Quando os livros povoam escolas periféricas

Post Author
felipecosta@revistaemilia.com.br Costa Felipe

Como reivindicar o direito a cultura dentro da escola
A escola que conhecemos

Quando vocês, leitores, imaginam uma escola localizada na periferia de uma grande cidade, como é o desenho que se monta no imaginário? Reflita um pouco.

As escolas que conheço, por ter nascido e crescido no fundão da Zona Sul de São Paulo-SP, têm uma estética muito objetiva, com uma planta que aparenta ter sido criada exatamente para não remeter a um ambiente de liberdade, de aprendizagem e convivência, assemelhando-se muito mais com as fábricas, com depósitos e, muitas vezes, até mesmo com instituições de correção penal; e não é um exagero dizer isso, a contar os vários portões e grades que costumava atravessar, uma seguida da outra, até chegar nos ‘pavilhões’ onde as salas de aula se encontravam. Essa imagem é recorrente, uma perpetuação do projeto educacional industrialista e colonizador, focado na formação técnica de mão de obra para alimentar a máquina voraz.

É curioso pensar que, quanto mais próximos do centro da cidade, onde as riquezas e a influência política estão concentradas, essas mesmas escolas, públicas, começam a ganhar formas e estruturas que simplesmente não temos acesso aqui, nas bordas da cidade.

Eu me lembro bem do momento, em que me dei conta dessa disparidade gritante. Cresci com um forte envolvimento no cenário cultural, como forma de preencher o vazio de se viver em uma região onde simplesmente não existe oferta e tampouco fomento a atividades recreativas. Em uma ocasião, junto a um grupo de jovens, decidimos fazer um “sarau” dentro da escola onde estudávamos, a E.E. Profª Amélia Kerr Nogueira, uma das últimas escolas pertencentes à Diretoria de Ensino Sul 2. Havia um palco imenso no pátio, em um grande salão que sofria com as infiltrações por ter sido construído em cima de uma nascente; a região é uma área de mananciais.

Na época, quando levamos nossa demanda para a diretoria, fomos prontamente desencorajados, sob alegações de que a escola não tinha estrutura e que deveríamos fazer solicitações, burocracias.  Em meados de 2009, éramos recém chegados ao ensino médio e  a cultura de rua já havia nos introduzido aos temas políticos e sociais que orbitavam em nossas vidas de maneiras sutis e constantes. Quando olhamos para as caixas de som penduradas no teto do pátio, e a mesa de som que estava empoeirada na sala ao lado do palco, percebemos ali que só através do diálogo (e também da pressão) conseguiríamos transformar aquele lugar inerte em algo vivo, em algo que fizesse sentido para nós enquanto pertencentes àquele espaço.

Dito e feito, conseguimos permissão para realizar o evento e precisávamos de um lugar para preparar os instrumentos musicais, os figurinos e outros detalhes das apresentações. Pensamos onde iríamos montar um “camarim”, e logo veio a ideia de usar a biblioteca que ficava ao lado desse palco.

Para usarmos o espaço da biblioteca, foi preciso destrancar um cadeado enorme que estava na porta, isso foi algo realmente marcante, jamais me esquecerei dessa cena. A biblioteca era apenas um depósito de livros e outros materiais didáticos, todos empilhados, empoeirados em uma sala sem iluminação, sem prateleiras, sem mesas e cadeiras, não era nem de longe um espaço de leitura como os que defendemos hoje em dia como sendo tão fundamentais.

Uma vez, dissemos em um encontro que ‘as bibliotecas são o coração das escolas’, e pelo que vimos ali, a nossa escola estava realmente morta. Isso tem um significado profundo para mim e para os articuladores desse território, pois se as políticas públicas de educação tratam a leitura e os acervos literários das regiões periféricas dessa maneira, é prova que de fato não se importam com nossa formação.

O que a sociedade quer de nós, além da nossa força de trabalho?

A partir dessa inquietação, da experiência de reivindicar o direito à cultura dentro da escola, nasceu o Núcleo de Jovens Políticos, e passamos a nos encontrar regularmente (inclusive na biblioteca) para trocar ideias sobre essas estruturas e a simbologia delas, e o que poderíamos fazer para transformar nossa comunidade em um lugar melhor.

As ações da juventude em M’Boi Mirim

A vida na comunidade é coletiva, suficiente e imensa em todas as suas possibilidades, e com essa energia, esses jovens das regiões de M’boi Mirim e Parelheiros lutam para transformar o bolsão de vulnerabilidade em espaço plural, onde possam expressar seus anseios e identidades, suas angústias e profundidades, e construir novas leituras de mundo a partir de suas vivências.

O Núcleo de Jovens Políticos é uma Organização da Sociedade Civil que atua desde 2010 no território de M’Boi Mirim, extremo da Zona Sul de São Paulo-SP. O propósito do coletivo é ampliar o protagonismo da juventude nos espaços da comunidade, através do fortalecimento de ações afirmativas, de ciclos de formação, promoção de direitos humanos e monitoramento de políticas públicas no território.

