Sem conteúdo não há aprendizagem

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David Pujol Fabrelles 1David Pujol Fabrelles é professor e pedagogo. entrevista Marina Garcés 2Esta entrevista foi publicada originalmente no Nº 32 da Revista La educación inicial en América Latina, em 2 de fevereiro de 2022. Uma publicação de Rosa Sensat a quem agradecemos a autorização pelo direito à publicação. Link origibal https://www.rosasensat.org/revista/numero-32-la-eduacion-inicial-en-america-latina/entrevista-marina-garces-sin-contenidos-no-hay-aprendizaje/

Se há uma palavra que define Marina Garcés é compromisso. Compromisso com a vida como um bem comum. Compromisso com a cultura como ferramenta de emancipação. Compromisso com o pensamento crítico coletivo. Compromisso com a educação dos filhos. Compromisso com a docência universitária de qualidade. Compromisso, em última instância, com a dignidade e a liberdade.

David Pujol Fabrelles Marina Garcés tem, por um lado, uma marca pessoal poderosa, mas, por outro, uma obsessão por “nós”, por lutas compartilhadas, por aprender a conviver juntos…

Marina Garcés  Essa tensão entre o singular e o plural é claramente visível. Qualquer sujeito é ao mesmo tempo um singular – uma vida que é una – e um plural – que é feito de laços, relações, heranças, necessidades, interdependências… –, e o que me interessa explorar, tanto filosoficamente quanto politicamente, como também a partir das práticas da vida cotidiana, é essa tensão viva entre o eu e o nós, sem reduzi-la à oposição ou à contradição indivíduo-sociedade. O problema é como fazemos sociedades a partir dos indivíduos, e parto da ideia de que tudo que é singular é plural, mas tudo que é plural também é feito de singularidades. Não podemos ficar na versão do “nós” homogêneo, ou seja, homogeneizado pela política, pelo mercado, pelas identidades culturais ou de gênero… Esses “nós” feitos de homogeneidade anulam o valor da singularidade.

DPF   Em uma conferência que você deu no MACBA você disse que a educação tinha a ver com aprender a conviver a partir de problemas comuns a partir da condição de poder pensar sobre esses problemas cada um por si.

MG – É uma atualização da definição clássica de emancipação, que é essa ideia kantiana de poder pensar por si mesmo, sem a tutela de outro. Para mim, faltam os problemas comuns: poder pensar por si mesmo sem a tutela de outro… o quê? Se nos dedicarmos a pensar em problemas que não são problemas, ou a pensar apenas em nossos próprios interesses, ou a pensar em um sistema como o nosso, que é de pura opinião… tudo isso, ainda que o façamos sem a proteção de outro, não é emancipador. O que é libertador é a capacidade de nos encarregarmos de problemas comuns, desde a condição de poder pensá-los cada um por si mesmos. E aqui voltamos à tensão de antes, entre o comum e o particular, entre cada um e os demais. Para mim, a educação é o conjunto de práticas, saberes, transmissões e modos de fazer as coisas que nos permitem, a todos e a cada um de nós, aprender a pensar os problemas comuns de nosso tempo.

DPF  Este é o desafio que devemos ter, portanto, ao ensinar a pensar.

MG – Sim, e uma das grandes discussões que existe hoje no mundo pedagógico é que, para ensinar a pensar, são necessários os conteúdos. Não se pensa no vazio, nem se pensa apenas de forma metodológica. O pensamento não é um procedimento vazio de conteúdo, mas uma relação livre com os saberes, os conhecimentos e os problemas do nosso tempo. Se não há conteúdo, nenhum pensamento é possível.

DPF  Você não concordaria, então, com o discurso predominante, que dá muita força às competências…

MG – Há uma luta que não foi resolvida. Fala-se muito de concepções instrumentais em que o foco é apenas colocado em como processar determinadas operações, mas, por outro lado, não se fala muito do que é isso, do que estamos falando, de quais ciências estamos aprendendo, de que livro estamos lendo, de que problemas do mundo estamos nos ocupando… Não estou dizendo que tudo isso deva ser prescrito de forma fechada, mas se não houver conteúdo, não há aprendizado.

DPF Isso se conectaria com a ideia que você defende de dar o passo de aprender a aprender para aprender a apreender?

MG – Exato. Este é um tema que retomo no meu último livro, Pedagogias e emancipação. O ponto de partida de aprender a aprender é interessante: é a ideia de que não devemos apenas fazer o que nos ensinam a fazer, mas também questionar os limites e os contextos em relação aos que estamos aprendendo o que aprendemos. Essa seria a ideia fundamental de aprender a aprender. O ponto de partida, então, me parece bastante inquestionável, mas o problema surge quando se torna um fim em si mesmo. Esvazia-se de conteúdos e do debate coletivo – que é pedagógico, mas também político, cultural, ético – sobre que coisas e com respeito ao que estamos fazendo essas aprendizagens. E é aí que a comunidade ganha valor. No procedimento há critérios de sucesso e insucesso, a partir das rubricas educativas e de outras instrumentais que estão dominando completamente o conjunto de valores que estão sendo aplicados atualmente no espaço educacional.

DPF  Os procedimentos precisam ser revistos, então?

MG – Os graus de otimização, de sucesso, de resultados de aprendizagem, de validação de objetivos, tudo isso se aplica igual a uma empresa, a um projeto acadêmico, a um projeto de pesquisa ou ao aprendizado de uma criança de três anos. Não pode ser que os procedimentos sejam iguais para tudo, e que ignoremos a matéria-prima e a forma de tratá-la, que é diferente em cada caso. Não há procedimentos únicos, rubricas únicas e mecanismos únicos de sucesso e fracasso.

DPF E é por isso que você diz que há muito debate metodológico e didático e, em vez disso, pouco debate pedagógico de fundo?

MG – Neste momento, a grande resposta de como educar se reduz a uma batalha entre concepções metodológicas da educação: fazemos desta ou daquela forma, fazemos com projetos ou sem projetos, com mais ou menos tecnologia, com mais ou menos jogos… Mas será que nos perguntamos o suficiente como queremos ser educados como sociedade? E, mais importante ainda, que educação queremos receber e compartilhar? O que queremos saber? Como? Com quem? Porque? Todas essas questões não estão na metodologia pura.

DPF Você disse em alguma ocasião que educar é elaborar o esboço da existência.

MG – Aos meus filhos eu falo que aprendam a perder o medo. Sempre o terão, mas devem saber perdê-lo. Agora estou escrevendo um livro sobre a filosofia da aprendizagem – o sentido que dou à aprendizagem, isto é, não um procedimento mais ou menos bem-sucedido, mas uma relação de sentido com o mundo – e começo com uma primeira parte que chama-se “Acolher a existência”. Para mim a educação é isso: a arte de acolher a existência. A existência, por si só, não é nada. Nascer, desde o início, é um ato imposto: ninguém te perguntou se você queria vir ao mundo ou se queria viver. Portanto, começamos mal, com poucas garantias de dar a nós mesmos uma vida plena. Chegar a existir é chegar a poder comparecer com os outros e entre os outros, e isso implica aprender a ter uma vida em comum.

DPF Você diz que é simples e complicado ao mesmo tempo.

MG – Sim, porque poucas coisas são necessárias, principalmente tempo, espaço e atenção. Sem esses três elementos essenciais, podemos complicar as ferramentas de ensino, os objetivos e as rubricas o quanto quisermos, e não faremos nada.

DPF Tendo em conta tudo isto, o que deve ser mudado nas escolas?

MG – Neste momento da minha vida tenho duas experiências opostas: por um lado, ter acompanhado os meus filhos ao longo do ensino fundamental e agora começar a entrar no ensino médio, por outro, ser professora universitária. São dois mundos que, na trajetória de uma pessoa, são muito próximos, mas também muito distantes, como se fossem dois universos paralelos. Isso já nos diz algo estranho. Quase nenhum dos valores que regem a escola primária se mantém quando você chega à universidade. No período do ensino médio, começo a vislumbrar o que acontece e por que vão se perdendo. Vejo que tudo vai se focando, cada vez mais, em objetivos mercantis e muito instrumentais.

DPF Que recomendação você daria?

MG – Que os professores voltem a ter confiança em si mesmos. Tem havido um assalto ao mundo concreto da educação por todos os tipos de discursos que tiveram o efeito de encher de inseguranças e encher de complexos o coletivo docente. Dá para perceber que trabalham se justificando continuamente pelo que fazem. E isso cria uma tensão no mundo educacional que não é boa.

DPF Você afirma que nossos sistemas educacionais estão entrando em um território perigoso, pois tendem a um ensino eficaz, mas muito servil.

MG – Sim. Digo isso porque estamos passando do regime disciplinar anterior, onde a obediência era medida com base na resposta quase mecânica às regras, para formas contemporâneas de servidão, baseadas no autodomínio: auto regulação, automotivação, autogestão, autoaprendizagem… Aonde leva tudo isso? A esquecer que sempre aprendemos “com” alguém. Esse “com” não precisa ser o professor, que hierarquicamente está acima de todos: já é sabido que ninguém tem e nunca teve o monopólio do saber. Não aprendemos sozinhos, porque não vivemos sozinhos. Neste momento, há um foco colocado na falsa ideia de emancipação, que é fazer da pessoa o diretor de si mesma. E quem fracassa? Quem não controla a si mesmo, quem perde a calma, quem não controla suas emoções… Não a liberdade sobre si mesmo, mas o domínio. Portanto, quem é o mais obediente? Quem melhor se adapta a um regime de poder em mudança, cada vez mais incerto e dinâmico. Este é o súbdito atual.

DPF No livro Nova Ilustração radical você diz que um dos discursos da atual pedagogia renovadora é afirmar que é preciso se preparar para um futuro do qual nada sabemos. E que você não pode imaginar uma declaração mais despótica e aterrorizante do que esta.

MG – Sim, nesta frase há uma parte de verdade empírica: é claro que nada sabemos sobre o que não aconteceu. Mas os futuros por vir estão diretamente relacionados às nossas ações no presente. E agora estamos percebendo isso mais intensamente do que nunca porque o impacto da ação humana no planeta, por exemplo, é diretamente tangível em termos de futuro. Porque estamos destruindo-o. Portanto, não é verdade que não saibamos nada sobre o futuro: sabemos muitas coisas sobre ele, não no sentido de poder antevê-lo, mas no sentido de construí-lo, de fazê-lo ou desfazê-lo; tudo depende de como olhamos para ele. Por isso é aterrorizante, a frase, porque desconecta o que está por vir do que estamos fazendo agora. O futuro não será como gostaríamos que fosse, mas estará diretamente relacionado ao que estamos fazendo agora. Portanto, o compromisso do presente é a chave do futuro.

DPF Você levantou o paradoxo de que, por um lado, o sistema público tem impulsionado a transformação neoliberal, mas, por outro, os sistemas pedagógicos críticos estão em lugares não oficiais.

MG – Uma certa herança de algumas pedagogias mais críticas, ativas, transformadoras e até revolucionárias foram incorporadas hoje a alguns experimentos pedagógicos que muitas vezes estão nas mãos de poucos, à margem do sistema, mas no topo. É o que alguns autores chamaram de segregação dos ricos. Neste momento na educação reflete-se muito bem que há segmentos da população mundial que estão se alijando do destino comum da humanidade, em termos ambientais, econômicos e até cognitivos. E se apropriam de um instrumental pedagógico que o que queria era transformar a sociedade como um todo. Por isso é paradoxal e curioso: hoje em dia as escolas alternativas são para os ricos.

DPF No livro Carta aos meus alunos de filosofia você dava 10 conselhos finais, imitando o que a freira e artista americana Irmã Corita havia feito na década de 1960. O quarto ponto diz: “Evite distrações inúteis e não se contente com a ‘pose’ ridícula do estressado, ‘sobrecarregado’ e superado pelas circunstâncias. É ridícula”.

MG – Estamos todos sobrecarregados com mais coisas daquelas que podemos fazer, e isso se tornou uma atitude. E se traduz em uma frase que me parece aterradora: “Não consigo pensar no que estou fazendo”. Muitos professores dizem isso, mas isso acontece em muitas outras profissões. A super exploração do tempo que sofremos cria impotência, e nos protegemos dela com desculpas, e é aí que o argumento se torna perigoso. Passa de ser uma realidade a ser um pretexto para não parar para pensar. Vou reproduzir esta carta aos alunos no livro que estou preparando sobre educação.

DPF Quanto à universidade, você diz que ela infantiliza. Porque?

MG – Houve uma derrota histórica da universidade como instituição que, para mim, tem como missão disponibilizar os saberes de cada época de forma universal ao conjunto da sociedade. Isto não significa que todos devam ser universitários, mas que esta instituição deve ser um lugar de criação que deve funcionar como caixa de ressonância dos conhecimentos e dos debates vivos de seu tempo. É evidente que a universidade que temos neste momento, neste país, mas também no mundo como um todo, não está desempenhando esse papel. Passou a uma função que terá seus sucessos e seus fracassos, mas que é diferente: fazer do conhecimento superior um espaço de competição, de rivalidade e de valorização em termos de mercado. Não quero idealizar a universidade do passado, porque claro tinha outros problemas e servidão, mas atualmente esta instituição de ensino superior é um conglomerado de empresas do conhecimento, e terá o destino que lhe cabe, mas muito distante da ideia de universidade que eu tenho.

Imagem: Foto de Joan Juanola

Notas

  • 1
    David Pujol Fabrelles é professor e pedagogo.
  • 2
    Esta entrevista foi publicada originalmente no Nº 32 da Revista La educación inicial en América Latina, em 2 de fevereiro de 2022. Uma publicação de Rosa Sensat a quem agradecemos a autorização pelo direito à publicação. Link origibal https://www.rosasensat.org/revista/numero-32-la-eduacion-inicial-en-america-latina/entrevista-marina-garces-sin-contenidos-no-hay-aprendizaje/

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  • David Pujol Fabrelles

    David Pujol i Fabrelles é professor e pedagogo. Escreveu, sozinho ou em colaboração, artigos e livros de divulgação, didáticos e trabalhos sobre a história da educação. Atualmente, ele combina seu trabalho como professor na escola Jaume Vicens i Vives em Roses com o ensino na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade de Girona. Foi diretor da revista Alberes de 2009 a 2019. É autor, juntamente com Joaquim Tremoleda, de La Mare de Déu del Mont (2018) e L'Ajuntament explicou às minhas filhas (2020), publicado pela Editorial Gavarres.

    davidpujolfabrelles@emilia.org.br

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