Princesa intrépida e as arapucas do sexismo na literatura infantil contemporânea

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O beijo (não consentido) do príncipe em Bela Adormecida é assédio. Chapeuzinho Vermelho é uma menina tola, vítima perfeita de um lobo mal-intencionado. Cinderela, então, até virou nome de uma suposta1O Complexo de Cinderela, termo cunhado em 1981 e difundido pela escritora Colette Dowling em livro de mesmo nome, não é reconhecido pela Associação de Psiquiatria norte-americana. condição psicológica – o desejo feminino inconsciente de ser resgatada e cuidada pelo onipresente (?) Príncipe Encantado dos contos de fadas.  

Não existe consenso sobre a origem do politicamente correto, mas há indícios de seus efeitos já na década de 1930. Sem base em uma teoria explícita da linguagem, é fundamentado na ideia de que termos cotidianos e naturalizados podem expressar preconceitos e ideologias, e, da forma como o conhecemos hoje, significa escolha e uso de vocabulário que não deprecie, insulte ou ofenda membros de grupos historicamente oprimidos. Disseminado a partir dos Estados Unidos dos anos 1970, não demorou muito para que o politicamente correto se tornasse um conceito um tanto nebuloso, que muda de sentido de acordo com quem e em que contexto o utiliza. Ridicularizando a ideia de que alterar o uso da linguagem pode mudar percepções e crenças, ou levar a mudanças de condições sociais, essa prática passou a ser criticada por parcelas da sociedade como suscetibilidade exagerada, o popular mimimi. A literatura infantil, espelho da concepção social de infância, que varia em função de tempo histórico e cultura, não poderia deixar de ser impactado por essa disputa. Debates inflamados sobre a manutenção de estereótipos de raça, gênero e orientação sexual – as três grandes áreas de disputa do politicamente correto – e a predominância ou ausência em livros para crianças de personagens representantes de determinado(s) grupo(s), movimentam o mercado editorial mundial. O efeito é uma avalanche de novos títulos e versões atualizadas de contos centenários que buscam – ou apenas apregoam – uma perspectiva mais contemporânea e progressista. Realidades sociais exteriores ao campo literário, como a discriminação e objetificação sexual da mulher, que há tempos fomentam críticas feministas à representação de personagens femininas na literatura infantil, aliados mais recentemente a movimentos como o Me Too, produziram incontáveis versões, reescritas e adaptações de histórias tradicionais. De variados estilos e formatos. De maior ou menor qualidade.

Ainda que não sejam os únicos em que a protagonista é uma donzela (supostamente) frágil e dócil, os contos de fadas são os primeiros a serem lembrados e censurados quando o assunto é sexismo em livros infantis – o que não chega a causar surpresa, já que são um dos, se não o principal, símbolo do cânone informal não só da literatura, mas da cultura infantil. Com presença maciça, a partir de meados do século XX, na programação de cinema e TV, as versões que habitam o imaginário coletivo não são as dos contos de fadas tradicionais, mas as apropriadas e popularizadas pela cultura de massa, com especial destaque para a disneyficação, em que “a inocência torna-se o veículo através do qual a história é reescrita e expurgada de seu lado menos edificante”2GIROUX, Henri A. Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. p. 129-154.. Mas até mesmo a franquia Disney, acompanhando demandas sociais que orientam decisões comerciais, passou a incluir em seu esquadrão de princesas personagens com personalidades e características físicas diferentes das clássicas Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela.  

Uma das primeiras referências na (já antiga) polêmica sobre sexismo nos contos de fadas é o debate3LURIE, Alison. Fairy Tale Liberation. New York Review of Books, New York, p. 42-44, 17 dez. 1970. LIEBERMAN, Marcia. “‘Some Day My Prince Will Come’: Female Acculturation through the Fairy Tale.” College English 34 (1972): p.383 – 395

na imprensa especializada, no início dos anos 1970, entre as professoras universitárias americanas Alison Lurie e Marcia Lieberman, em que a primeira defende o que vê como força e autoridade das heroínas de contos tradicionais, e a segunda ataca o que entende como modelo patriarcal dos contos de fadas. Uma leitura menos óbvia e superficial exige ultrapassar as barreiras da leitura superficial e do senso comum. Na história de Cinderela, citada uma e outra vez como protótipo da mocinha submissa e dependente à espera do príncipe, podemos, por exemplo, mostrar às crianças que as protagonistas da narrativa são mulheres – boas e más – e todos os personagens masculinos, coadjuvantes. Que enquanto Cinderela tem uma atitude corajosa e transgressora e decide desobedecer às ordens da madrasta, o príncipe nem é consultado sobre o baile organizado para que escolha uma esposa. Na história original de Charles Perrault, o príncipe nem nome tem, é apresentado apenas como o filho do rei… Poderíamos perguntar: será que é mesmo o príncipe que salva Cinderela de seu destino cruel? Ou é ela, com a ajuda da fada madrinha (outra figura feminina, não custa lembrar) que, ao ignorar a proibição de ir ao baile, dá início às reviravoltas que vão levar ao final feliz?

