Peppa e o debate público: relações raciais nas páginas de livros infantis

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Qual é o valor de um debate público? Sobretudo em tempos cuja urgência coletiva é reinventar o parlamento. Parece imprescindível recuperar o lugar seminal de reunir para parlar sobre algum assunto em comum. Na sociedade Dogon, no Mali, essa ferramenta de gestão é chamada Casa da Palavra. Construída no centro da aldeia, os pilares sustentam um teto baixo, de modo a evitar discussões acaloradas.1A pesquisadora Denise Dias Barros, que convive com os Dogons, traz notícias como essa. Não há como levantar e ficar mais alto que os demais. Assim como em outras realidades, é a hora do ponto de vista, da opinião que estabelece a representatividade. É na escuta que reside a chance de redimensionar o detalhe, até então, não notado. O parlatório troca argumentos com a esperança do consenso. Vale estar ali para intervir na governança, ou seja, no direcionamento da vida em comunidade. Portanto, o princípio dessa formação em grupo pressupõe o grupo e a convivência compartilhada que requer ajustes o tempo todo.

E, chego às madeixas da Peppa que tem dado o que falar. Recordando: há poucos dias saiu de circulação a obra infantil Peppa (2009, BrinqueBook), de Silvana Rando, escritora e ilustradora reconhecida no circuito editorial. A decisão, no comunicado oficial, teria sido de comum acordo entre editora e autora a pedido desta. Para quem não acompanhou de perto, Peppa é uma personagem de cabelos crespos fortes e a sua relação com eles é o mote principal desse enredo. A abordagem do tema, desde o lançamento, foi considerada ora material de apoio no combate ao racismo, ora um livro racista.

Esta polarização se radicalizou quando o livro caiu nas redes sociais, pelo canal da estilista Ana Paula Xongani que fez uma resenha crítica (em 2016) com o título Peppa, não! Mais recentemente, motivado pela mesma indignação, o historiador Carlos Machado, autor voltado para o tema ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente, recolocou o vídeo na ordem do dia. A postagem viralizou, multiplicaram-se defesas e ataques acalorados da obra até o desfecho conhecido. E, o debate continua fervendo nas redes. Aproveitando a discussão sobre Peppa, vale abrir um pouco mais o escopo de visão, pois nesse vínculo não estão apenas a escritora e a youtuber. Atrás delas, estão escolas, palestras, programas de TV ou artigos sendo este, mais um deles. Também estão as editoras que investem e se beneficiam com o sucesso ou arcam com o prejuízo de seus catálogos, o livreiro alimentado por expectativas, os mediadores em seu relacionamento com os acervos, o consumidor não, necessariamente, especialista mas, confiante na qualidade de um livro aparentemente ingênuo.

O debate nas redes poderia ser bom, embora fragmentado no seu vai e vem de opiniões. Daí, dois importantes alertas: primeiro, sobre o atual contexto, onde sociedades à mercê dessa tecnologia vivem o acirramento de ideias avessas à escuta. E o Brasil, atualmente um fiapo de República, da mesma forma, encontra na comunicação virtual talvez o único aliado para reverberar as vozes por trás de telinhas que promovem a interação. Segundo, em conexão com o anterior, reside na dificuldade brasileira para discutir o racismo. Pouca escuta e muita língua cristalizada, não constituem um debate. Ah! A velha utopia dos educadores, a hora de falar alternada com a de ouvir. É isto que permitiria novas abordagens para se falar a respeito e, com respeito, sobre uma visão coletiva mais ampla do assunto. Sobretudo, na troca entre quem o vivencia e quem sempre contestou sua materialidade. Relações raciais nas páginas de livros infantis é a pauta aberta para o circuito editorial com o caso Peppa. Porém, diante de todas as dimensões implicadas nos cabelos encaracolados, minha contribuição quer ressaltar o leitor infantil, o mais importante aqui.

