Uma ponte entre a Coreia e o Brasil

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clarasouza@revistaemilia.org de Moraes Souza Clara

Clara de Moraes Souza entrevista Luís Girão, professor de Literatura Coreana pelo Departamento de Letras Orientais da USP. Doutor e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, com bolsa FAPESP. Desde 2020, atua como agente e tradutor de literatura coreana (infantil, juvenil e adulta) pela ARA Cultural, em parceria com a também professora da USP e tradutora de literatura coreana Yun Jung Im. Hoje, realiza pesquisa de pós-doutorado com foco nos contos populares coreanos e nos livros ilustrados coreanos, sendo especialista na obra da autora sul-coreana Suzy Lee há mais de 10 anos, além de operar traduzindo e revisando obras literárias coreanas para a língua portuguesa (livros ilustrados, quadrinhos, romances, webtoons etc).

Clara de Moraes SouzaComo você entrou no mundo da tradução e agenciamento literário de literatura coreana?

Luis Girão – Como pesquisador, venho acompanhando o mercado de literatura coreana desde 2013, mesmo ano que conheci a obra da autora Suzy Lee. Quando iniciei meu mestrado em Crítica Literária pela PUC-SP, em 2015, foi também o ano que primeiro me encontrei com a professora e tradutora Yun Jung Im, que é criadora e coordenadora do curso de Língua e Literatura Coreana da Universidade de São Paulo. Nesta ocasião, fui convidado para falar de minha pesquisa de mestrado sobre Suzy Lee em um evento que reunia pesquisadores brasileiros e estrangeiros dos Estudos Coreanos – área em que realizo minha pesquisa de pós-doutorado, sobre a literatura infantil coreana.

A partir deste evento, a professora Yun Jung Im e eu mantivemos contato próximo até que, em 2019, ela me convidou para coordenar um grupo informal de tradutores literários em formação, todos experienciando traduzir contos folclóricos coreanos direcionados ao público infantil. Com essa função, não demorou para, em 2020, oficializarmos a criação da ARA Cultural, uma empresa que funciona como agência literária e tradutora literária de obras coreanas para o mercado editorial brasileiro, com o intuito não apenas de fazer a ponte entre os mercados editorais coreano e brasileiro, como também criar oportunidades de emprego para os tradutores que estávamos formando – sempre em defesa dos direitos autorais para quem traduz.

Como a parte da tradução já vinha sendo exercitada há mais de um ano, faltava entrar para o mercado como agente literário, o que exigiu um exercício contínuo de formações, testes, erros e acertos no percurso, até o momento em que foi possível manejar ARA Cultural como agência (apresentando obras coreanas inéditas para editoras brasileiras, grandes e menores) e como tradutores (traduzindo obras agenciadas ou não por nós para essas mesmas editoras), paralelamente ao meu doutorado em Crítica Literária, também pela PUC-SP e ainda investigando a obra de Suzy Lee.

CMS  Como você conseguiu (single-handedly rs) começar esse movimento de literatura infantil coreana para o mercado brasileiro? Seus livros podem ser encontrados em diversas editoras do mercado (Companhia das Letrinhas, Caixote, Amelì, Cai-Cai…).

LG – Como pesquisador de literatura infantil coreana, eu já acompanhava sites oficiais e blogs especializados da Coreia sobre o livro ilustrado coreano, além de estar sempre de olho no que editoras coreanas, maiores e menores, estavam apostando para o mercado interno e externo em suas redes sociais. Costumava entrar em contato com algumas editoras para solicitar uns arquivos de livros que eu tinha curiosidade de conhecer melhor após ver capa e algumas páginas internas, e após oficializarmos a ARA Cultural, descobri que esta é uma das tarefas do agente literário: conhecer os catálogos das editoras. Contudo, não posso afirmar que tudo isso ocorreu de modo single-handedly, pois todas as etapas envolviam consultas constantes à professora Yun Jung Im, que já era experiente em ela própria apresentar projetos de livros coreanos que ela gostaria de traduzir para o português às editoras brasileiras desde a década de 1990 – além de ela ler e revisar todas as traduções que realizamos na ARA Cultural, no sentido de sugerir mudanças, melhoras, cortes, ajustes e aperfeiçoar o trabalho de maneira colaborativa e plural.