Nos reconhecemos como agentes comunitários e buscamos compreender as identidades e aspectos locais, registrando o impacto de ações populares e das políticas públicas, a partir da posição de munícipes que se engajam diante dos desafios que impedem a melhoria da qualidade de vida em seu território.

Quando há ausência e abandono da parte dos poderes públicos e institucionais, as pessoas e comunidades passam a se organizar de forma autônoma, criando e construindo situações e possibilidades a seu favor e, muito além de sobrevivência, percebemos aqui a potência e valor dos saberes e habilidades que florescem da cultura popular.

O grupo realiza mediações de encontros, formações, aulas abertas e audiências públicas, acompanhando pautas importantes do território, colaborando diretamente para a implementação e melhoria de serviços nos equipamentos públicos locais, criando vínculos de fortalecimento com os polos educacionais.

Durante os anos de relacionamento entre o grupo e a comunidade, foi interessante observar como se constrói o perfil de ‘sujeito político’ em um ambiente que é limitado de muitas maneiras e quais são as motivações que impulsionam gerações na direção da militância e das ações afirmativas. O que tem sido chamado de inovação social e empreendedorismo periférico na verdade é experimentado há realmente muito tempo nessas regiões.

Uma biblioteca sem cadeados no fundão do Jardim Ângela

A palavra ‘Quilombo’ quer dizer algo muito além do que apresentam alguns dos livros didáticos que recebemos no ensino fundamental, como sendo o lugar para onde os escravos fugiam. Como Abdias do Nascimento provoca em seu livro “O Quilombismo”, no sentido pelo qual caminhamos, quilombo quer dizer estar mesmo em comunidade; é a forma coletiva de viver.

Talvez, por essa razão, os livros não sejam tão profundos quando expõem esse conceito, e parece mesmo que os poderes concentrados jamais desejariam que as pessoas aprendessem a viver em solidariedade, em unidade — o quilombo, que desde sempre, traz consigo algo de revolucionário.

Atualmente, não existe um programa público de fomento à leitura, seja na esfera municipal, estadual ou federal, que alcance as chamadas áreas de vulnerabilidade. O que vemos nas regiões periféricas é a inexistência de qualquer acesso a políticas de acesso ao livro. É a partir daqui que podemos visualizar a grande potência da articulação comunitária nessa região; quando de dentro desses corpos articuladores surgem projetos, propostas, ações de engajamento que trazem a comunidade para esse debate. É assim em São Paulo-SP, como também em outros “fundões” das grandes cidades do Brasil.

O Programa de Fomento ao Livro e Leitura no Fundão da M’boi Mirim teve início em 2016, a partir de uma relação de amizade e parceria entre esses jovens articuladores do Núcleo de Jovens Políticos  e da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, com o apoio de representantes do Departamento de Educação da Companhia das Letras e do IBEAC — Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, com a missão de experimentar uma transformação social através da multiplicação de leituras, leitores e mediadores e clubes de leitura na região.

Através desse plano de ação que se constrói constantemente, pudemos vivenciar uma verdadeira transformação de cenário, e não apenas na biblioteca da escola.

A estratégia oferece uma programação completa, com cerca de 10 leituras ao ano, alcançando assim a média de leitura de países considerados desenvolvidos, abordando temas diversos, com práticas transversais e inclusivas, pautadas principalmente na educação popular e nas experiências locais.

A metodologia busca facilitar a multiplicação de mediadores de leitura e clubes do livro. Nossa missão é a efetivação de uma política pública de acesso ao livro e literatura no nosso território.

No primeiro ano de atividades, os articuladores propuseram que fosse desenvolvido o clube de leitura com as turmas consideradas “de menor rendimento” — o que foi contraposto pela coordenação, afinal como trabalhar mediação de leitura com alunos semianalfabetos? Essa era exatamente a nossa provocação. Como ex-alunos, sabíamos muito bem da condição de marginalização em que esses alunos se encontravam, pois também passamos por isso.

Do alfabeto que enumera as turmas, quanto mais afastado da letra ‘A’, pior é o desempenho do aluno, segundo o critério de avaliação do modelo vigente. Queríamos quebrar esse ciclo de invisibilidade, pois eram esses os jovens que precisavam ser incluídos, que precisavam ter sua existência reconhecida, e assim fizemos.

Após muita luta e empenho, no final do ano, foi constatada a melhora do rendimento e envolvimento desses participantes com a rotina escolar, o que empolgou todo o grupo curador e a coordenação escolar diante do projeto e de sua continuidade.