As décadas finais do século XX, marcadas por revoluções culturais, consolidação dos movimentos de direitos civis, avanços tecnológicos e novos discursos políticos, fazem surgir a necessidade de novos livros para novas crianças, com destaque para publicações com temáticas sociais. Mas até os livros explicitamente militantes dos anos 1970, que propagavam um modelo alternativo à literatura infantil tradicional e convencional (não necessariamente equivalentes), muitas vezes limitavam-se à mera inversão de papéis, em que personagens femininas ganhavam características consideradas masculinas, socialmente mais valorizadas. Uma enxurrada de livros que substituem sexismo por antissexismo, em que meninas e mulheres superam situações de discriminação de gênero, mas os estereótipos não são questionados. Poucos adotam uma perspectiva não sexista,4CAÑAMARES, Cristina. Algunos roles sexistas en los álbumes ilustrados infantiles: ¿un nuevo sexismo? In: YUBERO, Santiago; LARRAÑAGA, Elisa; CERRILLO, Pedro C. (Org.). Valores y lectura: estudios multidisciplinares. Cuenca: Ediciones de La Universidad de Castilla-la Mancha, 2004. p. 147-172. em que personagens femininos e masculinos ganham igual destaque, convivem e competem, têm qualidades e defeitos. 

Aos trancos e barrancos, pouco se avançou desde então. Se na década de 1990, clichês de modelos culturais femininos e masculinos sobreviviam em livros de menina e livros de menino, mais de vinte anos depois, no final dos anos 2000, pesquisadores e especialistas em literatura infantil constatavam o precário avanço na direção de uma apresentação de gêneros mais igualitária. Pior, criou-se nesse período um nicho de mercado conhecido em inglês como teen chick lit (literatura para meninas adolescentes), que retoma, de forma agravada e exagerada, estereótipos de beleza e passividade que já se julgavam superados. Com linguagem descomplicada e acelerada, meninas adolescentes no centro da trama, enredos divertidos que giram em torno de garotos, amizades, férias, família e aceitação social, têm final inspirador, que acontece quase sempre depois de uma importante autodescoberta ou superação. Livros facilmente identificados pelas capas coloridas, com imagens de meninas, roupas e acessórios, e títulos em letras brilhantes.

Quase em paralelo, e em total oposição à temática e características dessa pink lit (literatura cor de rosa), acompanhando as reinvindicações da terceira e quarta ondas do feminismo, surge uma nova categoria de livros para meninas empoderadas – as histórias de princesas da vida real. Anunciados como alternativa às narrativas em que a personagem feminina é (à primeira vista) uma mocinha frágil, submissa e vulnerável, têm protagonistas que tudo podem e nada temem. Uma rápida busca na internet recomenda livros para meninas que não querem ser apenas princesas, narrativas de mulheres que mudaram o mundo, coleções de antiprincesas,histórias para garotas que podem ser tudo que quiserem e outros na mesma linha. 

Banalizado pelo uso aligeirado e excessivo, o empoderamento – termo e tema – funciona como chamariz de produtos que retiram questionamentos de temas sociais importantes – de rápido consumo e fácil digestão, são um autêntico fast-food da linguagem e das relações sociais. Provavelmente o maior ícone dessa linhagem seja Frida Kahlo, epicentro de uma fridolatria5LUISELLI, Valeria. O nascimento da Fridolatria. Revista Quatro Cinco Um, São Paulo. set. 2018.

que inunda o mercado com livros, roupas, objetos, adereços, fantasias de carnaval, enfeites de festas de aniversário. Até mesmo uma boneca Barbie, que trivializa a figura da pintora mexicana transgressora e feminista. Numa pegada mais contemporânea, as jovens ativistas Malala Yousafzai e Greta Thunberg são musas recorrentes de livros cuja estratégia mercadológica tem meninas – e principalmente adultos conscientes, socialmente responsáveis e bem-intencionados – como público alvo.  

Há livros sobre a vida de uma ou várias mulheres para todos os gostos: prosa, HQ, textos mais curtos e mais longos, para leitores com mais ou menos autonomia de leitura, ilustrados ou não. As coletâneas que reúnem minibiografias de personalidades femininas que tiveram destaque ao longo da história, apesar de serem livros de não-ficção, muitas vezes se apresentam como contos de fadas modernos. Basta um olhar mais atento para perceber a aparente incoerência – que não passa de jogada de marketing – de usar como argumento de vendas os mesmos contos de fadas rejeitados por sexismo, aos quais esses livros que empoderam se apresentam como alternativa. 

