Para aprender a sonhar

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NeideOliveira@revistaemilia.com Oliveira Neide

Em teoria aprende-se a ler para expandir horizontes, quebrar barreiras, extrapolar e sair do lugar comum. Na prática, será que é este o tipo de leitura que se oferece em sala de aula aos jovens leitores? Quantas interpretações cabem em um texto? Dependendo do tipo de texto há um jeito certo de ler? Longe de querer responder objetivamente a tantas questões, vale a pena refletir sobre o que se espera de um leitor iniciante e pensar na leitura compartilhada como aliada não só no entendimento de obras literárias, mas também de conteúdos diversos.

Supondo que estejamos em uma aula de história com um texto que apresente aos estudantes o assunto “colonização argentina”. O que normalmente um professor espera do aluno? Que aprenda a ler textos informativos ou que se torne competente para ler e aprender certos conteúdos? A educadora argentina Delia Lerner1Delia Lerner é Professora Titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora de Didática da Língua e autora de diversas publicações. Dirige, em colaboração com Beatriz Aisenberg, uma linha de investigações interdidáticas sobre a leitura e a escrita como ferramentas de aprendizagem em diferentes áreas do conhecimento. Integrante da equipe de Cultura do Sindicato Único de Trabalhadores da Educação (Suteba). Atua como supervisora dos projetos de formação de professores em Língua Portuguesa da Comunidade Educativa CEDAC há 18 anos., há anos debruçada sobre estas e outras questões, explica que nos dois casos há um esforço de acomodação e esquecimento de tudo o que o leitor sabe até ali para buscar no texto novas respostas, o que não é bom para a formação do leitor. “Ele deve reorganizar seus conhecimentos prévios a uma nova perspectiva, tentar estabelecer relações que ainda não havia estabelecido”, explica.

Quando o aluno compartilha suas experiências e interpretações, o conhecimento é construído junto e jamais imposto à criança. “É normal que os alunos ignorem no texto informações que não sejam compatíveis com suas ideias”, explica. Em seu método de trabalho, depois da leitura os alunos são estimulados a discutir suas interpretações em duplas, sempre sob a mediação do professor. Essa dinâmica convida a questionamentos que extrapolam o texto.

No exato caso da leitura do texto sobre a colonização argentina, Delia relata que foi questionada por uma das crianças se era intenção dos espanhóis transmitir doenças aos nativos. “É um dado que o texto não explica, mas que dá lugar a uma discussão muito pertinente”, afirma a educadora. Depois de expostas as ideias de todos, a criança em questão chegou à conclusão que mesmo sendo culpados, os espanhóis não disseminaram tais mazelas intencionalmente.

Mas e a leitura de obras literárias? São livres e permitem que as crianças viajem sem limites, certo? Nem sempre. O professor ou o adulto mediador pode achar necessário “garantir” uma determinada interpretação, com listas de perguntas-chave ou técnicas para destrinchar o texto, procurar mensagens ou a “moral da história”. “Com a melhor intenção do mundo, como pais que amam seus filhos e professores que amam seus alunos, não nos damos conta de que queremos que a criança pense como um adulto”, explica a professora Marcela Carranza2Marcela Carranza é especialista em Literatura e livros para crianças e escreve artigos para revistas especializadas em literatura e educação das crianças. Formada na Universidade Autônoma de Barcelona, foi professora de literatura infantil no programa de pós-graduação em literatura juvenil no CEPA da cidade de Buenos Aires entre 2002 e 2010. Atualmente ensina literatura para crianças e jovens e coordena oficinas de escrita em cursos de formação de professores em Buenos Aires. A vinda dela ao Brasil foi resultado de uma parceria entre CE CEDAC a Revista Emília e a Escola da Vila..

Em sala de aula, a natureza da relação do aluno com os professores é sempre assimétrica. “É uma relação na qual o adulto tem mais conhecimento, informação. Não há lugar para que o outro seja ele”, explica Marcela. “Neste sentido, cria-se uma relação de colonização com as crianças.”