Crespos e Encarapinhados

A autora Silvana Rando afirma que o texto foi inspirado na filha de uma amiga de cabelos fortes. Também Ana Paula Xongani afirma que a motivação para a postagem veio do receio da própria filha ter, eventual, acesso ao teor por ela criticado. Embora seu canal não tenha a literatura como centro, os penteados são itens na área da moda que tem na estética afro sua especialidade. O seu posicionamento parte, mas não se limita, ao histórico familiar. Ao evidenciar o fato de Peppa ter sido adotado (Programa Minha Biblioteca, 2010) na rede pública de ensino de São Paulo ela toca na questão do direcionamento da verba pública e da formação de acervos. Sim, porque uma família disponibiliza o que quiser ao alcance de seus filhos. Já o Estado com suas políticas deve administrar a equidade cidadã nas aquisições. A distribuição de Peppa em todas as creches municipais deve ter contribuido para tiragens em torno de 27 mil exemplares até sua retirada de circulação. Os números dimensionam a escala de acesso ao livro em questão.

Não é necessário dar detalhes das narrativas, já bastante exploradas e divulgadas. Basta retomar os elementos iniciais que geraram a polêmica: lá estava ele, um chumaço acima da cabeça. Ok, o narrador tem bom humor. Logo depois, a comparação do fio de cabelo com um fio de aço. Ok, esta alude a qualquer cabelo forte capaz de puxar carrinho de feira e geladeiras em dias de mudança. Ai, entra em cena a mãe de Peppa que corta com alicate um dos fios para fechar pacotes de biscoitos. Neste ponto, nem mesmo a personagem gosta da comparação. E por quê, não?

Esta introdução do assunto cabelo como repertório para crianças traz algo óbvio, muitas vezes obtuso para muitos adultos. Na ilustração, Peppa não tem apenas fios resistentes, mas, crespos. Poderiam inspirar o retrato, entre outros, de crespos árabes, judeus ou de filhos inter-raciais. No comparativo, para todas essas possibilidades, os cabelos afros possuem diferenciais imbricados na história da cidadania negra. No entanto, a associação pejorativa com os termos, chumaço, crespo de aço, remete não a qualquer crespo, mas às expressões racistas tão naturalizadas no passado do pixaim, sinônimo de Bombril.

Pensando nas bibliotecas, a representação de personagens e ambientes sob clichês caucasianos sempre circularam nos acervos sob uma gama de possibilidades. A composição de personagens de origem europeia habita os livros, podem ser homens, mulheres, ou novos gêneros. Há reis e princesas e para os mais republicanos, protagonistas popularescos, malvados, bonzinhos, muito feios ou belíssimos, ricos, pobres, jovens ou muito velhos etc. A ficção não é como são ou vivem na realidade e sim o modo como foram percebidos e representados numa autoria.

O crítico debruçado sobre os aspectos de uma obra vasculha a densidade humana nas chaves emocionais que cada construção encerra. E não estou falando de Dostoievski e sim de clássicos infantis, de fábulas, enfim. Isto para dizer que, quantitativamente e qualitativamente, o protótipo europeu de humanidade é disponibilizado para a infância dentro de um leque de possibilidades. Em outro polo, a presença negra entrou reduzida a poucos tipos, geralmente periféricos, associados à dor, sofrimento e, quase sempre, perdedores sociais quando não, bandidos ou subalternos passivos na trama. O problema reside na pouca oferta do modelo posto na origem africana. Afinal, a realidade altera a representação ou a representação altera a realidade? Editorialmente, a demanda para expandir a humanidade negra, sobretudo sob o ponto de vista da autoria negra, tem sido absorvida pelo setor, ainda de maneira tênue no Brasil. Uma personagem crespa judia pode ser vista em livros em variadas caracterizações apoiadas na particular realidade deste segmento étnico. A amplitude de uma identidade negro-afrodescendente, por sua vez, é bem mais restrita nas estantes. As leituras não são também leituras de mundo? Uma vez que fontes de informação para qualquer criança formar opinião sobre seu coleguinha? O modelo de humanidade negra chegou às páginas pela via dos estereótipos e por um insistente conjunto onde sofrem ou, fazem rir. Mas isso era lá no passado.

