Quando a história é outra

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Liesenfeld Leticia

Quando a casa do meu pai foi assaltada, eu tinha cerca de 20 anos, não lembro bem, chegamos juntos depois do ocorrido para ver um mundo ao avesso, mesmo não havendo nada de grande valor para ser levado, quase tudo tinha sido remexido, quebrado. Só uma parte tinha ficado intocada, exatamente aquela para qual eu me dirigi com o coração batendo mais forte. Nenhum livro estava fora do lugar, a estante intacta com os poucos objetos indígenas, além dos livros, que o meu pai tinha trazido da sua temporada de pesquisa genética com o grupo indígena caiapós-macranotis, também chamados txucarramães. Lembro-me de guardar cuidadosamente aquela informação: livros não interessam aos assaltantes. Um grande medo recuou consideravelmente dentro de mim, pensei com alívio que meus livros nunca seriam roubados, que meu maior tesouro estava a salvo. 

Muitos anos depois, acompanhando alguns estudos sobre a tradução, eu fui fortemente influenciada pela leitura apaixonada de Jorge Luís Borges. Desenvolvi a partir de alguns textos e conferências de Borges uma perspectiva bastante aberta sobre a questão das traduções e versões. As marcas inevitáveis e indispensáveis presentes no ato de criação ao lado do que é a obra original são um caminho natural e aliás muito interessante da tradução de uma obra para outra língua. Pensamento que me guiou inclusive nas incursões que fiz no mundo da tradução do alemão para o português.

Estes dois marcos, o do “não roubo dos livros” e o da tradução como versão e criação, mesmo que historicamente um pouco distantes em se tratando de fases de vida, se encontraram recentemente como numa súbita abertura de portal, produzindo em mim um tipo de espanto raro que me impeliu imediatamente para a ação. Importante dizer que nesta sobreposição dos dois temas que a abertura do portal proporcionou aconteceu uma espécie de pororoca na qual o que se mostrou mais saliente foi a imagem de “um roubo de histórias”.

Sou atriz, contadora de histórias, professora, mediadora de leitura, pesquisadora e parte do núcleo de coordenação da Pós-graduação em Narração Artística d’A Casa Tombada. Desta forma fica claro, portanto, o lugar das histórias na minha vida e o eco permanente e justificado daquela fala inicial sobre os livros serem para mim um tesouro.

O que se faz com uma história, com uma narrativa, o modo de contar e recontar, de acrescentar ou reduzir, apurando o caldo do cozimento até chegar ao mais denso dos acontecimentos, como um “ponto pérola” de um doce cuidadosamente mexido em fogo baixo, sempre me interessou. Na relação muito saudável que tive com a vida acadêmica aprendi a importância de nomear os procedimentos. É importante dizer o que se está fazendo com o conto. A “casa-conto” em sua versão escrita (ou reescrita a partir de um conto de tradição oral) pode ser mantida próxima do que ela é, ou então servir como um ponto de partida para construir uma outra história, ou pode-se decidir alterar a narrativa, apresentando novas versões da mesma história. Neste último caso é importante observar porém quais são as paredes mestras desta construção para evitar que tudo possa ruir de forma inesperada. É fundamental que se possa nomear o que se pretende realizar. Se queremos apresentar uma paródia, uma livre inspiração a partir daquela história, uma atualização/adaptação etc. Cristina Taquelim, uma artista da palavra, das maiores contadoras de histórias que conheço e que me inspira profundamente, disse recentemente que, ao narrar um conto, é bom se perguntar: “o que o texto suporta sem hipotecar a sua natureza”. Passar o conto seja pela boca na transmissão oral ou a partir da narração oral novamente pela textura do papel numa outra experiência de criação escrita pede este tipo de cuidado. 

No final do ano passado, primeiro ano da pandemia de Covid 19, li um artigo da revista 451 chamado “Políticas do livro – Conta Outra” (https://docs.google.com/document/d/1pvXuwUbmGhvnS9G3tf8RHLp4dI8O19Fm/edit). O artigo da 451 faz uma análise crítica da coleção Conta para Mim, carro-chefe do programa de alfabetização voltado para as famílias brasileiras do governo Bolsonaro no MEC (Ministério da Educação) e das “adaptações” de contos clássicos, entre eles alguns contos recolhidos e reescritos pelos irmãos Grimm.  Nestas “adaptações” que a coleção faz encontramos absurdos como, por exemplo, um dos mencionados na revista, que “João e Maria não foram abandonados”. Se destrói neste caso, sem dúvida, uma parede mestra da casa-conto, e sem nomear o que se fez. Na destruição de um eixo constitutivo da história, agindo assim num movimento sorrateiro de apagamento e censura, deixa o leitor perdido, conduzindo-o para uma “outra história” que apenas se parece vagamente com aquela e dela lhe retira o nome.  Existem arcos narrativos quebrados em pontos tão estratégicos, como neste exemplo, que a história torna-se um corpo desarticulado, que se apresenta esvaziado de sentido para o leitor. 

A revolta sentida depois da leitura do artigo gerou a escrita de um breve texto que impulsionou a proposta de um projeto já em andamento com a amiga e pesquisadora dos contos, Yohana Ciotti.  A nossa proposta, apresentada ao Consulado Geral da Alemanha de São Paulo, e com o atual apoio deste, foi a de produzir uma espécie de resposta artística a um tal “roubo” de histórias que desde 1812 fazem parte da história mundial, como patrimônio histórico e cultural da humanidade. O projeto se chama História das Histórias. Um dos focos da proposta lança o convite para olhar, no caso de alguns contos da obra dos Grimm, para a complexidade e abertura destas narrativas, e para contos onde o protagonismo feminino se mostra igualmente carregado de complexidades e pontos de reflexão dentro da obra. Contamos as histórias (neste momento online) e abrimos uma roda de conversa sobre os múltiplos aspectos dos contos, o interesse em contá-los hoje, entre outros questionamentos que vão surgindo. Voltando ao tema central, o conteúdo vasto dos contos, originalmente guiados pela busca de empreender uma pesquisa linguística e histórica na época, com fins de preservação da memória, são agora alvo de uma manipulação bastante desonesta. Não há explicitação do que é feito, e por isso se aproxima de um processo de apagamento.

Me faz lembrar do livro de George Orwell (que aliás tem sido lembrado nestes tempos por causa de várias das suas obras), A Revolução dos Bichos, em que também sorrateiramente as “regras do jogo”, no livro uma “tábua de mandamentos” vai sendo alterada, apagada e manipulada segundo os interesses dos animais que procuram dominar a fazenda. Num trecho do livro, um dos outros animais, ao olhar para as leis escritas, diz – “Minha vista está falhando (…). Mas parece-me agora que a parede está meio diferente. Os sete mandamentos são os mesmos de sempre, Benjamin? Nada havia, agora, senão um único mandamento dizendo: TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS. MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS.” (Orwell, 1996, p. 128). 

Durante os encontros festivos, desta vez na família da minha mãe, surgiam junto à mesa histórias narradas ora por um ora por outro, entre risos ou algum momento mais tenso. E lembro-me de duas frases que estavam invariavelmente presentes, uma era – “a história não foi bem assim” – seguida de algum reparo na narração dos acontecimentos, entre risos divertidos pela possibilidade estimulante de um prolongamento da narrativa a partir desta mais nova versão e a outra, dita de forma seca e que produzia automaticamente uma suspensão tensa no ambiente como um todo era –  “a história é outra”. Aqui se chegava ao limite, não se vai ouvir calado uma história ser contada que não está apenas recoberta de detalhes outros, de uma brincadeira ou exagero, mas que não é mais aquela história. O alerta que ficava claro em momentos como aqueles é de fundamental importância nos tempos em que vivemos, é o de saber que precisamos estar atentos ao que já não é mais a história, saber que há limite para o apagamento ou para a distorção. 

Mário de Andrade chamava a atenção para uma questão que pode nos servir de alerta: “Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente estão porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares. As tradições imóveis não evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos são prejudiciais. Algumas são perfeitamente ridículas que nem a “carroça” do rei da Inglaterra.” (ANDRADE, 2015, p. 297). As histórias são daquele grupo de tradições móveis, cujas alterações vão acontecendo ao longo dos tempos, pelas muitas bocas que as vão contando ou pelos que as reescrevem depois de ouvi-las da boca de alguém, como no caso dos irmãos Grimm, sem no entanto perder seu sopro de vitalidade. Mas a outra tradição, a imóvel, uma água parada assentada há anos em moralismos e rigidez, tende a produzir, como neste caso, alterações longe da ideia de fluidez, mas com o propósito de censura e apagamento.  

Um dos perigos que se corre nestes momentos é, em nome de uma tradição imóvel, sermos manipulados até mesmo através da completa descaracterização de contos tão antigos, que são patrimônio nosso (não imóvel), abrindo precedentes assustadores de deturpação de narrativas, como às que temos assistido com o espanto de um encontro com antigos pesadelos. O que está ali, no programa “Conta para Mim” não são mais as histórias recolhidas e reescritas pelos irmão Grimm, nem sequer um fóssil delas, é só o vestígio de um roubo covarde. 

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  • Leticia Liesenfeld

    Atriz, contadora de histórias e professora. Mestre em Comunicação e Artes pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Professora e co-cordenadora do curso de Narração Artística n' A Casa Tombada - Lugar de Arte, Cultura e Educação.

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