Plenitude da imagem

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CristianeTavares@gmail.com Fernandes Tavares Cristiane


A Conferência dos Pássaros
Autor e ilustrador: Peter Sís
Tradução:Érico Assis
Páginas: 160
Formato: 18 x 25,40 cm
Editora: Companhia das Letrinhas

“A obra [de arte] oferece-nos em cada uma de suas partes o alimento e o excitante. Ela desperta continuamente em nós uma sede e uma fonte. Como recompensa do que lhe cedemos de nossa liberdade, dá-nos o amor pelo cativeiro que nos impõe e o sentimento de uma espécie deliciosa de conhecimento imediato. Tudo isso despendendo, para nossa grande alegria, nossa própria energia, evocada por ela de uma maneira tão adequada que a sensação do esforço se torna, ela mesma, inebriante, e sentimo-nos possuidores para sermos magnificamente possuídos.”1Paul Valéry, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.197 Paul Valéry

A conferência dos pássaros é uma história clássica da tradição oriental sufi, contada sob a forma de poema épico no século XII pelo místico persa Farid Ud-din Attar. Na edição recém lançada pela Companhia das Letrinhas, é recontada pelo escritor e ilustrador tcheco Peter Sís, vencedor do Prêmio Hans Christian Andersen de ilustração, em 2012.

Começar a leitura deste livro pelo final é uma liberdade que dialoga com as ideias de circularidade e integração presentes não apenas no texto e na ilustração, mas também na essência do pensamento sufi, cujos poetas se inspiraram, em boa parte, nos escritos de Atta.2Para alguns teóricos que já estudaram a obra original de Attar, este poema épico, também intitulado A linguagem dos pássaros em algumas edições, é uma alegoria dos princípios essenciais do sufismo.
“O sufismo é o caminho místico do islamismo, que, como muitas outras religiões, possui um aspecto exterior e outro interior. O aspecto exterior é o da Sharia, a Lei revelada por Maomé, o profeta, que trata dos ritos e atos de devoção. O aspecto interior só existe no sufismo; seu objetivo é purificar o coração, a fim de se confundir com Deus. Por meio de experiências pessoais em busca da espiritualidade, o sufismo visa ao reencontro do ser humano com sua natureza divina e à concretização da sua unidade com Deus.” (Regina Machado, Acordais. São Paulo: DCL, 2004, p.219-220)
Nas duas últimas páginas, intituladas respectivamente “agradecimentos” e “inspiração” há informações valiosas sobre o processo artístico que resulta nesta obra. No texto de agradecimentos, Peter Sís mantém a linguagem metafórica da narrativa e, em primeira pessoa, revela suas inúmeras referências e o envolvimento pessoal com esse clássico da literatura mundial, por ele recriado: “desde que tenho lembranças, amo desenhar imagens de voo – de liberdade – e de pássaros (…) Minha poupa Attar percorreu os meus próprios sete vales.” Neste trecho, o autor iguala a personagem poupa – espécie de “pássaro-guia” – ao autor do poema original, Attar, considerado por muitos estudiosos um dos primeiros mestres sufis. Sís, dotado de um estilo inconfundível, que segundo Ana Garralón é marcado, dentre outras coisas, “por preencher o espaço de que dispõe, riqueza nos detalhes e uso do pontilhismo para sombrear e confundir as fronteiras entre o real e o imaginário”,3Ver aqui. reverencia o poeta persa e imprime particularidades à esta versão. Ao mesmo tempo em que se apodera da maestria da poupa e dos escritos de Attar, afirma serem seus os sete vales a percorrer. Trata-se de uma afirmação importante, que abre ainda mais portas para o leitor: a universalidade da obra original não descarta sua singularidade. Ao contrário, justamente a força de seu aspecto essencial torna possível releituras peculiares como esta.

