Suprassumos do Estapafúrdio

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Por que o programa “Conta pra mim”, lançado pelo MEC na semana passada, é tão ruim? Quais são os seus equívocos? É importante destrinchar a bomba para saber do que ela é feita. Então, vamos lá.  Em primeiro lugar, do que se trata? Trata-se de um programa vinculado à Política Nacional de Alfabetização e aposta na “literacia familiar” para favorecer o desenvolvimento da leitura, escrita e oralidade das crianças pequenas.  Ou seja, é um programa voltado às famílias, colocadas como corresponsáveis pelo sucesso do processo de alfabetização das crianças, junto às escolas. Trata-se de ensinar e estimular pais e cuidadores a ler, jogar, brincar, contar histórias para as crianças. O programa cita pesquisas americanas que comprovam que quanto mais as crianças têm contato com a leitura e escrita dentro de casa, quanto mais as famílias conversarem com essas crianças, melhor será o seu desempenho escolar.  Mas… Isso não é verdade? Esse contexto realmente não ajuda? Ajuda, claro. Isso é sabido. Mas não é suficiente. E mascara nossa realidade. E como mascara! Eu olhei com atenção – e paciência, muita paciência – o material desenvolvido para o programa. E quero tecer alguns comentários. Ácidos. Necessários.  

1. A responsabilidade maior é da escola, óbvio. Portanto, um governo verdadeiramente preocupado com o desempenho e alfabetização de suas crianças, investiria seus quinhões em programas consistentes de formação de professores e gestores escolares e educacionais. Investiria em compra de livros e materiais de qualidade, que consideram como a criança pensa, que a consideram como capaz e observadora atenta da realidade à sua volta, inclusive no que diz respeito à leitura e escrita. Investiria em acompanhamento das aprendizagens. Investiria em ações que pudessem envolver as famílias, apoiando-as no acompanhamento da vida escolar das crianças, e não as responsabilizando pela alfabetização de seus filhos.  

2. Vamos pensar no contexto brasileiro? De verdade? Vamos pensar nas famílias que temos em nosso país? Muitas mulheres sozinhas, trabalhando loucamente para criar os filhos, pegando conduções demoradas até seu trabalho, enfrentando as funções domésticas e… precisarão ler para seus filhos de noite. Percebem? E ainda, se não lerem, será por isso que o filho não se alfabetizou direito. Entendem? Muitos pais nessa rotina pra lá de puxada… Olha, se as crianças têm livros em casa e pais ou cuidadores que leem, maravilha, óbvio! Mas se não têm, a escola precisa garantir esse contato com a linguagem escrita de forma consistente, frequente e com sentido.  

3. O programa e seu material. Desculpem-me, mas a tal mascote Tito é estereotipada e de mau gosto, ainda por cima, infantiliza e idiotiza as crianças e suas famílias.  

4. A série de vídeos produzida – assisti aos 5 primeiros disponíveis no site do MEC – é extremamente preconceituosa. Trata as famílias como principais responsáveis pelo sucesso de seus filhos na alfabetização, ilustrando a importância da literacia familiar com exemplos extremos, que desqualificam as famílias, jogando o peso e a culpa em cima delas. Já passamos por esse discurso na educação, muito em voga décadas atrás, quando se procurava compreender o fracasso escolar a partir da origem dos alunos. Sabe-se hoje que é responsabilidade da escola. Toda a criança pode aprender. Se ela não aprende, a escola precisa se questionar quanto ao trabalho realizado.

5. O acervo de livros é de pouca qualidade. Seria incrível se as famílias recebessem uma boa bibliotequinha com livros infantis de qualidade em casa (já tivemos programa assim)! No entanto, elas receberão livros feitos sob medida para esse programa. Por quem? Instituto Maurício de Sousa (por que ele não ficou apenas no terreno dos gibis, mesmo?). Sabemos o que vem: Desenhos estereotipados, que a criança vê em qualquer lugar (haja Mônica e seus amigos..), textos reduzidos e de pouca qualidade narrativa.  

6. Para completar, a cereja do bolo. Nas “palavrinhas” de Weintraub: “Vai ser só historinha bonitinha, fica tranquila. Folclore do Brasil… a preocupação de trazer o Maurício de Sousa é pra trazer esse ar de brasilidade. Sem doutrinar, sem nada, respeitando todas as diferenças que tem no Brasil. A gente tá lidando com criança pequena, mais cuidado ainda.” Entenderam? Pois é. Literatura e sua complexidade passam longe. Muito longe.  Desculpe, ministro, a gente não fica tranquila, não.    


Imagem: Ilustração de Chris Raschka, Meu crespo é de rainha, Editora Boitatá.


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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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