Shaun Tan, em A chegada, como não admirar?

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AldaBeraldo@revistaemilia.com Beraldo Alda

A chegada. Esta é uma obra que se insere no rol da literatura desejada para que o lema “presentear leitores”, “desafiar leitores” e “formar leitores” se faça realidade. Bastante curioso, porque A Chegada é uma literatura sem palavras. É uma obra constituída apenas de imagens, em que os quadros – à semelhança de histórias em quadrinhos, tecem uma narrativa que o leitor precisa verbalizar. Sem palavras, mas da mesma forma que uma narrativa verbal, se assenhora do conceito “a melhor literatura” e mergulha o leitor em uma experiência estética legítima. Possibilita uma participação pessoal e emotiva que se expande para a percepção do coletivo, da sociedade e da condição humana. Uma obra que foge aos temas comerciais pensados para crianças e jovens, a ser abraçada por leitores de todas as idades.

Qual história conta? A de um homem que vive as clássicas adversidades experimentadas por um imigrante, antecedidas pela tensão que determina o abandono da terra de origem em busca de uma vida possível em terras estrangeiras. Qual o motivo para nosso personagem deixar seu país? Não sabemos, podemos inferir – e aí inicia a parte do leitor, aquela em que, para construir um significado é necessário interagir com a obra. Para isso, a experiência de vida do leitor conta? Sim. Suas experiências específicas com leitura – de textos verbais e visuais contam? Sim. Mas tenham os leitores mais ou tenham menos experiência, A chegada os acolhe com facilidade devido ao imenso fluxo de linguagem visual em que o planeta está mergulhado. Mas sem deixar de ser uma leitura desafiadora. Vejamos por quê.

Essa narrativa visual tem mais de 700 quadros, de variados tamanhos, vinhetas articuladas entre si que, além de gerarem significados como percurso narrativo, solicitam que seus detalhes sejam vistos como arte que produz emoção conforme se realiza. Por que os quadros variam de tamanho e ocupam os espaços de formas variadas? – às vezes um quadro ocupa toda a página ou páginas duplas; outras vezes, uma página apenas possui sessenta quadros – embora semelhantes, diferentes… E assim vão tecendo as mudanças de vida do personagem que se prepara para trazer a mulher e a filha a esse novo lar.

Cada quadro é uma parte do discurso e traz uma situação, uma ação ou uma emoção significativa, unindo-se na mente do leitor. As imagens narram à semelhança de um escrito – um conto, uma novela, um romance, um roteiro de cinema. O tempo narrativo é incerto: um ano, vários? O leitor calcula, embora isso não seja essencial. Em que época histórica ocorre? O leitor imagina – talvez possa utilizar os dados sobre os intensos movimentos migratórios no mundo, nos séculos XIX e XX – épocas que inspiraram o autor. Tais ocorrências, revividas no século XXI, são também referência para o leitor atual.

Vinheta após vinheta, as similaridades com a linguagem do cinema apelam ao leitor, informando, desafiando sua compreensão e provocando emoções: os cenários amplos distanciam, oferecem panoramas, os closes envolvem um cara a cara interessante, redimensionando os significados – como a mão que embrulha, passo a passo, a fotografia da família e a coloca na mala; a mão segura a alça da mala, as mãos da criança se prendem à mão do pai, ao despedir-se, cravando tristeza e deslizando saudades.

E o que os ângulos, a eloquência de uma câmera invisível, dizem ao leitor? Este, ora é colocado à altura dos olhos dos personagens, ora é colocado no alto, para admirar a arte de Shau Tan, outra hora é posto para vê-la de baixo para cima. São técnicas artísticas que o leitor processa, tornando-se coautor, interpretando, talvez mais povoado de sensações do que de palavras.

A obra desafia, coloca perguntas e também responde ao leitor, que tem de observar, reconhecer, identificar e atribuir sentidos. O leitor é chamado a interpretar também o uso de cores que Shaun Tan escolheu para essa obra: o sépia. Por que essa cor e por que a escolha do monocromático? Por que em algumas situações o sépia dá lugar à escala de cinza, para depois retomar seu espaço? O leitor fará antecipações – leitor e obra responderão, interligando o explícito e o implícito. E tentará responder à própria pergunta: por que o artista inclui em várias cenas e cenários tão realistas figuras de animais ou seres estranhos, surreais, bizarros? Por que a sombra densa de uma cauda de dragão se intromete pelos edifícios? Por que ali? O que representa?

Esses desafios são oportunos, pintam a obra de qualidade – aquela de dar trabalho ao leitor, de deixar vazios, de possibilitar a liberdade de sentir, imaginar, concluir… ou de nada concluir…. Uma obra não ter palavras não significa ser uma leitura menor. Ser uma obra desafiadora é qualidade artística tão desejável para compor o repertório de leitura das crianças, dos jovens, dos adultos, atendendo à importância da variedade de leituras na formação leitora.

Se pensarmos como leitura para jovens, A chegada respeita sua inteligência e sua sensibilidade. Abre portas generosas para estabelecerem diálogos entre si – em uma roda de leitura, em um recanto de conversa, em uma aula formal. A chegada, que aninha a solidão humana, que expõe a profunda necessidade de pertencimento, é tão oportuna para dialogar com a condição juvenil, em que tantas vezes se vivencia a incompreensão e a rejeição como medos que ameaçam. Aqui também se trata da busca de pertencimento, do sentimento de incompreensão, da identificação de diferenças, da busca de identidade. A obra chama o leitor a opinar sobre o sentimento de exclusão e sobre a necessidade de sentir-se pertencente a um grupo, um lugar, uma cultura.

Se A chegada trata de diferenças, na face oculta trata do respeito às diferenças, da confraternização com os desfavorecidos em situações de adversidade, sem ser moralizante – uma qualidade literária que, ao pedir o diálogo com o outro, colabora para a construção de um espaço interno que acalenta a sensibilidade e atiça a crítica. Não são essas qualidades desejáveis para se construir como uma pessoa melhor e como um leitor experiente?

A chegada: arte gráfica e abordagem humana e social dolorosamente poética que presenteia o leitor.

Shaun Tan?

O autor é australiano, foi o último aluno da sala, quando estudante – mas conhecido como “o bom desenhista”. Tão bom que passou das ilustrações de histórias de horror e de ficção científica, na adolescência, a artista premiado em muitas categorias, em vários países, como melhor obra, melhor livro ilustrado, melhor artista profissional, melhor curta de animação (recebeu um Oscar, como criador e adaptador em versão cinematográfica da sua obra A coisa perdida). A árvore vermelha, livro ilustrado, foi adaptada como peça teatral e suas imagens fizeram parte de performance musical de uma orquestra de câmara australiana. Ilustra obras de outros autores, faz esculturas, pintou um mural. Ilustrou e escreveu Contos de lugares distantes, com textos mais longos porém enxutos, pontuados por fatos surpreendentes, mansamente inquietantes. Toda obra de Shaun Tan é amiga do exótico e da poesia. Temas densos, experiências emocionais, enfoques políticos e sociais estão presentes nas obras desse artista – como fez com A chegada, lançada originalmente em 2006.

E um pouco mais: Shaun Tan pesquisou durante quatro anos para produzir essa obra – leu biografias, analisou fotos, postais, filmes; entrevistou imigrantes, como o próprio pai que lhe deu a vida catorze anos depois de deixar a Malásia, emigrando para a Austrália.

Seus oito livros, como autor e ilustrador, são classificados como infantojuvenis – uma classificação que nos parece desnecessária.1Texto finalista apresentado ao curso A Literatura me mata – Existe a literatura juvenil?, organizado pelo Laboratório Emília de Formação, 2017.


Imagem: Ilustração de Shaun Tan, A chegada, Edições SM.


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  • Alda Beraldo

    Formada em Letras (USP), especialização em alfabetização (IVC). Formadora da Comunidade Educativa CEDAC há 15 anos, atuando em vários Estados do Brasil presencialmente. Atua como formadora do curso a distância Itinerários Literários Virtuais, pela CE CEDAC. Participou da equipe de elaboração do material adaptado para o Brasil, Myra, juntos pela leitura – programa inspirado no Lecxcit – Leitura para o êxito escolar (Catalunha), parceria CE CEDAC e Fundação SM. Faz parte da equipe de apoio permanente da Revista Emília.

    AldaBeraldo@revistaemilia.com Beraldo Alda

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