Tornada pública, a gratidão às “inspirações” adquire grandeza pelo rigor ético e pela generosidade em compartilhar com os leitores as matrizes inspiradoras do trabalho. Identificar a nascente dá a ver a substância de que é feito o leito. E é dessa natureza a luminosidade das informações contidas nas páginas finais. Nas referências citadas observa-se uma multiplicidade de linguagens artísticas entrecruzando o processo criativo e a feitura da obra assinada por Peter Sís. Segundo o autor, tudo começa com a ilustração do rei dos pássaros, Simorgh, personagem desta narrativa, feita por ele para uma edição de O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges, seguida da leitura de uma tradução do poema original de Attar (com nada menos que 4500 dísticos). A indicação preciosa de um amigo leva-o, depois, à peça de Jean-Claude Carrière e Peter Brook (1982) inspirada no poema. Somam-se a isso, pesquisas feitas pelo autor sobre a cultura persa e a anatomia dos pássaros.

Pluralidade de influências

Nota-se essa pluralidade de influências em muitas das escolhas feitas tanto no texto, como na ilustração. A organização da narrativa em cinco partes, por exemplo, introduzidas por uma breve sinopse do que se passará em cada trecho, lembra os atos que compõem uma peça teatral, assim como a presença intensa de diálogos entre as personagens, apresentados em formato muito semelhante às rubricas do texto dramático. O modo detalhado como os pássaros são ilustrados em algumas páginas confirma a pesquisa cuidadosa sobre as aves. Mas é preciso atenção: apenas alguns pássaros, em situações pontuais, são retratados dessa forma precisa que lhes confere certa pessoalidade. Outros, na maioria das vezes, são representados de modo indiscriminado, contornados em revoada.

Ao se debruçar sobre o livro o leitor se depara com essas informações artisticamente integradas, compondo um todo horizontal repleto de sutilezas – como num voo panorâmico – e, ao chegar nas páginas anexas, aparentemente apartadas desse conjunto, o convite que se faz é de um voo rasante, cuja verticalidade amplia e aprofunda ainda mais a visão.

Coerente ao percurso leitor escolhido nesta análise – que tem início no fim – é preciso dizer agora que a mencionada montanha de Kaf é o destino final da viagem empreendida pelos pássaros ao longo da narrativa. É também a morada do rei Simorgh4Segundo Jorge Luis Borges, “Attar eleva Simurg a símbolo ou imagem da divindade.” Em: O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 1996, p.124., a quem eles buscarão atravessando os sete vales: da procura, do amor, da compreensão, do desapego, da unidade, do deslumbramento e da morte. A insatisfação com os problemas do mundo – “anarquia, desgosto, revoltas, disputas violentas por território, por água, por comida, ar poluído, infelicidade” – dá origem à conferência dos pássaros, durante a qual a poupa anuncia conhecer um rei “que tem todas as respostas” e sugere que partam à sua procura.

No citado O livro dos seres imaginários, Borges resume a narrativa poética por ele denominada Colóquio dos Pássaros, da seguinte maneira: “O argumento desta alegoria é curioso. O remoto rei dos pássaros, o simurg, deixa cair no centro da China uma pluma esplêndida; os pássaros decidem buscá-lo, fartos de sua presente anarquia. Sabem que o nome de seu rei quer dizer trinta pássaros; sabem que seu palácio fica no Kaf, a montanha ou cordilheira circular que rodeia a terra. De início, alguns pássaros se acovardam (…). Empreendem, finalmente, a desesperada aventura; vencem sete vales ou mares (…) Muitos peregrinos desertam; outros morrem na travessia. Trinta, purificados por seus tormentos, pisam a montanha do simurg. Contemplam-no afinal: percebem que eles são o simurg e que o simurg é cada um deles e todos eles.”5Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 1996, p.124-135. Neste trecho, o autor argentino apresenta um resumo do enredo original da Conferência dos Pássaros, que embora seja de fato conciso do ponto de vista dos acontecimentos, é, sem dúvida, vasto do ponto de vista da metáfora que engendra.

O encontro das ilustrações de Peter Sís com elementos da tradição sufi eleva ao grau máximo a potência da metáfora poética. Se a metáfora como simples recurso de linguagem verbal já desnorteia a comum significação textual, quando pressuposta também na construção da linguagem plástica, traçada por mãos e olhos que trabalham sob a perspectiva da excelência, multiplica-se e reverbera. Nas palavras de Paul Ricoeur, a metáfora “agrega a luz do sentido à plenitude da imagem. O não-verbal e o verbal são assim estreitamente unidos no seio da função imaginante da linguagem.”6Paul Ricouer, A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000, p.327. Há inúmeros exemplos dessa fusão metafórica entre texto, ilustração e demais referências artísticas no livro. Analisaremos alguns deles a seguir.