Foi uma experiência muito especial, pois os alunos que antes eram totalmente desmotivados a estudar agora encontravam um espaço que os valorizava, que incentivava sua livre expressão, algo que nunca havíamos experimentado no período em que também fomos alunos, mas que pudemos vivenciar juntos ali.

Aprendemos com nossos mentores e parceiros que, no sentido do desenvolvimento da nossa região, é mais importante investir na formação humana, na formação e capacitação de agentes protagonistas, do que apenas focar em formações “profissionalizantes” que apenas permeiam o básico necessário para ocupar postos de trabalho.

O programa conta com parcerias & amizades desde o início, junto a essa rede de apoio, e com a dedicação de todos os colaboradores.

O Clube de Leitura Quilombo Mirim foi um dos vencedores do 3º Prêmio IPL — Retratos d a Leitura em 2018, concedido às organizações e aos responsáveis pelos projetos exitosos na promoção da leitura e difusão da cultura literária; um reconhecimento pelo desenvolvimento na Escola Amélia Kerr.

Durante esse processo, pudemos entender a potência e responsabilidade das linguagens com as quais estávamos lidando, associando metodologias pedagógicas e colaborativas, percebendo que a simples iniciativa de reunir, organizar, dar voz e lugar, e agir sobre um problema local, é também exercício de cidadania posto em prática.

QUILOMBO MIRIM: Sonhos para o futuro

Chegando ao 6º ano desde o início do programa fomento ao livro, leitura, literatura no extremo Sul de SP, com muitos aprendizados, altos e baixos, e umas boas aventuras, os caminhos da leitura nos trazem para um momento onde florescem novas inquietações e desafios.

Além da falta de investimentos em políticas de desenvolvimento de aprendizagem, quando grandes alarmes chamam a atenção das esferas públicas, como no recente enfrentamento global da epidemia de SARS-COV-2 (A Covid-19), a educação infelizmente é tratada com menor prioridade — um problema grave pois as práticas educacionais e a própria escola estão relacionadas às políticas de assistência em geral; a educação é solar, muitos dos serviços mais essenciais orbitam em seu redor.

Uma dos maiores desafios para o fomento ao livro e literatura é exatamente o acesso aos materiais e plataformas de leitura, ou seja, retornamos aqui ao ponto em que se analisa a conjuntura estrutural da educação como direito no Brasil. O ensino público passou por mudanças que infelizmente têm afastado cada vez mais a população mais carente do acesso; um ambiente onde o atual governo busca irresponsavelmente empurrar medidas mal planejadas em todos os âmbitos, e nesse caso, tentam converter a rotina escolar em algo híbrido relacionado a tecnologias, mas sem prestar atenção a dados gritantes das regiões carentes e o isolamento tecnológico.

O grupo curador busca atualmente investimento para ampliar o programa, com o objetivo de implementar uma biblioteca comunitária na região de M’Boi Mirim, garantindo acesso a um acervo amplo de títulos nacionais, sendo a maioria de mulheres negras, de editoras independentes e marginais, priorizando autoras contemporâneas e reservando a outra porcentagem de obras para os considerados “cânones literários”. Acreditamos que é importante na contribuição para formação de leitores que acessem todo tipo de literatura, mas também é fundamental que sejam priorizadas as leituras que resgatam a identidade e cultura popular.

Indo além da participação nos Clubes de Leitura, nosso sonho é que essa juventude possa se sentir habilitada e empossada de ferramentas de organização, com entendimento para assumir a responsabilidade de protagonizar ações, como mediadores e também como formadores e, através da partilha de saberes, visamos a renovação de lideranças engajadas, alinhadas ao propósito de multiplicar ações afirmativas e expansão do alcance da Rede.

Encontramos aqui um caminho possível para a continuidade do programa e numa nova perspectiva de atuação conjunta com a comunidade, tendo como objetivo a participação inclusiva na construção de uma educação de qualidade no território, sendo possível observar também uma prática consolidada e amplamente expansiva, no sentido de permitir a adaptação, enraizamento e multiplicação da metodologia nos outros fundões espalhados pelo mundo afora.


Imagem: Tomi Adélàgún, Oil Strokes, Too young to die seroes, 2021 – Instagram: dspicturez_art.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Felipe Costa

    Pedagogo, articulador do Núcleo de Jovens Políticos e do Programa Quilombo Mirim de Fomento ao Livro e Leitura; voluntário de desenvolvimento comunitário desde 2010 no território de M’Boi Mirim, Zona Sul de São Paulo, auxilia as organizações e projetos locais no desenvolvimento e implementação de novas propostas.

    felipecosta@revistaemilia.com.br Costa Felipe

Artigos Relacionados

Mundos possíveis

YolandaReyes@revistaemilia.com Reyes Yolanda

Espaços de experiências das crianças

StelaBarbieri@revistaemilia.com Barbieri Stela

Como escolher boa literatura para crianças?

YolandaReyes@revistaemilia.com Reyes Yolanda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *