Quem ganha e quem perde? Eis a questão

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Os termos dos editais não deixam dúvidas, são suficientemente claros para provocar as reações e críticas já divulgadas. Em linhas gerais, o que temos é um documento que atrela a “literatura para crianças e jovens” aos livros didáticos. Qualquer argumentação em sentido contrário cai por terra quando a literatura é simplesmente incluída como um apêndice ao PNLD – Programa Nacional do livro didático1O programa de compras de livros de literatura PNBE – Programa Nacional de Bibliotecas na Escola, foi suspenso em 2015..Esta subordinação é a justificativa de todas as demais exigências: divisão dos livros por temas, propondo uma literatura “a serviço” das supostas necessidades definidas pelas escolas; uma “literatura” de caráter instrumental sempre a serviço de algo; uma “literatura” de caráter formativo, e a divisão rígida por faixas etárias. Daí para a padronização dos livros é um pulo: 3 formatos, mesmo papel, mesmo acabamento.

O resultado são livros destituídos daquilo que é uma das características centrais da Literatura: ser, acima de tudo, uma manifestação artística, isto é, entre muitas outras coisas, uma experiência de fruição e de catarse que faz com que o leitor, o ouvinte, o espectador, saia de seu lugar, rompa com a linguagem cotidiana e amplie seu olhar para além do seu mundo restrito. Todas as manifestações artísticas têm recursos e técnicas que, amalgamados pelas mãos de um artista, se convertem em peças únicas, inesquecíveis, transformadoras, em virtude da força que contêm.

No caso do livro para crianças e jovens, num mercado editorial como o brasileiro – que já atingiu maturidade e reconhecimento internacional, no qual temos um parque gráfico desenvolvido em comparação a outros países –, perder de vista que o livro se realiza em sua plenitude como um objeto, representa um retrocesso de décadas. Retrocesso que descarta o que de melhor em experimentação, ousadia e criatividade foi produzido nos últimos anos.

É importante considerar ainda que, frente a um mercado que, nos últimos anos, se caracterizou por uma produção superaquecida, responsável por uma quantidade avassaladora de produtos – ritmo alterado apenas pela crise atual –, os livros que se sobressaem e que permanecem geralmente são fruto de todo um cuidado com o objeto em sua totalidade.

E, se isto fica mais evidente quando se trata de livros ilustrados ou álbuns (pela presença do papel central das ilustrações), de um modo geral, as novelas juvenis, também se destacam pelo cuidado com que são editadas e pela ousadia e experimentação de sua forma literária.

Tudo isto para reforçar que o formato, o papel, o número de páginas, não são secundários ou descartáveis, mas fazem parte e são componentes estruturais de um livro, de uma obra. A padronização arbitrária só pode contribuir para o empobrecimento geral de um trabalho criativo que normalmente foi decidido durante um processo envolvendo muitos olhares, muitos profissionais.

E quanto aos chamados elementos paratextuais? Só se faz necessário explicar e estabelecer a ponte entre o livro e o tema, quando o que importa é a “mensagem”, a temática que pode ser trabalhada e não o livro como objeto artístico ou peça literária. Estamos cada vez mais longe de uma leitura literária, base para a formação de futuros leitores independentes. Sem falar na volta dos materiais de apoio ao professor, dos velhos guias de leitura, materiais praticamente inexistentes e objeto de crítica por parte de muitos professores.

O que há por trás disto? O que significa este retrocesso de décadas na promoção do livro infantil e juvenil em nosso país? Onde foram parar todas as teorias sobre leitura e formação de leitores difundidas, discutidas nas últimas décadas?

Estamos diante de concepções de literatura, de leitura, de leitores e, claro, de infância, jovens e educação totalmente distintas por trás dessas políticas. Concepções que têm tomado de assalto não só as instâncias educativas ligadas à leitura (a Escola Sem Partido talvez seja o exemplo mais radical), como o mundo das artes – lembremos das reações a exposições consideradas moralmente ofensivas. E, mais recentemente, até mesmo os prêmios, como presenciamos na reformulação do Jabuti. Ou será que quando se estabelece, como é o caso nesta nova fase do Jabuti, como um dos critérios de avaliação do livro infantil e juvenil “o caráter formativo em conhecimento ou valores” estamos falando de algo diferente? Ou quando se suprime o prêmio aos ilustradores, deixando de lado o papel autoral destes criadores?

Concepções construídas certamente no calor da necessidade de se contrapor e negar tendências mais progressistas e democráticas, mas que nem por isso deixam de ser formulações que dão sustentabilidade às políticas recentes.

Sabemos que a crise política brasileira abriu as comportas para uma polarização que restitui autoridade a concepções que tinham ficado, se não fora do espectro de possibilidades, pelo menos reduzidas a focos isolados nas últimas décadas. O golpe parlamentar abriu espaço e colocou em primeiro plano estas concepções que hoje alastram seus tentáculos em todas as direções. Trata-se, sim, de uma reação, aos avanços – infelizmente frágeis – conquistados nas últimas décadas. E, enquanto tal, tem que ser enfrentada na radicalidade que uma postura ideológica política exige: resistência e mobilização social.

O desdobramento de uma discussão dos caminhos a seguir ultrapassa em muito qualquer posição individual ou corporativa, mas é possível dar alguns passos na compreensão deste panorama: Quem ganha com esta virada nas políticas de compra de livros, por exemplo?