Potência da metáfora poética

De modo geral, pode-se afirmar que nesta obra a sugestão para construção do sentido se dá, primeiramente, pela presença de elementos visuais repletos de simbolismo. As duas primeiras páginas do livro, que antecedem o frontispício (em que há título, autor, tradutor) trazem apenas imagens: um nascimento e uma revoada espelhada de pássaros rumo ao interior central da página. Duas ilustrações que contém possíveis chaves de leitura: trata-se de uma narrativa que, dente outras coisas, versa filosófica e literariamente sobre a busca interior, que pode ser coletiva e individual ao mesmo tempo e que, ao final, leva ao ponto de origem.

Na primeira página em que há texto e ilustração juntos, o leitor depara-se com um grande olho. Em branco, o globo ocular é composto por inúmeros pássaros com asas abertas e, ao centro, a pupila é formada por um carimbo da rosa dos ventos, refletindo uma figura humana reduzida, imprecisa e em movimento. A pupila em forma de rosa dos ventos indica viagem, percurso orientado. Na reveladora leitura do texto que abre a narrativa nesta mesma página, temos: “Quando o poeta Attar acordou em uma manhã depois de um sonho inquietante, percebeu que havia se tornado uma poupa…”

Um poeta metamorfoseado em pássaro. A referência kafkaniana é explícita. A semelhança entre este início e o primeiro parágrafo de A Metamorfose (1912), do também tcheco Franz Kafka, é grande: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”7Franz Kafka, A metamorfose. Trad. Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras.

Novamente, as referências são fundamentais para guiar o leitor. Unindo as informações presentes no texto e na ilustração, temos um início de narrativa verbo-visual que nos remete, imediatamente, ao menos a duas principais referências: Kafka e Magritte – com suas matizes de fantástico e surreal. A obra “The false mirror” (1928), de Magritte, pode vir à mente do leitor ao deparar-se com o grande olho na primeira página do livro: um “falso espelho” que ao invés de apenas refletir de modo invertido as imagens reais, as percebe de modo seletivo e subjetivo[mf]“Le Faux Miroir presents an enormous lashless eye with a luminous cloud-swept blue sky filling the iris and an opaque, dead-black disc for a pupil. The allusive title, provided by the Belgian Surrealist writer Paul Nougé, seems to insinuate limits to the authority of optical vision: a mirror provides a mechanical reflection, but the eye is selective and subjective. Magritte’s single eye functions on multiple enigmatic levels: the viewer both looks through it, as through a window, and is looked at by it, thus seeing and being seen simultaneously. The Surrealist photographer Man Ray, who owned the work from 1933 to 1936, recognized this compelling duality when he memorably described Le Faux Miroir as a painting that ‘sees as much as it itself is seen.’” Em: http://www.moma.org/collection/browse_results.php?object_id=78938[/mfn]. O convite é para olhar demoradamente. As imagens evocam.

Peter Sís e Magritte

Estrategicamente colocada na primeira página, essa imagem funciona como uma espécie de trato inicial feito com o leitor: mergulhar na percepção mais profunda e contemplativa. Colocar em ação a imaginação como “comunicação com a alma do mundo”8Segundo Ítalo Calvino, “da magia renascentista de origem neoplatônica é que parte a ideia da imaginação como comunicação com a alma do mundo, mais tarde retomada pelo Romantismo e pelo Surrealismo.” Em: Seis propostas para o próximo milênio, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.103.. O olho como ícone do contato com o exterior – capacidade de perceber e contemplar – mas também como metáfora de janela para o interior, entrada para o inconsciente e o imaginário.

Seguindo a leitura, temos uma sequência de quatro páginas duplas ilustradas que mostram a metamorfose do poeta em poupa. Na primeira imagem, uma figura humana de frente para o leitor, leva nas mãos um rolo de papiro. Em seguida, de perfil, caminha e, então, começa sua transformação. Os traços “reais” e nobres do poeta persa se conservam no corpo da poupa, também majestosa.