Aproveitando o líteroespelho atual, o cabelo encrespado de Peppa é esticado para ser corda em brincadeiras de cabo de guerra. As agressões nos espaços educativos, repuxos, são disputas amparadas em argumentos culturais. Procure colocar-se no lugar da Peppa. Será que o sentimento do peso social da agressão será igual, sendo branco, oriental ou negro? A criança negra dentro de mim diz que não. Ela observaria, muito mais, o quanto o entorno de Peppa a machuca, ora a mãe, ora a escola, ora a cabelereira. Ainda bem que ela tem um bichinho de estimação, (algumas leituras dizem ser um piolho), o único lugar de afeto na história.

A realidade brasileira é muito violenta para o segmento social negro e outras minorias. Racismo não é uma ideia subjetiva. Quem quiser pode pegá-lo nas mãos, por meio dos índices sociais que não deixam dúvidas sobre o contraste para essa população excluída dos espaços de poder. E não me venham com o argumento da meritocracia, que subtrai os séculos de escravidão sob o aparato de ferocidades inigualáveis além da vigência do racismo institucional até os dias de hoje. Portanto, atenção, com o leitor de carapinhas negras, porque a tecla intermitente para sua desqualificação nos enredos é mais complexa do que uma simples insatisfação com os cabelos crespos.

Peppa e o salão de beleza

Nessa linha de mensagens óbvias e obtusas dependendo de quem as lê, há quem apenas enxergue uma personagem que muda sua aparência e se torna refém de imposições que restringem sua liberdade e felicidade, até ela decidir assumir seus cachos. Uns, morrerão dizendo ser ela clara dentro de uma história engraçada e singela a incentivar os cachos naturais. Outros, uma encrespada negra porque construída com associações racistas do passado [cabelo duro, palha de aço..]. O que é um problemão por estar reintroduzindo chavões racistas aos pequenos leitores.

O trecho de Peppa no salão de beleza pode elucidar um incômodo nem sempre notado. Ir ao cabeleireiro sempre foi normal, menos para quem tem cabelos afros. Esse estar fora do lugar se manteve naturalizado até ocorrer uma inversão cultural. Foi o protagonismo de mulheres negras, que foram testando fórmulas de cuidados especiais, umectantes, patenteando-as há mais de 50 anos. A indústria de cosméticos vem criando produtos para desenvolver o potencial de beleza dos cabelos crespos em todas as suas variações. Poderosas, as afrocrespas não são mais, como antes, levadas à sentir vergonha por entrar em um salão de beleza onde recusas grosseiras ou sutis provocavam constrangimentos. A menos que fosse para alisá-los, eliminando, de vez, o volume e a originalidade étnica. Foram, ou não, os ingênuos “livrinhos” de publicidade para a contenção e o desejo de uma aparência mais próxima das heroínas de cabelos lisos? Nenhum senão para a circulação deles e sim a ausência de pluralidade disponibilizada nas bibliotecas.

Na gesta de Peppa, a ambiguidade aparece quando ela sente vontade de ter cabelos macios e sedosos a partir de uma publicidade sedutora. Nesse aspecto, a autora realiza uma excelente desconstrução. Do natural ao transformado e o retorno ao natural poderia ser em qualquer imposição estética. No entanto, alisar o cabelo tem idiossincrasias relacionadas ao orgulho racial, não sendo uma percepção neutra como deixar, ou não, o cabelo branco ou outra mudança qualquer. E como não notar que o oposto do fio forte, seria fraco, ou fino. Peppa quer seu cabelo macio, o contrário de duro. Sem citar o termo, aqui está o retrocesso: o cabelo duro que retoma a semântica do cabelo ruim. E também o sentimento de rejeição para quem tem esse tipo de cabelo. A cabeleireira se espanta com a chegada de Peppa. O cabelo “não bom” precisou de 16 horas e 48 minutos para alcançar o resultado incrível. Essas poucas informações dão a entender que os salões de beleza desprezam o cabelo crespo como se este fosse errado. Reparem que nos anos iniciais de escolaridade se pode, ainda, desconhecer esse juízo de valor que reafirma o padrão mais aceito.