Já a parte de apresentar as obras às editoras brasileiras, na minha perspectiva, envolvia, e envolve até hoje, conhecer os catálogos das editoras coreanas e brasileiras, de modo a fazer apresentações de títulos que sejam coesos aos perfis de cada editora que irá licenciar os livros coreanos. Mas não deixo de ousar e sugerir obras que fogem um pouco do que já temos no mercado brasileiro. Além disso, acho importante o contato próximo do agente com as editoras, tanto coreanas quanto brasileiras, para a negociação de um título ser coerente e real aos potenciais presentes naquilo que todos (autores, editores, tradutores críticos etc.) acreditam como uma obra boa e relevante a ser lida.

CMS   Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao trazer livros de literatura coreana para o mercado de literatura infantil e juvenil brasileiro?

LG – Até o momento, achei curiosos dois comportamentos específicos das editoras brasileiras frente às obras coreanas: resistência ao nonsense e uma recusa a certos temas que parecem “tabus” morais aos pais dos leitores crianças do Brasil. O nonsense é um modo poético de fazer literatura beirando alguns absurdos e aceitando o pacto ficcional para além de alguns limites “verossímeis”. Ou seja, é muito fácil aproximar o nonsense ao ato de imaginar e fabular em si. Contudo, frente ao nonsense materializado nas histórias coreanas (e esta é uma vertente forte nos livros infantis coreanos), deparei com muitos editores olhando diferente e recusando os títulos que trazem esse modo de narrar, alegando coisas como “não ficou claro, ficou?”, “e o que acontece depois?”, algo muito próximo à ideia de dar uma solução final, ou um encerramento claro, à história.

Com relação à recusa dos temas “tabus” morais aos pais dos leitores, que são as pessoas que comumente decidem o que seus filhos crianças irão ler, sendo o povo brasileiro, hoje em dia, majoritariamente conservador e, em alguma medida, religioso, acho compreensível a decisão de recusar obras que tratem explicitamente de temas como violência (bullying, armas de fogo etc.) e identidades (indígenas, pretos, asiáticos etc.). Ainda assim, penso que a ousadia e “naturalidade” com as quais as editoras coreanas lidam com esses temas poderiam servir de incentivo e inspiração às editoras brasileiras para ousar tratar de temas que são tão relevantes e representativos do hoje, exatamente por estarem explicitamente expostos, para criar novos e outros ambientes de leitura crítica e reflexão sobre o que está sendo narrado, exposto poeticamente para esses jovens leitores. Claro, isso exige um tempo de maturação não especificamente das editoras brasileiras, mas de desafiar e chamar para repensar estereótipos e “caixas conceituais” dos pais e mediadores brasileiros.

CMS   Como a sua formação acadêmica em literatura e crítica literária ajuda no seu trabalho como agente literário e tradutor de literatura coreana?

LG A minha formação como crítico literário me auxilia demais na leitura de originais em coreano, pois consigo encontrar boas e más formulações criativas que apontam leituras que ampliam e que podem reduzir percepções de mundo. Como crítico, sempre penso que a leitura deve ampliar sensações e perspectivas. E ser um pesquisador especializado em literatura infantil foi um diferencial para olhar cada título presente nos catálogos das editoras coreanas, de maneira a encontrar obras que dialoguem com públicos além do coreano, incluindo o brasileiro, e que possam fazer sentido em outros territórios, como o Brasil, exatamente pela qualidade estética (o trabalho sensível com as linguagens verbal, visual, objetual) ali investida.

Além disso, meu interesse e estudo sobre a tradução literária, bem como meu interesse pelas linguagens híbridas, funciona como um adicional para pensar visualmente essas obras, dialogando com títulos brasileiros e diversificando imaginários de mundo, e verbal-sonoramente a textualidade das palavras que chegam à língua portuguesa de modo a manter, o máximo possível, as entonações e intenções da língua coreana.

CMS   Quais são as principais diferenças entre o mercado brasileiro de literatura infantil e juvenil e o mercado coreano? E o que a literatura infantil coreana tem a oferecer que ainda não está presente no mercado brasileiro?

LG – No Brasil, há um olhar para a criança que, historicamente, é extremamente vertical, de cima (adulto) para baixo (criança), e as obras que se destacam qualitativamente são aquelas que trazem um equilíbrio mínimo entre quem envia a mensagem (autor) e quem a recebe (leitor). Na Coreia, há um século, produz-se literatura infantil com um olhar para a criança bastante horizontal, de “igual” para “igual”, ainda que existam produções que tragam esse “adulto escondido”, para usar o termo do grande pesquisador Perry Nodelman, nos livros para esses leitores crianças.