Metamorfose

Na última dupla de páginas ilustradas dessa série, a poupa aparece diminuta em meio a uma imensidão de pássaros ao fundo, em tons avermelhados. Novamente, o não-verbal anuncia o verbal: virá, a seguir, a narração da conferência dos pássaros, liderada pela poupa. O leitor pode entender, então, que o papiro que ele/ela (poeta/poupa) carregava tem força transformadora e que os interlocutores da conferência serão todos os pássaros, sem exceção – ou, seguindo a lógica metafórica desta análise – seremos todos nós, potenciais leitores.

Tudo isso antecede a primeira das cinco partes que compõem o livro. Nesta espécie de introdução, oferece-se ao leitor uma certa bagagem para seguir viagem junto aos pássaros. Na Parte I, já anunciada pelas imagens anteriores, tem início a conferência que reúne todos os pássaros do mundo para ouvir o discurso da poupa. Novamente, primeiro ilustrações, depois texto. A presença de dois pares de páginas duplas contendo ilustrações quase idênticas, diferenciadas principalmente pela cor, pode intrigar o leitor, exposto a elas sem informação verbal. Trata-se de uma das mais belas imagens da obra, amplamente divulgada pela mídia por ocasião da premiação de Peter Sís com o Andersen 2012. Na primeira dupla de páginas, em tons predominantemente ocres e avermelhados, há uma infinidade de pássaros reunidos em torno da poupa que parece estar pousando, ainda com o rolo de papiro fechado. Na segunda dupla de páginas, intensamente colorida, a mesma cena se apresenta, dessa vez possibilitando vislumbrar as características específicas de cada pássaro, ainda com a poupa ao centro, mas já com o papiro aberto.

No texto, o discurso exclamativo e interpelativo da poupa denuncia a situação triste em que se encontra o mundo para, em seguida, em tom profético, anunciar uma solução, conclamando todos a procurar o rei que tem todas as respostas. Em seu discurso, chama atenção a presença excessiva de verbos que incitam os sentidos do ver e do ouvir: “vejam”; “já vi muito pelo mundo”; “ouçam-me”. Depois de ler o discurso da poupa, as páginas ilustradas quase idênticas adquirem nova significação. A primeira delas, na qual o papiro ainda encontra-se enrolado, pode representar a situação sombria do mundo, mencionada na primeira parte da fala da poupa, e a segunda imagem, na qual o papiro já se desenrolou, a esperança anunciada na parte final de seu discurso.

Um contraponto à voz forte e imperativa da poupa aparece ainda nesta página, no canto lateral direito. Uma inscrição tatuada à mão no corpo de um pássaro diz: “Reis Reis – já estamos cheios de reis! De que serve mais um rei?” Fundindo literalmente verbal e não-verbal, essa imagem, assim como outras que aparecerão ao longo do livro, revela uma marca característica do estilo de Peter Sís, como explica Giovanna Zoboli: a presença de “células narrativas nas quais o leitor, sempre que tenha vontade, tem a possibilidade de aprofundar-se verticalmente em uma leitura que, em relação ao conjunto, vive de forma ao mesmo tempo autônoma e complementar.”9Ver aqui. Essa voz paralela, deslocada e aparentemente dissonante, novamente antecipa o que virá: os pássaros questionam a poupa, querem ter certezas e saber mais sobre o rei Simorgh: “Como saber se esse rei existe mesmo?” Essa pergunta aparece em uma dupla de páginas ilustradas com um mostruário de pássaros, espécie de catálogo quadriculado apresentando uma diversidade de olhos, bicos, cristas, várias identidades sob um mesmo fundo ocre que as iguala. Nova pista sobre o desfecho da narrativa: numa mesma imagem, todos os pássaros unidos e cada um deles separadamente e o prenúncio de um percurso rumo ao desconhecido redentor. Como no diálogo do conto de José Saramago:

“– Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem eu sou quando nela estiver.

– Não o sabes?

– Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.”10José Saramago, O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras.