“É preciso saber ler livros e crianças”, ela defende. Além da escuta ativa, em classe, da interpretação dos alunos, é importante ler também os sinais como silêncios, gritos e gestos. Eles podem dizer muito sobre como as crianças recebem determinadas histórias. “As crianças têm conhecimentos inesperados, há que ouvi-los”, explica Marcela. Além de evitar a disseminação de alguma “doença de colonizadores”, compartilhar leituras com jovens leitores pode ser uma poderosa ferramenta para experiências mais significativas de leitura para eles e para os professores. Por que não?”

Entrevista Delia Lerner

Além das palestras3Em setembro, a Comunidade Educativa CEDAC promoveu a Jornada de Leitura e Conhecimento, que contou com palestras de duas importantes pensadoras da educação contemporânea: Delia Lerner e Marcela Carranza. Iniciamos a jornada no dia 14 de setembro com Delia compartilhando conosco as reflexões advindas de suas pesquisas recentes, na palestra “Da leitura de textos informativos à leitura para aprender conteúdos de cada área do conhecimento”. No dia 28, Marcela brindou o público com uma fala sobre “O essencial não é invisível aos olhos – sobre a visibilidade da palavra literária”, fazendo-nos refletir sobre o papel da literatura na construção dos conhecimentos das pessoas.
A CE CEDAC convidou educadores, de instituições diversas, além de jornalistas, dentre elas a repórter Neide Oliveira. Neide assistiu às duas palestras e escreveu um texto que revela muito sobre como a discussão sobre o direito à literatura e à educação de qualidade toca a todos, educadores ou não, que se preocupam com a equidade.
, Delia e Marcela também realizaram supervisões com a equipe da Comunidade Educativa CEDAC. Ao final de uma delas, Delia conversou com a jornalista Carolina Glycerio, da CE CEDAC, sobre o professor como produtor de conhecimento. A seguir, destacamos um trecho da entrevista:

CE CEDACNa sua supervisão com a equipe da Comunidade Educativa CEDAC, em torno da formação docente, a senhora nos falou dos conteúdos instituídos que vão se estereotipando na escola e perdendo sentido, e da importância da investigação docente e do trabalho compartilhado entre professores como um antídoto contra a naturalização das práticas escolares. A senhora pode comentar essa questão?

Delia Lerner – Há um lugar onde o papel do professor é um funcionário público (estou falando da escola pública, o papel do professor na escola privada é muito distinto). Ao mesmo tempo, não é um trabalho qualquer, é um trabalho que supõe formar pessoas, que é algo bem diferente de atender em uma delegacia de polícia – que é algo também importantíssimo como trabalho, mas que tem um outro grau de responsabilidade. Como pensar o problema de que a educação das crianças se desenvolve em uma instituição onde os docentes são empregados públicos no sentido de ser um trabalho constante e do mesmo tipo. Da perspectiva da formação docente, a questão é que o professor possa olhar o seu trabalho como um produtor de conhecimento e como um trabalho de discussão e estudo com outros. Há algo que me preocupa porque as instituições parecem ter essa tendência a que tudo se converta em natural – não tudo, mas as rotinas escolares, as práticas que existem há muito tempo. É um problema que excede cada professor como pessoa, é um fenômeno que tem a ver com a história das instituições e da instituição escolar em particular. Aí precisaríamos de ajuda de sociólogos, de antropólogos da educação, de gente que possa nos mostrar o que passa aí e como se pode fazer para sustentar projetos de grupos de pessoas que tenham intenções claras e que não se perca o sentido do projeto apesar da cotidianidade que tem um certo grau de burocratização e de naturalização.

CE CEDACA senhora coloca a investigação como componente fundamental da formação docente e a possibilidade de o professor atuar como produtor de conhecimento, mais do que como mero executor de um plano de aula. Quais condições a senhora considera que o sistema educacional deve assegurar para que isso seja possível?