Desde uma perspectiva meramente de mercado, sem dúvida, ganham os grandes grupos editoriais que, além de terem estrutura para enfrentar as múltiplas exigências do edital, têm o livro didático como abre-alas para entrar nas escolas. Ganham também as editoras que desenvolveram seus catálogos tendo como destinatário as escolas e não as crianças ou jovens, cujos interesses, gostos e práticas leitoras vão por outros caminhos.

Ganham as tendências políticas mais conservadoras, muito pouco preocupadas com o papel transformador e crítico que a arte possa exercer, contrárias, aliás, a qualquer disciplina e/ou atividade sensível ao despertar do espírito crítico das novas gerações. Donde a supressão da filosofia, da sociologia e, por que não, da história e da geografia dos programas curriculares – o que, como se sabe, já foi feito. E a literatura, por não ser fácil de suprimir, passa pela desqualificação daquilo que ela é, transformando-se em algo artificial, secundário e a serviço do ensino da língua nas escolas.

Enfim, quem ganha? Um status quo imposto arbitrariamente, nem um pouco interessado em preservar a memória, a história, em promover cidadãos capazes de ter consciência de seu papel social. Ou, para falar dos tempos estranhos em que vivemos, com capacidade de discernir fake news dentro do verdadeiro caos de informações veiculadas nas redes sociais.

E quem perde?

Para começar, as pequenas e médias editoras (cujo trabalho nas escolas é praticamente insignificante em relação ao dos grandes grupos que atuam em todo território nacional) e suas propostas de catálogo mais ousadas e originais, preocupadas com a qualidade e os seus leitores. Este golpe somado à profunda crise do mercado,2No ano de 2017, deixaram de ser publicados no Brasil um milhão de exemplares, de acordo com a pesquisa “Produção e vendas do setor editorial brasileiro”, publicada em maio de 2017 e realizada pelo SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e a CBL (Câmara Brasileira do Livro). A isto podemos acrescentar a crise das livrarias – pensemos nos casos da Livraria Cultura e da Saraiva (ambas representando pelo menos 32% do mercado nacional). nos coloca diante de uma situação muito delicada do setor de livros para crianças e jovens. A tendência visível, diante deste quadro, é das editoras reduzirem ainda mais o investimento em projetos mais “arriscados” e focarem em livros que se adaptem melhor às novas exigências dos editais. A falta de políticas de fomento a livrarias e bibliotecas acabam afetando este setor diante da escassez de vias de distribuição.

Quem perde com isto?

Perdem as tendências progressistas que tanto batalharam nas últimas décadas para a construção de uma educação moderna, pautada na aposta da inteligência das crianças e jovens. E na valorização das manifestações artísticas como porta para a criatividade e das ações de consideração do outro, do social, do coletivo.

Perdem os criadores (autores, ilustradores, editores, designers gráficos), cujos trabalhos não se destinarão, na sua plenitude, a todos os leitores. Afinal, há algo mais arbitrário do que determinar que um livro num formato “x” ou “y” em sua origem, impresso em um papel mate ou fosco para melhor valorizar as cores, tem que ser mudado para facilitar a sua distribuição, ou para garantir maiores compras?

A questão é: Quais as consequências, a curto e médio prazo, desse acesso desigual aos livros? O livro, a leitura e o acesso à literatura têm no Brasil as escolas públicas como um de seus principais canais de difusão. Quem perde com essas mudanças?

O processo de democratização de acesso à cultura das camadas sociais menos favorecidas foi interrompido, e a desigualdade só tende a crescer em todos os âmbitos. As consequências disso podem ser dramáticas para as novas gerações, maiores perdedores nesse processo – estamos falando do futuro do país.

Mas se o desmonte de algumas estruturas parece fácil, a resistência de muitos trabalhos sociais, que se organizaram ao longo das últimas décadas, se impõe e marca presença. No mundo do livro e da leitura, as bibliotecas comunitárias são um dos maiores exemplos desse trabalho, e a atividade de muitas bibliotecas públicas também. Os famosos saraus da periferia em todo o Brasil, assim como festivais, feiras cada vez mais frequentadas. A mais recente mobilização dos professores pela garantia de seus direitos trabalhistas, com apoio de muitos pais e alunos , é um forte indicativo desta mobilização social. Assim como, o número cada vez maior de professores militantes da leitura, a formação de sólidas redes de intercâmbio pelo mundo afora, instituições públicas e privadas promovendo um trabalho de formação de ponta, a Lei Castilho que acaba de ser sancionada, dentre inúmeras outras, são algumas ações que atestam isso.

Enfim, nada disso é pouco, mas a crise está aí. Uma crise que não podemos perder de vista, dado que não é só brasileira. Uma crise que, em menos de dois anos, fez o Brasil retroceder algumas décadas no plano social. No campo do livro, da leitura e da formação de leitores, cabe resgatar e garantir o direito igual de todas as crianças e jovens brasileiros ao acesso democrático e indiscriminado de uma produção de qualidade, de excelência, em sua diversidade e riqueza de formatos, estilos e gêneros.

Notas

  • 1
    O programa de compras de livros de literatura PNBE – Programa Nacional de Bibliotecas na Escola, foi suspenso em 2015.
  • 2
    No ano de 2017, deixaram de ser publicados no Brasil um milhão de exemplares, de acordo com a pesquisa “Produção e vendas do setor editorial brasileiro”, publicada em maio de 2017 e realizada pelo SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e a CBL (Câmara Brasileira do Livro). A isto podemos acrescentar a crise das livrarias – pensemos nos casos da Livraria Cultura e da Saraiva (ambas representando pelo menos 32% do mercado nacional).

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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