No reino da representação

Para os questionamentos feitos pelos pássaros, a poupa oferece uma intrigante resposta: a prova da existência do rei Simorgh é o desenho de uma de suas penas, encontrado na China, no meio da noite. Não se trata, como se vê, da pena em si, “real”, mas de sua representação pictórica. Um desenho encontrado em terra longínqua, no meio da escuridão, onde pouco se vê. A origem da busca é icônica: uma pena descaracterizada que, afinal, pode ser todas e nenhuma. Estamos no reino simbólico da representação, essência da linguagem: “simbólica porque consiste em representar um elemento da realidade por outro, como ocorre com as metáforas. (…) Cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora. E, desse modo, é um instrumento mágico, isto é, algo suscetível de transformar em outra coisa e de transmutar aquilo em que toca. (…)”11Octavio Paz, O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p.41. A “garantia” de que a busca pelo rei dos pássaros tem sentido é de natureza metafórica: a pena é, afinal, o elemento comum entre aquele que busca e o que se deseja encontrar.

Ainda em tom apelativo, a poupa segue seu discurso, sob os olhos assustados e um tanto desconfiados dos pássaros. No par de páginas em que sua silhueta ampliada aparece de costas para o leitor e de frente para a grande massa que a ouve, inúmeras outras imagens de lideranças discursando para multidões ocorrem ao leitor. A relação a ser estabelecida nesse momento da narrativa dependerá, mais uma vez, das referências que cada leitor possui e que lhe permitem fazer conexões de diferentes naturezas. Na imagem que se agiganta na página, a potência do vir-a-ser.

Embora o texto ocupe sempre menos espaço no livro do que as imagens, guarda em sua concisão não menor força de significação. Em determinado momento da narrativa, o discurso da poupa adquire tom mais enigmático e nos remete aos oráculos e sofismas gregos: “O rei existe! Ele está tão perto de nós quanto nós estamos distante dele.” Em seguida, em diálogo com os pássaros, a poupa afirma: “Simorgh está escondido atrás do véu das nuvens. Seu coração está atrás do véu.” Ao questionamento dos pássaros sobre “que véu? Que nuvens”, a poupa silencia. Assim como para o leitor, algumas respostas terão de ser encontradas por cada um no decorrer do percurso. Na página em que este diálogo ocorre, a ilustração mostra os pássaros em espiral rumo ao centro de um círculo. Olhando a metáfora por trás do véu mencionado no texto, pode-se pensar que circulam em direção ao próprio coração.

No breve texto que introduz a segunda parte do livro, anuncia-se a resistência dos pássaros em seguir a poupa, já que percebem a dificuldade da jornada e não desejam abrir mão de suas comodidades. Neste trecho, os pássaros resistentes são apresentados em sua singularidade. Cada um deles destaca-se em cores do tabuleiro quadriculado de aves com desenhos realistas e tem início uma sequência de diálogos que os personifica com sentimentos marcadamente humanos: medo, egoísmo, ambição, vaidade. Permanecendo firme em sua posição de liderança, a poupa os desafia a olhar para além de si próprios e a questionar suas frágeis certezas. Neste trecho do livro, destacam-se na diagramação da página a imagem e a voz dos pássaros, enquanto a imagem e as falas da poupa aparecem quase no rodapé, em tamanho reduzido. A dúvida e a incerteza ocupam, portanto, mais espaço. É por meio da palavra sensível, de indubitável força, que a poupa os encoraja a seguir viagem. E então, os pássaros alçam voo rumo ao encontro de Simorgh, na montanha de Kaf.

O livro como experiência inesquecível

A Parte III marca o início da viagem. Imagens deslumbrantes explodem nas páginas duplas. Movido pelo encantamento, o leitor inicia a viagem rumo aos sete vales. Logo depara-se com o discurso entusiasmado da poupa: “Venham planar, vamos voar, vamos abrir caminhos.” Entusiasmo que nada tem de vazio ou superficial, como atesta a afirmação que se segue aos apelos: “O amor ama o que é difícil”. Uma profusão de belas imagens toma os olhos e os sentidos: céu de aves brancas sobrevoando o mar, visão cartográfica de terras desconhecidas, paisagens oníricas. O texto, ainda mais enxuto nesta parte do livro, se molda às imagens e as frases também adquirem movimento. As palavras ganham cor e acompanham as ilustrações de cada pássaro que pronuncia uma dúvida diferente: “Qual será a aparência de Simorgh? E se ele não estiver lá? Será que ele vai nos alimentar?” Ao lado das imagens grandiosas, as metáforas são escolhidas para comunicar o que não cabe em si de potência de sentido – no mínimo, o máximo: “Os desertos sem fim são cristais de areia. As cordilheiras são colares de contas. Os sete planetas são como pintas. Os sete oceanos são como gotas de chuva.” Sís nos presenteia, ao mesmo tempo, com hipérboles e metonímias visuais. É preciso muita técnica e sensibilidade para harmonizar o aparentemente contraditório. Uma fusão rara em excelência. Como explica ainda Giovanna Zoboli, “o trabalho de Sís é pautado na convicção de que o livro, para instaurar uma experiência inesquecível (e portanto insubstituível e necessária), deve ser um objeto de grande densidade, complexidade, riqueza e beleza.”13

A penúltima e mais longa parte do livro consiste na travessia propriamente dita dos sete vales, cada um deles com predomínio de uma cor. Ao atravessá-los, os pássaros assumem a mesma coloração do espaço que momentaneamente habitam, integrando a paisagem. O primeiro Vale, o da Procura, sob tons acinzentados, tem suas características apresentadas ao leitor com um acróstico da palavra “paciência”: pacato, auspicioso, confiável, intenso, estável, neutro, contínuo, imortal e apaziguante. Condições para seguir à procura. É noite e a revoada que agora inunda a dupla de páginas é negra. As imagens pontilhadas mostram a chegada e o repouso dos pássaros neste primeiro vale. Nem todos conseguem descansar e livrar-se das obsessões: um deles peneira a areia sem parar, tentando encontrar o seu caminho e a poupa o aconselha a deixar que o vento preencha seu coração. Uma imagem e um curto diálogo entre a poupa e o pássaro obsessivo condensam o conceito de busca que define o Vale da Procura. Passa-se, em seguida, para o vermelho Vale do Amor, apresentado sob a seguinte inscrição: “Aqui o fogo ardente é amor e o amor ardente é fogo.” O sobrevoo se dá por altos cumes e alguns pássaros debandam. Chega-se novamente às imagens concisas acompanhadas de um diálogo, dessa vez entre a poupa e o pássaro coroado que afirma ter medo de amar. A poupa lhe fala sobre as ambiguidades do amor e a impossibilidade de enterrar os desejos. Em cada Vale, aprendizagens diversas se dão, novos desafios surgem e o número de pássaros que segue a viagem, diminui.

No Vale da Compreensão há nuvens carregadas e labaredas. A frase que o resume é: “Com o tempo suspenso, não há princípio nem fim, apenas voos infinitos.” A suspensão do tempo como condição para a compreensão é também o que caracteriza, muitas vezes, o pacto dos textos ficcionais com os leitores. No caso desta narrativa em especial, a inexistência de uma delimitação clara do início e do final e o predomínio da circularidade criam uma sensação de continuum infinito, tal como esse descrito no importante Vale da Compreensão: “Aqui temos que prestar muita atenção. Estamos seguindo uma trilha. Ninguém sabe até onde devemos ir.” É de gelo o Vale seguinte, do Desapego. Em tons de azul, os cumes pontiagudos, aparentemente firmes, podem se desintegrar a qualquer hora, levando com eles a curiosidade e o desejo. A fragilidade da solidez é metáfora da própria contradição da existência humana: “Nosso mundo é sólido… Não há nada além de grãos de areia.” Nada é o que parece ser, por isso, a necessidade do desapego às aparências: “Aqui, um peixe pequeno é mais forte que uma baleia e ninguém sabe dizer por quê.”

Estes dois Vales – o da Compreensão e o do Desapego – parecem convidar os pássaros peregrinos, e também os leitores, à desconstrução. Se alguma bagagem lhes foi oferecida no início, é hora de livrar-se dos excessos. A busca é, sobretudo, pelo essencial. Por isso, em seguida ao gélido e frio, temos o fértil e verdejante Vale da Unidade. Arredondadas, as montanhas deste Vale são completamente preenchidas. Impossível ver em separado os elementos que compõem esse preenchimento totalizante, já que tudo está ligado: “Mesmo que se enxerguem muitos, na verdade são poucos… Se é que há de fato algum.”

O penúltimo Vale, o do Deslumbramento, destaca-se por sua coloração em tons rosa-maravilha. A beleza não descarta o paradoxo: “Lugar da dor constante e do grande espanto.” Dor e espanto juntos cegam. Começa aqui, o retorno ao início. O grande olho da primeira página, aberto ao reflexo do mundo, cerra-se. “Aqui você não ousa olhar.” Como clímax da desconstrução anunciada nos Vales imediatamente anteriores, o Vale do Deslumbramento é pura ilusão: “Quando os pássaros chegaram ao sexto vale, este não estava mais lá.” Os pássaros manifestam sua confusão e certa decepção. Os sentidos continuam suspensos e um vazio momentâneo provoca desespero, desejo de desistir e voltar, logo aplacados pela sábia poupa que apesar da cegueira, vê, “lê” e explica: “Voltar?… Isso tudo faz parte do ciclo, pássaro.” Em seguida, nova metáfora como referência: a poupa convida todos a prosseguir citando como exemplo a fênix, ave da mitologia egípcia que renasce das cinzas. A menção à fênix antecipa o que está por vir: a mítica ave simboliza a vitória sobre a morte. O próximo e último Vale é justamente o da Morte.

Ao observar a revoada de pássaros entrando no Vale da Morte o leitor logo percebe que a quantidade de aves diminuiu consideravelmente. Poucos sobreviveram à viagem e agora avançam rumo ao marrom escuro e acinzentado, onde “nada se vê, nada se sente, nada existe”. O predomínio da dúvida é inevitável. Os pássaros, exaustos, se questionam sobre a real possibilidade de um encontro com o rei que tem todas as respostas e que lhes apareceria depois de percorrerem os sete vales. A resposta da poupa é reveladora e nem todos estão preparados para ouvi-la: “Vales? Aquilo era só uma ilusão, pássaros, um sonho. (…) Estamos apenas no princípio.” Como um raio vindo do alto, a fala da poupa é destruidora e fatal para os pássaros que não conseguem acreditar. Aqui, compreender é crer. A imagem da queda impressiona: em círculo e em primeiro plano, vemos os pássaros que permanecem e ao fundo, dezenas de aves despencando. Agora já sabemos: se há uma montanha de Kaf e um rei Simorg, poucos o verão.

Na Parte V que encerra o livro a montanha de Kaf se apresenta ao leitor em aproximações sucessivas. A primeira imagem, em página dupla, contém elementos dos sete vales percorridos – suas cores, formas, traços, representações – e abriga, ao centro, um único cume com uma fenda ao meio. Um zoom no azul central permite ver melhor, mas nem por isso, reconhecer. O que se vê guarda o estranhamento e a força das visões primárias e míticas, que contém muito mais do que sua imagem é capaz de mostrar. Ao longe, um pequeno grupo de pássaros se aproxima. Em novo zoom, a montanha assume aspecto humano: possui olhos, nariz, boca. Vive. E com ela conversam os pássaros, perguntando sobre o rei Simorgh. A montanha os aconselha a voltar, pois nada são além de cinzas e pó. Essa fala é arrasadora, inclusive para a poupa que agora também mostra fragilidade. Todos se acham iludidos, quando então, a montanha volta a chamá-los e, inesperadamente, abre passagem. Descortina-se, no cume, o espelho d’água sobre o qual agora voam os pássaros. Maravilhosamente, descortina-se para o leitor uma nova e última metamorfose, não menos reveladora que aquela que deu início à narrativa: durante o voo, os corpos das aves se fundem e já não é possível distinguir nada com clareza. Tons diversos de azul vão se tornando rarefeitos sob a técnica de preenchimento, revelando plasticamente uma transparência que parece hipnotizar o leitor. Mantendo fixamente o olhar sobre as imagens das páginas finais mergulha-se literalmente no voo sublime dos pássaros. Toda essa leveza prepara e conduz à imagem finalmente redentora, que funde verbal e não-verbal num espelhamento líquido, onde se lê: “E eles viram Simorgh, o rei, e Simorgh, o rei, era eles.” Uma visão translúcida, sustentada no reflexo e na percepção.

Se o leitor imaginava que deslumbramento maior não haveria, a página seguinte volta a surpreender. Os trinta pássaros são, então, apresentados em sua colorida variedade, formando, como num puzzle, uma única e esplêndida imagem gigante de uma ave composta por várias partes-pássaro. O segredo do encaixe perfeito é a busca coletiva e incessante por uma essência comum a todos: a visão de que o rei Simorgh é cada um deles e todos eles. É pela visão que se dá o encontro dos pássaros com sua essência e com seus semelhantes tão diversos. É pela linguagem em sua função imaginante – que leva a imagem à plenitude – que o leitor constrói sentidos nesta insubstituível experiência de leitura.

É inegável o valor artístico de uma obra que irradia possibilidades de contemplação estética como este livro. Em tempos de velocidade intensa e discurso excessivo, pedir ao leitor contemporâneo que se demore sobre as imagens e seus infinitos reflexos e ouça o silêncio da palavra fértil é de grande relevância. Acompanhado de extrema elegância, o pedido se torna irresistível… O desejo expresso pelo autor nas últimas linhas dos agradecimentos, sem dúvida, se realiza: “Agora espero chegar à montanha de Kaf – e espero que ela seja tão relevante hoje em dia quanto foi a obra-prima de Attar há tantos séculos.”

Notas

  • 1
    Paul Valéry, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.197
  • 2
    Para alguns teóricos que já estudaram a obra original de Attar, este poema épico, também intitulado A linguagem dos pássaros em algumas edições, é uma alegoria dos princípios essenciais do sufismo.
    “O sufismo é o caminho místico do islamismo, que, como muitas outras religiões, possui um aspecto exterior e outro interior. O aspecto exterior é o da Sharia, a Lei revelada por Maomé, o profeta, que trata dos ritos e atos de devoção. O aspecto interior só existe no sufismo; seu objetivo é purificar o coração, a fim de se confundir com Deus. Por meio de experiências pessoais em busca da espiritualidade, o sufismo visa ao reencontro do ser humano com sua natureza divina e à concretização da sua unidade com Deus.” (Regina Machado, Acordais. São Paulo: DCL, 2004, p.219-220)
  • 3
    Ver aqui.
  • 4
    Segundo Jorge Luis Borges, “Attar eleva Simurg a símbolo ou imagem da divindade.” Em: O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 1996, p.124.
  • 5
    Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 1996, p.124-135.
  • 6
    Paul Ricouer, A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000, p.327.
  • 7
    Franz Kafka, A metamorfose. Trad. Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras.
  • 8
    Segundo Ítalo Calvino, “da magia renascentista de origem neoplatônica é que parte a ideia da imaginação como comunicação com a alma do mundo, mais tarde retomada pelo Romantismo e pelo Surrealismo.” Em: Seis propostas para o próximo milênio, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.103.
  • 9
    Ver aqui.
  • 10
    José Saramago, O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 11
    Octavio Paz, O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p.41.

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  • Cristiane Fernandes Tavares

    É graduada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Publicou artigos sobre leitura e literatura em revistas acadêmicas como a Comunicação & Educação – USP/ECA e é autora de Quintais, Editora Salesiana, 2007. Realizou assessorias, cursos e oficinas pelo Centro de Estudos da Escola da Vila. Integrou e coordenou a equipe de formadores de professores da rede municipal de São Caetano do Sul. É colaboradora do Movimenta Projetos em Educação e da Comunidade Educativa CEDAC e coordena projetos na Associação Crescer Sempre, em parceria com escolas estaduais da comunidade de Paraisópolis. É resenhista no Caderno Literatura da revista Brasileiros.

    CristianeTavares@gmail.com Fernandes Tavares Cristiane

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