As teorias que usam o constructo branquitude há décadas vem desvelando a manobra onde certo fenótipo caucasiano, simbolicamente, se torna não parte da humanidade e sim o representante da humanidade. Sendo parâmetro, numa escala linear, define sucesso, beleza ou bondade e o afastamento da máxima qualidade vai sofrendo desqualificações imanentes ao instaurar alteridades. Hoje, a pauta da diversidade é vigorosa e prescreve representatividades distintas que considerem a equidade entre elas. Percepções no automático sem ou que neguem criticidade acabam relacionadas à manutenção de privilégios de um grupo sobre outro, vantagens em situações concretas do dia-a-dia. E as mídias, de modo geral, que incluem o livro, expressam e se posicionam, criam abordagens que estão longe do equilíbrio necessário. Isto não é arrumar o mundo e sim abrir o literário para mais pontos de vista que quebrem hierarquias estabelecidas.

Na ordem do dia, o principal desafio para a excelência educacional é o convívio entre todas as diferenças. Especificamente, o impacto para a autoestima negra se dá pela valorização dos fios afros e seus penteados. Autoestima positiva auxilia segurança e promove respeito. De todos para com todos. Difícil? Mas, é perspectiva superar preconceitos inadmissíveis de serem veiculados nos dias atuais e repassados ao futuro.

Peppa se sente livre e feliz com seus crespos. Porém, fortalecer a valorização do crespo não é bem a lógica da resignação que vence no final. Não é porque ele é belo e sim porque não tem jeito. Sendo que nunca resplandecerá como beleza, sugere uma linha evolutiva que inferioriza a referência mulher crespa. O recurso de hierarquizar características físicas demonstra uma intencionalidade prejudicial à totalidade do segmento crespo negro, resgatando dores históricas recolocando constrangimentos. A geração atual de crespas conquistou fios sedosos sendo essa valorização da afro-imagem o que significou muitos empoderamentos.

Nos clássicos europeus, os corcundas marginais e malvados foram relidos como protagonismos de maior espessura. O nariz e a verruga como caracterização das bruxas também deixou de ser a única imagem delas. As releituras estão imbricadas ao tema das representações sociais. Por aqui também há exercícios de Rapunzéis crespas e heróis negros e indígenas não branqueados. E do debate sobre a Peppa também há quem veja a correlação com a história bíblica de Sansão.

O cabelo de Sansão

As mitologias dos quatro cantos do planeta permanecem infiltradas no fazer literário que fala ao espírito de um particular instante. Os cabelos de Peppa seriam similares aos de Sansão?

As interpretações sob óticas estruturalistas, em síntese, pressupõem a busca de sentidos precisos em cada narrativa para então estabelecer comparações. Isto quer dizer que se pode reconhecer um vaso em qualquer trama cultural. No entanto, os significados, forma e conteúdo, variam na multiplicidade dos contextos em que foram concebidos. É como se esse sentido para ser apreendido não devesse ser reduzido à minha concepção de vaso. Eu estou trazendo o exemplo vaso mas poderia ser o relacionamento étnico com a morte ou a imagem de uma serpente. As aparências enganam. Por isso, o cuidado ao circunscrever significados que podem ser diametralmente opostos num cotejo. Não tenho essa pretensão analítica aqui que requer muita atenção mas, não vou negar uma piscadela. Arrisco, então, com brevidade e como desafio aos que queiram aprofundá-la.

Recordando que na narrativa bíblica, Sansão é portador de uma força sobre-humana cuja fonte estaria nos cabelos. E como toda a jornada de um herói, sua grandeza se inicia no nascimento, pois é filho de mãe estéril. E, ao longo da vida, irá galgando a posição de protetor de seu povo.