Já os mercados de obras juvenis no Brasil e na Corea se assemelham bastante entre os anos 1970 e 2000, com a grande leva de romances de formação e leitura obrigatória de clássicos vindos das línguas inglesa e francesa, diferenciando-se mais nas décadas de 2010 e 2020 por a Coreia investir e incentivar a literatura nacional entre jovens nos mais diversos âmbitos de circulação, não apenas na escola, ao criar prêmios de literatura para jovens que funcionam como grandes espaços reveladores de talentos desconhecidos no meio literário coreano, mesmo na criação, difusão e aperfeiçoamento dos mercados de obras sequenciais (quadrinhos e novelas gráficas) e de rolagem contínua (webtoons).

Penso que esses olhares específicos, ao se dialogar tanto com a criança quanto com o adolescente, dos autores e editores coreanos podem apontar caminhos interessantes para modificar alguns resultados apontados na pesquisa Retratos da Leitura. Claro, nada disso pode acontecer sem mudanças sociais e políticas públicas de incentivo à leitura em âmbito nacional. Porém, podem ser horizontes a se olhar, planejar, investir e exercitar.

CMS   Como você enxerga a recepção da literatura infantil coreana entre os leitores brasileiros (crianças, pais, pesquisadores)?

LGA literatura infantil coreana chega ao Brasil paralelamente à chegada de outros produtos da Hallyu (onda cultural coreana), como músicas, novelas, filmes, comidas, produtos de beleza, esportes etc. Esse fenômeno Hallyu, iniciado entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, está atualmente em seus estágios 4.0 e 5.0, em que os produtos envolvem os estrangeiros interessados por Coreia por meio de narrativas e contações de histórias que apresentam a Coreia não apenas de um ponto de vista histórico, mas por apresentar ao sujeito de fora a Coreia como é, em parte, ser coreano hoje. Isso está presente claramente nas novelas, filmes e nas letras do gênero K-Pop.

E a literatura infantil coreana, que primeiro chega ao Brasil quinze anos atrás, em 2008, com o livro-imagem Onda, de Suzy Lee, segue apresentando o tal olhar horizontal que os autores coreanos imprimem em suas obras: de uma infância para outra infância, não exclusivamente coreana. Fora essas características, penso que a experimentação dos artistas do livro ilustrado coreano, um produto cultural que existe desde 1988 na Coreia, traz um diferencial que apela não apenas aos olhos, como também às sinestesias possíveis na relação palavra-imagem-objeto livro, seja nas ilustrações, no jogo de palavras e modos de narrar, seja nos formatos dos livros. Isso tudo, a meu ver, e outras coisas que ainda precisamos descobrir com as obras que estão chegando ao mercado brasileiro, parecem atrair um número maior de leitores do Brasil para essas obras.

CMS   Quais são os seus projetos futuros relacionados à literatura infantil coreana?

LGPretendo expandir, cada vez mais, o número de editoras que licenciam e traduzem obras literárias coreanas para o público brasileiro, claro, tudo atrelado à defesa dos direitos autorais para quem traduz essas obras. Esta é uma das dificuldades encontradas no mercado editorial brasileiro e que não comentei na outra pergunta: traduzir uma obra e receber não apenas pela entrega da tradução à editora, como a prestação de um serviço, mas demandar um vínculo de quem traduz com a obra traduzida a partir do recebimento de royalties de direitos autorais. Trata-se de um longo diálogo com cada editora com a qual a ARA Cultural trabalha, pois esta é uma condição inicial do nosso trabalho como tradutores, após o trabalho como agentes. Nesse sentido, trazer obras infantis, infantojuvenis e mesmo juvenis exige, e certamente seguirá exigindo, paciência e persistência da nossa parte, exatamente por nos importarmos com toda a qualidade daquilo que estamos apresentando ao público brasileiro conjuntamente à editora brasileira, após um longo processo de trazer a obra de uma editora coreana para cá. Nosso envolvimento com cada projeto acontece muito antes, na leitura dos originais, e segue muito depois, na difusão continuada das obras já traduzidas e publicadas, sempre com a sensação de que em cada título foi investido muito sentimento, profissionalismo e sensibilidade para que a obras, artística e aberta, chegue ao leitor brasileiro com a maior fidedignidade possível. Espero que os projetos futuros sigam defendendo esses ideais, com cada vez mais espaços (editoras, editais, clubes de leitura etc.) para essa chegada plural e culturalmente diversa que é a literatura coreana.

Imagem: Suzy Lee, A Onda, Companhia das Letrinhas.

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  • Clara de Moraes Souza

    Clara de Moraes Souza é graduada em Letras pela UFRJ e fundadora do NUPLIJ (Núcleo de Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras (Laboratório da Palavra - UFRJ). Assistente Editorial na Editora Cai-Cai.

    clarasouza@revistaemilia.org de Moraes Souza Clara

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