DL – Eu creio que os professores já produzem conhecimento e que o conhecimento que produzem está invisibilizado. Mesmo nas condições atuais, cada classe, ainda que tenha um componente repetitivo, também tem um componente singular, porque [a cada ano] vai ter outros alunos, que vão fazer outras perguntas, que vão entender outras coisas, que vão me colocar eventualmente uma situação de indisciplina porque o que eu digo vai irritá-los em algum momento não se sabe por quê… Então o professor tem que inventar uma maneira de responder a essa situação porque não estudou isso em nenhuma parte, não pode ter estudado porque não está escrito em nenhum lugar. Isso é o que se pode produzir e de fato se produz na situação mais tradicional. Há estudos muito antigos (da década de 60) que mostram o grande número de decisões que os professores têm de tomar em sala de aula. É um trabalho de uma complexidade enorme, as decisões tomadas implicam conhecimento – que se esteja de acordo ou não com o conhecimento produzido, é outro problema. Mas há produção de conhecimento e é preciso primeiro reconhecer isso. Em segundo lugar, [é preciso reconhecer] que como o ensino é tão complexo – nesse momento histórico, em especial – que o mínimo que temos que pensar é que temos que ter muitas cabeças pensando juntas. Não se pode deixar tudo para a decisão individual. E se vamos sentar para pensar juntos, que produzamos algo.


Imagem: Ilustração de Issa Watanabe.


Vídeos
Palestra Delia Lerner – “Da leitura de textos informativos à leitura para aprender conteúdos de cada área do conhecimento
Palestra Marcela Carranza – “O essencial não é invisível aos olhos. Sobre a visibilidade da palavra literária”

Notas

  • 1
    Delia Lerner é Professora Titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora de Didática da Língua e autora de diversas publicações. Dirige, em colaboração com Beatriz Aisenberg, uma linha de investigações interdidáticas sobre a leitura e a escrita como ferramentas de aprendizagem em diferentes áreas do conhecimento. Integrante da equipe de Cultura do Sindicato Único de Trabalhadores da Educação (Suteba). Atua como supervisora dos projetos de formação de professores em Língua Portuguesa da Comunidade Educativa CEDAC há 18 anos.
  • 2
    Marcela Carranza é especialista em Literatura e livros para crianças e escreve artigos para revistas especializadas em literatura e educação das crianças. Formada na Universidade Autônoma de Barcelona, foi professora de literatura infantil no programa de pós-graduação em literatura juvenil no CEPA da cidade de Buenos Aires entre 2002 e 2010. Atualmente ensina literatura para crianças e jovens e coordena oficinas de escrita em cursos de formação de professores em Buenos Aires. A vinda dela ao Brasil foi resultado de uma parceria entre CE CEDAC a Revista Emília e a Escola da Vila.
  • 3
    Em setembro, a Comunidade Educativa CEDAC promoveu a Jornada de Leitura e Conhecimento, que contou com palestras de duas importantes pensadoras da educação contemporânea: Delia Lerner e Marcela Carranza. Iniciamos a jornada no dia 14 de setembro com Delia compartilhando conosco as reflexões advindas de suas pesquisas recentes, na palestra “Da leitura de textos informativos à leitura para aprender conteúdos de cada área do conhecimento”. No dia 28, Marcela brindou o público com uma fala sobre “O essencial não é invisível aos olhos – sobre a visibilidade da palavra literária”, fazendo-nos refletir sobre o papel da literatura na construção dos conhecimentos das pessoas.
    A CE CEDAC convidou educadores, de instituições diversas, além de jornalistas, dentre elas a repórter Neide Oliveira. Neide assistiu às duas palestras e escreveu um texto que revela muito sobre como a discussão sobre o direito à literatura e à educação de qualidade toca a todos, educadores ou não, que se preocupam com a equidade.

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  • Neide Oliveira

    E jornalista freelancer, formada pela PUC Minas. Mora em São Paulo, onde colaborou em revistas nacionais. Mãe do Lucas e do Filipe, é entusiasta da literatura infantil.

    NeideOliveira@revistaemilia.com Oliveira Neide

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