Explorando paralelos, Peppa como Sansão perde sua força no desaparecer de seus crespos. No enredo, Peppa está ensimesmada na sua própria natureza. Inclusive para desobedecê-la e, depois voltar atrás. É certo que em ambos, a perda de poder está na desobediência e nas mãos de agentes externos, a cabeleireira ao alisar e Dalila ao cortar a os fios de seu par. Sansão se apaixona por ela assim como Peppa em seu desejo e engano pela publicidade. Estas aproximações são bem-vindas. Porém, especulando um pouco mais, o alto valor de Sansão é dado por um deus que lhe concede a força extraordinária para uma ação política: libertar o povo de Israel dominado pelos filisteus. Logo, um deus local que toma partido por este e não aquele povo. Sansão tem a consciência partilhada com esse deus e confia na força, dele recebida. Por similaridade, os fios de Peppa, teriam que ser ungidos por uma energia extraordinária. Portanto, além dela. Onde está o deus de Peppa? Nem ela bota fé em si mesma e nem mesmo é reconhecida por seus pares. Deus, em Sansão, é uma consciência histórica intrínseca a uma identidade de grupo. Falta à Peppa além da consciência de si, a relação com o que lhe daria identidade. Nas tramas, a chave para compreender a estrutura na moral bíblica parece ser a fidelidade. Na narrativa infantil, a resignação pelos fios. E conformismo, empodera algum herói? Portanto, pode haver pontos em comum e desencontros quando o critério do exame for o fortalecimento de identidades.

Relações de poder e o politicamente correto

Alguns símbolos nunca são neutros quando integrados a uma retórica. O cabelo afro é um deles. A disputa entre modelos valorizados e desvalorizados esteticamente é uma luta política. Sobretudo, quando os sinais negativos atribuídos à referência são invertidos e afirmados com sinais positivos. Esse orgulho é um poderoso agente contra o destrato na ação de hierarquizar o mundo. O cabelo black simbolizou o poder negro quando antigos rótulos foram invertidos. A imagem corporal proscrita virou arma política de afirmação histórica levando o insulto a perder sua eficácia de dominação. Enquanto expressão existencial coletiva, o âmbito literário reserva uma audiência identificada com ela. Sem esquecer que o leitor criança tem um adulto mediador do acesso à obra. E, antes que tentem denotar o debate público sobre o livro Peppa como censura à autoria, sugiro uma passagem pela perspectiva do “politicamente correto”.

O dito sendo uma resposta forjada na luta pelos direitos civis afroamericanos que fizeram sentido em outras praças, deixou de fazer vistas grossas para o quanto o cotidiano encobre e solidifica estereótipos intrinsecamente associados à condição de privilégios. O significado surgiu na interlocução com a ótica do politicamente incorreto que reivindica externalizar os preconceitos sociais sem receios de nenhuma ordem. Essa vontade de retorno ao passado também representaria o inconformismo no avanço desses direitos. Se houve um tempo em que briga de marido e mulher ninguém botava a colher, pais podiam maltratar filhos, assédios seguiam naturalizados, foi o debate público que orientou as mudanças. Assim, não tão somente a luta afrodescendente mas, por exemplo, qualquer tipo de humor incorreto envolvendo antissemitismo, islamofobia, homofobia, situações de estupro, racismo em várias dimensões, machismo e outras formas de degradação da dignidade humana passaram a ser problematizados de modo a evitar, enfim, que esta fosse ofensiva para alguma particularidade pessoal ou de grupo. Já o estandarte incorreto costuma ser usado por linhas políticas conservadoras, extremismos que organizados atacam em bando os críticos de discriminação, amparando os discursos de ódio e posturas discriminatórias como o imaginário racista e sexista.

Faz parte do histórico dos movimentos negros, a denuncia de racismo ser taxada de censura. É como se o questionamento vinculado às relações raciais não pudessem se manifestar. Apanhe e fique quieto é o mesmo do silenciamento imposto pelo opressor. Em tempos de pensamento conservador forte, a pressão pelo silenciamento torna mais urgente ainda o parlamento.

E considerando que cada autor é livre para a criação tanto quanto para o apreço da audiência sobre ela, penúria seria reduzir o caso Peppa, qualificando absolutamente a escritora ou desqualificando-a totalmente a youtuber e, vice-versa. Ilan Bremnan chamou de cultura dos ofendidos, a fala de Ana Paula Xongani aludindo este evento ao ocorrido na exposição do MAM, em Porto Alegre. Ana Paula Xongani apenas colocou o ângulo de recepção desse trabalho no canal que ela criou muito antes da polêmica. Sua crítica não foi agressiva com a pessoa autora. Ela, como estilista, tem um olhar enaltecedor e propositivo para com a referência afro, discordando das mensagens que a menosprezam. Carlos Machado, que replicou o vídeo, tem como cerne de seus trabalhos ciência, tecnologia e invenção africana e afrodescendente. Suas pesquisas buscam reverter a vitimização e a ignorância acerca da contribuição africana para a ciência, invisível nos compêndios. Todos os dois são dignos de todo o respeito. E sobretudo, por representarem o aspecto geracional de um debate. Da mesma forma Silvana Rando teve muita coragem para rever um trabalho e se posicionar. O debate é no terreno das ideias e se constitui numa chance para reposicionar percepções. As heroínas de minha mãe não são as mesmas de minhas netas. Estruturalmente talvez mas, as narrativas lidam, conteúdo e forma, com o contexto que as gerou.

Ilan Bremnan expõe seu receio por uma eugenia literária. É o mesmo que imbricar uma sentença racista a uma luta antiracismos. A virulência com que ele pede uma reação à comunidade dos livros se assemelha, não à defesa do literário e sim ao gestar um movimento arrogante que não pondera e apenas adjetiva. A fala que problematiza racismos sempre foi abafada e desprezada. Estranho também supor que crianças expostas à violência se tornam mais fortes submetidas a mais violências. Esse modo de pensar terá que enfrentar as mães delas. Conseguiriam as opiniões dos não ofendidos considerar a afetividade, ou a falta dela, no histórico social particular das crianças negras? Também o cuidado ao educar todas as crianças para perceberem a desigualdade nas relações raciais entre segmentos da população. A arte, própria da criação literária forma sensibilidades. A ênfase que ele dá à infância eu aproveito como derradeiro ponto desta reflexão, motivo dos anteriores.

O leitor criança

Frente as intenções de promover a leitura eu pergunto: vale tudo quando o leitor é uma criança? Quando um pequeno leitor apanha na prateleira um livro, há pesquisadores dedicados à entender os temas implicados desde as manobras do consumismo, à influência de pessoas ou mídias ou mesmo, as diferenças em termos de gênero, grupo socioeconómico e etnicidade. Isto não é colocar a produção sob suspeita com um dedo inquisidor apontado para a criação. É apenas o interesse e a responsabilidade adulta por diagnósticos que possam, eventualmente, servir de base para a produção de conhecimento nesta área. O escritor ou escritora de livros para crianças não precisa entrar nesta seara de preocupações. Para uma autoria, nem mesmo as reações de quem lê são importantes. Até porque, como escritora sei que a criação literária tem autonomia para além de qualquer razão. Ela chega e se impõe. Já os editores podem, ou não, modificar seus critérios para publicação segundo os analistas dessa produção. O que dirá as compras de governo.

Já a criança, entre a palavra e a imagem, gosta ou não gosta e pronto. Mas, hoje existem canais literários que difundem resenhas. Sobre a Peppa, há inúmeras no youtube. Uma delas, usa uma peruca que multiplica o bom humor do texto impresso. Certamente, a plateia deve rir junto com ela. E assim, enquanto a ridicularização do fenótipo segue, a criança negra não expressará que se sentiu ofendida. Apenas internaliza o desconforto e, pode até reproduzir o achaque como rito de elaboração. É de se esperar da pouca idade ter defesas para enfrentar formação de ideias racistas ou machistas ou, homofóbicas, ou antissemitas, islamistas, etc, etc? Estas são questões adultas e cabe ter responsabilidade para intervir, ou não. Dependendo da idade e do trabalho de interlocução, a obra pode facilitar conversas e desenvolver o olhar crítico. Para os muitos pequenos, melhor mantê-las na prateleira de formação adulta caso já tenha sido adquirida. Há a necessidade de e o destino de impostos pagos, em pé de igualdade, pelas minorias não podem ser gastos com materiais que difundam mensagem contra elas.

Um ponto a mais: relações raciais e circuito editorial

Peppa é um livro amado por professores e sou testemunha disso por trabalhos sistemáticos em consultorias para a Lei 10.639. Logo que saiu publicado, o material foi bem avaliado e talvez isso tenha facilitado as compras municipais por gestores que buscavam apoio para cumprir a legislação. Havia uma enorme falta de ferramentas lúdicas nesse recorte. Também colado ao relacionamento com educadores negros, a escuta me trouxe pareceres do quanto a obra tocou a lembrança das experiências negativas de modificação dos fios encaracolados. E, esse libertar na ficção refletia a vida real de histórias familiares de uma época.

