re-vÊ-ja: Bradbury, Iversson e a TV

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MagnoRodrigues@revistaemilia.com Rodrigues Faria Magno

se não controlarmos nossos pensamentos
a mente se torna nosso pior inimigo
tipo eu falar
o medo enlouquece as pessoas
gatilhos
suspiros
suspeitos
que indica o vazio
e a dor no peito
vejo páginas proclamar a solidão
mas então
solidão ou liberdade
compaixão e equidade
não se discute
mas repercute
na net
veja a poluição saindo da sua tela
e não espere que a revolução saia dela
(…)

Iversson Natan, 19 anos, poeta, publicado na página @vozes_perifericas

— Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes1Paredes é o termo utilizado para designar as grandes televisões que, nesta distopia, ocupam a parede toda e fazem as pessoas acreditarem que interagem com ela. porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com minha mulher; ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido. E quero que você me ensine a entender o que leio.

Ray Bradbury (1920 – 2012), escritor, trecho de Fahrenheit 451.

Que internet, o quê! Hoje vamos de televisão. Fascinante essa contadora de histórias. Enfeitiça! Assim, desse jeito veloz e sorrateiro que ela mata! Eita! Isso mesmo: mata. Vejam esse causo:

Esse menino bão da fotografia está na Globo pela segunda vez no ano de 2020. É o Isac Vinicius com sua mãe, a Benta.

Bão memo.

Vendeu cuscuz, arrumou um dindim e fez em julho uma surpresa pra mãe, “grande trabalhadora incansável”: comprou um hambúrguer e entregou na cama pra ela. Filmou tudinho pro nosso delírio. Que surpresa bunita!

Ow, bunito memo.

Dá pra chorar, poxa.

A mãe chorou na hora da surpresa,

chorou no replay,

o Isac chorou,

eu chorei,

“Telminha” chorou,

Rafa KCallimmanm chorou

e até a Patricia Poeta chorou.

Um hambúrguer, pensa.

Aí foi pra globo, opa.

Virou amigo da Patrícia. “Eu até mando umas mensagens pra vc, néam Isac?”

Pô, vem aquele nome da Patrícia Poeta no seu Instagram com selinho azul e tudo e pá. Semi famoso, do nada!

Aí aquela síndrome de princesa Isabel que a TV tem – e não só ela, repare! – não deixa a pergunta fugir:

“O que mudou na sua vida, Isac, depois da primeira aparição aqui, no programa Encontros”

《destaque para o sorriso Colgate da apresentadora》

E o maninho mete marcha dizendo:

“Antes a gente precisava de cesta básica, hoje a gente distribui”.

Pegou essa frase? Pô, digna de um líder! 13 anos, bebê! Você tá lendo ainda? 13 anos! Em seguida, corta prum vídeo dele neste ano loko de pandemia distribuindo os alimentos, aliás de dignidade, fartura, cesta pesada. Sem aquele miserê que uma galera que tem muita grana deu e que acompanhamos em postagens e programas de TV. O já famoso ia jogar fora, melhor doar e se sair bem nas mídias sociais. Mas, o assunto é TV!

Um muleque, de 13 anos. Tudo feito pra chorar, porque é legal mesmo, pô. Época de Natal. Todo mundo sensível.

Um guri de 13 anos distribuiu com mó galera, num movimento firmeza, cesta básica pra dedéu!!

13 anos, vendendo cuscuz, conseguiu, nessa pandemia, com família e amigxs, distribuir cesta básica, bunito: todo mundo de máscara, distanciamento e pá. E você aí, reclamando da vida, de que morreu alguém próximo, de que não recebeu auxílio emergencial, de que tem que pegar o trem lotado, de que reclama que não tem tempo para ler, de que, de que, de que… péim! Olha a TV te matando! Danada! Te pegou, não foi? Já tava se sentindo culpado pela crise sanitária que poderia ser evitada, né? Achou mesmo que era o grande responsável por sermos o país que pior lida com a pandemia? Não? Eu quase caí!

O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!”

Ray Bradbury, Fahrenheit 451

A gente quase esquece, que essa ação deveria ser o governo fazendo, essa distribuição mínima? Não diminuindo o feito do lindo Isac, longe disso. Mas no mínimo, ações em conjunto com a comunidade, falaí! De que não é favor do governo, e sim uma obrigação devolver dinheiro por nós investido! De que a imprensa que se diz oposição ao desgoverno é a aliada! É pedir muito a dignidade mínima? Peço muito?

Mas aí corta pro SPTV, o Kovallick conduz a “emocionante” reportagem com os comerciantes de Moema que tiveram que fechar metade dos seus 14 restaurantes, que as pessoas não foram almoçar em Moema no dia de Natal (naquele dia maisda hora de comer a comida das tia, pensa, tem gente que vai pra restaurante…), por culpa da fase vermelha que isso, que aquilo, que o Dória pediu, tadinho, desculpas porque ele queria 10 dias de férias em Miami “depois de um ano muito duro pra todos nós”, 《silêncio do kkkovallick! Logo ele que comenta tudo》, assim como a galera lotando Ilhabela que não usa máscara “porque na areia é muito difícil mesmo”, sentencia o repórter… Porrada no mercado Ryccoy por causa de máscara na zona sul…

Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!

Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!

Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!

E ao não protestar, ao não estranhar, ao aceitar, ao deixar-se enfeitiçar, ao se culpabilizar, ao se anestesiar, ao não parar, ao comprar o que pedem, ao financiar, portanto, ao não parar para ler um bom livro, conversar sobre ele e agir na sociedade que você vive, como bem nos ensina Ray Bradbury e Iversson Natan , é assim, assim desse jeitinho que ela, a televisão, sorrateiramente te mata! E ainda passa o globo esporte na sua tumba!

Em tempo, pare. Leia, converse, troque e age!

Notas

  • 1
    Paredes é o termo utilizado para designar as grandes televisões que, nesta distopia, ocupam a parede toda e fazem as pessoas acreditarem que interagem com ela.

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  • Magno Rodrigues Faria

    Pedagogo formado pela Faculdade de Educação da USP, com pós-graduação em “A arte de narrar histórias”. Possui experiências nas redes pública, privada e terceiro setor. Atualmente atua como coordenador e educador de biblioteca, pelo Instituto Acaia, contador de histórias em espaços de cultura (A Casa Tombada, Casa da história, CCSP, Espaço de Leitura do Pq. da Água Branca, Biblioteca Mário de Andrade entre outros).

    MagnoRodrigues@revistaemilia.com Rodrigues Faria Magno

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