente, provocativo, sugestivo, evocativo tal como é uma folha de papel em branco, a ação de desenhar se torna tão submissa às formas de representação a priori, tão distantes da fluidez do gesto que traça uma linha no papel imprimindo sua força expressiva. Interessante constatar a recorrência deste tipo de congelamento do traço quando o desenho carrega uma idéia de que o “bom desenho” é aquele que é cópia do real, onde o olho é, assumidamente, o dirigente do gesto, se distanciando da compreensão da linha como fruto de uma conexão entre a mão, o gesto, o instrumento e o material.

O desenho acontece de forma mais potente quando a linha é compreendida como extensão do corpo, tal como uma dança no espaço do papel! Quando a linha se trai guiada por modelos prévios, na maioria das vezes a linha surge de maneira impessoal, rígida, sem potência expressiva, isenta de uma subjetividade e, portanto, sem ter chance de conduzir a criança à sua expressão pessoal de forma criativa e íntegra.

Esta reflexão deseja convocar os motivos pelos quais, por tantas vezes, o pensamento congela, a percepção fixa e endurece, o gesto se defende inibindo qualquer ação gráfica sobre a superfície do papel, trazendo à tona a expressão tão recorrente, seja em crianças, adolescentes e adultos: “não sei desenhar”.

O desenho, pela sua natureza, é, em si mesmo, um acontecimento vivo, fugaz, fluido. E essas qualidades estruturam a natureza dessa linguagem. Por isto, pensar os modos de aquisição dessa linguagem desde a infância é fundamental para estabelecer uma verdadeira parceria entre o desenho e a criança, entre o desenho e qualquer um de nós.

Nota

  • 1
    Mário de Andrade, “O desenho”, em Aspectos das artes plásticas no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

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  • Edith Derdyk

    Artista, educadora, ilustradora e escritora - tem realizado exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil (ITO,MASP,MAM,MAC,Paço Imperial e outras instituições)e no exterior(México,EUA,Alemanha,Dinamarca,Colômbia,Espanha, França).Contemplada com prêmios, residências e bolsas, entre estes PROAC_Poesia; Prêmio Funarte Artes Visuais;Prêmio Revelação Fotografia Porto Seguros;Bolsa Vitae de Artes; APCA; The Rockefeller Foundation_Bellagio Center,Itália, acaba de receber o título de Doctora Honoris Causa pelo 17,Instituto de Estudios Criticos, México. Para conhecer a obra e os livros da artista: http://cargocollective.com/edithderdyk ; http://issuu.com/otticaart/docs/ottica_art_magazine__out-nov

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