Faço este relato porque o encaminhamento do assunto cabelos crespos, em Peppa, apresenta uma ambiguidade do tamanho da repercussão de duplas frentes. A leitura de primeiro momento não é a mesma de um segundo. E este não será o último livro a avivar as discussões envolvendo racismo. Mas é o circuito que deve estar treinado para identificar esse inimigo devorador de almas. Qualquer autoria, e me incluo, pode rever suas teses, abordagens e reescrevê-las ao infinito. Por um lado, o enredo de Peppa é bom, o humor, o traço apresentam qualidade. Mas, as associações que constroem o racismo também estão lá. Perversas, submetem a criança leitora negra a uma camada de preconceitos sobre a própria imagem. Sem esquecer as demais que aprendem a ser racistas.

É a sociedade que coloca limites aos preconceitos que geram discriminações. Pode ser a Lei, o regramento comportamental ou o debate entre opiniões na circularidade das três perspectivas. Muito antes de Ana Paula Xongani, críticas foram formuladas ao livro. Ela foi guerreira e mais competente em dar visibilidade ao assunto. Não há como desqualificar uma voz que entra no debate. Sobretudo por representar a de mães muito conscientes de sua negritude, que lutam contra antigos preconceitos e querem proteger a autoestima das filhas. Sobre o feito, só cabe o aprendizado.

A mais importante qualidade de um educador é a escuta. Depois, a sua autoridade e não seu autoritarismo, que possibilita expandir ou estabelecer limites. A educação, no meu entender, aponta para algum detalhe do mundo e promove a produção de conhecimento sobre aquele detalhe. Também requer o reparo tanto do conjunto dos aprendizes quanto cada presença individualizada além do respeito ao tempo de elaboração para as descobertas e eternas revisões próprias de um processo. Portanto, não é a resposta pronta que leva ao saber. Porém, quando os aprendizes brigam feio, o educador intervém antes que haja mortes. A morte de Peppa é uma questão dura mas que precisa ser enfrentada. O tema não é fechado e o educar tem a dimensão dos livros. O Brasil erra contundentemente em relação à cidadania de jovens negros submetidos à índices expressivos de genocídio. Não dá para calar diante do racismo e nem reproduzí-lo em área alguma. Porque o objetivo maior é não deixá-lo se instalar numa nova geração. Por esse motivo é a leitura infantil o foco mais importante colocado para este parlamento aqui.

Nota

  • 1
    A pesquisadora Denise Dias Barros, que convive com os Dogons, traz notícias como essa.

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  • Heloisa Pires

    Antropóloga, mestra e doutora pela USP. Foi pesquisadora do Instituto Camões-Cátedra Jaime Cortesão, em Portugal. A estreia no circuito editorial (1995) abrange a escritora, a editora e a pesquisadora da área. Como consultora, atua tanto na esfera pública, sobretudo MEC e SMEs, quanto privada (Canal Futura/Fundação Roberto Marinho). Também atua em organizações nacionais e internacionais com foco em educação. Pela Somos Educação, é coautora da obra Capulana: Um pano estampado de histórias (Scipione).

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8 respostas

  1. Um texto consciente da mensagem que transmite. Eu não conhecia o livro e fiz uma breve pesquisa para conhecer visualmente a obra. Fiquei impactada com o assunto e sem acreditar que um assunto tão sério como o racismo, existem em forma de livros infantis.
    Gostei muito do texto, da forma responsável como foi apresentado.

  2. Muito elucidativo o texto da Heloisa, muito bem argumentado com bom senso, respeito e reflexão. Assim como todos os textos da Revista Emilia lidos aqui. Parabéns a equipe! Obrigada Heloísa pelo texto…me instruiu muito…me levando a refletir sobre os diversos posicionamentos expostos.

  3. Gostaria de sugerir à Emília uma análise contrapondo o caso de Peppa com o de Eredegalda – ambos livros infantis recentemente retirados de circulação. Por motivos absolutamente distintos e incomparáveis, mas com o mesmo resultado final.

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