A seleção de personagens dessas antologias obedece a diferentes critérios, geralmente com uma bem-vinda diversidade de personagens de diferentes épocas, países e profissões. Não é difícil também encontrar coleções temáticas – mulheres cientistas, atletas, ativistas, negras, imigrantes, desse ou daquele país ou continente –, que muitas vezes não passam de desdobramentos do livro original. Projeto editorial e ilustrações costumam receber especial atenção, resultando em volumes visualmente atraentes, com bom acabamento. Mas, ao escolher um desses livros para dar a uma criança (meninas, em geral), é bom prestar atenção nos textos. São comuns nas coletâneas narrativas curtas, quase verbetes em que fatos biográficos são criteriosamente selecionados para construir a imagem da Garota Destemida6Fearless Girl, Garota Destemida em português, é o nome da estátua de bronze, inaugurada em 2017, que representa uma menina enfrentando o tradicional touro do Centro Financeiro de Nova Iorque. que vence todas as dificuldades, sem dúvidas, hesitações ou nuances. São detalhes imperceptíveis à primeira vista, mas que não resistem a uma simples pesquisa sobre a vida da heroína. Não é raro que sejam dirigidos – no título, prefácio ou material de divulgação – exclusivamente a meninas, reforçando o nicho de mercado e a ilusória existência de livros cor-de-rosa ou azuis, livros de menina e livros de menino… Os mais bem-sucedidos têm uma infinidade de produtos-filhotes, que vão de diários, cadernos, álbuns de adesivos, bichinhos de pelúcia, jogos, roupas e adereços a livros personalizados com o nome da futura dona. E, ironia das ironias, livros temáticos para meninos que seguem o mesmo modelo, com a previsível adaptação de gênero: super-heróis de carne e osso, garotos que ousam ser diferentes, rapazes extraordinários que mudaram o mundo sem matarem dragões. Pode ser que respondam ao recente questionamento também de estereótipos masculinos, apropriados pelo mercado editorial. Ou, quem sabe, a ordem seja a inversa –identifica-se um novo nicho, cria-se a necessidade de um novo tema e passa-se ao lançamento de novos produtos Podemos nos perguntar: seria melhor que esses livros não existissem? A resposta é um sonoro e convicto não. A iniciativa de oferecer às crianças narrativas variadas e diversas, superando o discurso único, ampliando modelos e referências, aumentando a conscientização sobre questões de gênero é necessária e bem-vinda. Mas na superabundância de livros sobre meninas que podem tudo é preciso buscar – e possível encontrar – aqueles que não se limitam a fórmulas batidas e repetitivas, com textos nuançados de diferentes formatos, que dialogam com meninos e meninas. Obras em que o empoderamento e protagonismo feminino estão presentes no que podemos chamar de ethos da narrativa, feministas para além do clichê e do jargão superficial. Livros que transcendem a ideologização e pedagogização de um tema – qualquer tema, pois é claro que a pasteurização não se limita a questões de gênero e sexismo. Livros que atestam a possibilidade de conjugar ética e estética, de fugir da armadilha dos livros politicamente corretos e literariamente chatos. Livros potentes e politicamente comprometidos,7BEAUVAIS, Clémentine. “An exigence and a gift”: Committed children’s literature. In: The Mighty Child: Time and power in children’s literature. Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 2015. p. 147-184. que ao invés de meramente incorporar ao texto termos que se julgam necessários (necessários para quê, afinal?), traduzem crenças que se revelam em elementos extratextuais. Que exigem do adulto que irá apresentá-los à criança uma busca proativa e uma mediação atenta e sensível.

Imagem: Detalhe de ilustração de Maki Ino

Notas

  • 1
    O Complexo de Cinderela, termo cunhado em 1981 e difundido pela escritora Colette Dowling em livro de mesmo nome, não é reconhecido pela Associação de Psiquiatria norte-americana.
  • 2
    GIROUX, Henri A. Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. p. 129-154.
  • 3
    LURIE, Alison. Fairy Tale Liberation. New York Review of Books, New York, p. 42-44, 17 dez. 1970. LIEBERMAN, Marcia. “‘Some Day My Prince Will Come’: Female Acculturation through the Fairy Tale.” College English 34 (1972): p.383 – 395
  • 4
    CAÑAMARES, Cristina. Algunos roles sexistas en los álbumes ilustrados infantiles: ¿un nuevo sexismo? In: YUBERO, Santiago; LARRAÑAGA, Elisa; CERRILLO, Pedro C. (Org.). Valores y lectura: estudios multidisciplinares. Cuenca: Ediciones de La Universidad de Castilla-la Mancha, 2004. p. 147-172.
  • 5
    LUISELLI, Valeria. O nascimento da Fridolatria. Revista Quatro Cinco Um, São Paulo. set. 2018.
  • 6
    Fearless Girl, Garota Destemida em português, é o nome da estátua de bronze, inaugurada em 2017, que representa uma menina enfrentando o tradicional touro do Centro Financeiro de Nova Iorque.
  • 7
    BEAUVAIS, Clémentine. “An exigence and a gift”: Committed children’s literature. In: The Mighty Child: Time and power in children’s literature. Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 2015. p. 147-184.

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  • Vita Ichilevici

    Pedagoga, Mestre e Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP. Tem como grande área de pesquisa a literatura infantil e seu uso na escola, com foco na intersecção entre educação e ética; ideologia e questões de gênero na LIJ; mediação de leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Adicionalmente, dedica-se a estudos sobre mercado editorial de livros infantis no Brasil e políticas públicas de incentivo à leitura. Trabalha com formação de professores para uso de literatura na escola e tem larga experiência em educação não formal e programas multiculturais para crianças e jovens. vita.ichilevici@usp.br

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