Tempos do sensível

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Não consigo me lembrar da primeira lembrança que tenho de um livro. É como se eles estivessem sempre estado lá, abarrotando desorganizadamente a pesada estante de ferro que tinha no corredor estreito que dava para a escada, ou livremente espalhados pelo chão junto aos brinquedos que eu e minha irmã compartilhávamos. Naquela época, os livros que conhecíamos eram leves e vinham recheados de figuras coloridas, e como ainda não sabíamos ler as palavras impressas, também entendíamos as letras como imagens dançando pelas páginas. Às vezes, nossos pais nos liam em voz alta a história que estava escrita; noutras, eu desfrutava do livro à minha própria maneira, interpretando seu conteúdo e materialidade em um virar de páginas sem ordenação, diferente da leitura linear realizada pelos adultos. Da maneira que fosse, ainda consigo evocar a sensação do efeito singular que essas experiências iniciais de leitura me causavam, absorvendo aquelas imagens de tal modo que elas permaneciam vivas em minha mente, passeando para fora do livro, invadindo meus sonhos noite adentro. Era como se o mundo funcionasse a maior parte do tempo na frequência do relógio comum, mas quando eu entrava em contato com essas histórias ilustradas, outros tempos se inauguravam. Tempos em que o que determinava o ritmo das coisas não era mais aquela velha cadência de horas, minutos e segundos, e sim o desenrolar dos tempos particulares de minha própria imaginação, animada pelo contato com aquelas narrativas.

Pensar nessas memórias de quando era pequena me faz passear por uma sensação de entrelaçamento entre diversos tempos. Éclea Bosi, em seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, fala do tempo como algo múltiplo, que extrapola a cadência linear do tempo do relógio mecânico. A autora distingue o “tempo social” do “tempo individual”, considerando que “em meios diferentes, ele [o tempo] não corre com a mesma exatidão”. Nesse jogo do tempo plural, entrariam as diversas experiências sensíveis de cada um, de acordo com a diversidade de contextos da experiência humana.

O ciclo do dia e noite é vivido por todos os grupos humanos, mas tem, para cada um, um sentido diferente. A noite pode ser um florescimento do social, uma intensificação do amor e da amizade que se expandem e brilham sem as peias da rotina diária. A noite pode ser um lapso de abandono e de medo para a criança, para o solitário que vê as ruas se esvaziarem, para o doente ou o asilado. A noite tem durações diferentes para o trabalhador braçal, para a dona de casa, para o escolar.1BOSI, 1979, p. 339.

A divisão do tempo em horas no relógio, portanto, nem sempre dá conta de caracterizar os outros ritmos que passeiam pela correnteza do tempo sensível, que pode caminhar na toada do ritmo dos afetos, ou na lenta sucessão particular da “sedimentação das lembranças”. Rita Bredariolli também aborda criticamente as representações do tempo, ao questionar a insistência em um modelo que privilegia amplamente a “linha reta” como parâmetro:

Desde crianças apreendemos esse tempo retilíneo representado por uma linha reta desenhada em lousas ou livros didáticos. E a insistência desse modelo nos impregnou de tal forma, que não o questionamos […]. Como se houvesse uma data de nascimento e morte de um conjunto de ideias, de produções, de pensamentos, de afetos, de manifestações culturais.2BREDARIOLLI, 2014, p. 4.

O questionamento do paradigma da linearidade nos instiga a imaginar outros desenhos possíveis da progressão da vida, no sentido do reconhecimento de sua diversidade e variabilidade. Em vez de uma simples sucessão de eventos, a temporalidade como constelação complexa, em que se entrelaçam os caminhos da memória, da imaginação, do acaso. Éclea Bosi fala de “uma apreensão do tempo dependente da ação passada e da presente, diversa em cada pessoa” e de um “tempo represado e cheio de conteúdo”. A autora utiliza esse vocabulário que remete aos processos da água, do rio que segue em frente, mas que também percorre organicamente diversos desvios, curvas, afluentes. Esse encharcamento de caminhos possíveis que pode servir de metáfora para a própria constituição do que seria o caráter múltiplo do transcorrer da existência, na correnteza que passeia pela justaposição de uma trama de veredas.

Nesse sentido, a divisão do tempo também poderia operar de modos distintos nas diferentes fases de nossas vidas, compreendendo-se, por exemplo, a juventude ou a velhice como períodos nos quais ele operaria em ritmos singulares e específicos, de acordo com as particularidades de cada etapa do ciclo da vida. A esse respeito, Ecléa afirma que “a infância é larga, quase sem margens, como um chão que cede a nossos pés e nos dá a sensação de que nossos passos afundam”.

Quando decidi me dedicar ao ofício da ilustração, especialmente de livros, percebi o quanto a vontade de ilustrar se relacionava com um retorno àquelas primeiras experiências com livros ilustrados que conheci quando criança, o quanto me movia por uma busca em extrapolar o tempo mecânico da rotina para revisitar a sensação do tempo largo da infância e seus passos fundos. Queria reviver o prazer em desenhar, rabiscar, garatujar e inventar histórias. Afinal, conforme comenta Ecléa Bosi, a memória é algo que “pode percorrer um longo caminho de volta, remando contra a corrente do tempo”. De tal modo, para seguir o caminho adiante, meu movimento tem sido o de voltar para trás, fugindo à suposta linearidade do transcorrer da vida.3 As reflexões deste artigo resultam da dissertação de Mestrado da autora, denominada “Trajetórias de um fio de rio: narrar por imagens no contexto do livro ilustrado”. Disponível integralmente no Repositório Institucional da UNESP.


Imagem: Ilustração Anita Prades


Referências bibliográficas

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

BREDARIOLLI, Rita Luciana Berti. Histórias: dos caminhos de tempo, o chitão de palavras em um borbotar de imagens. Anais do XXIV Congresso Nacional da Federação de Arte-Educadores do Brasil. [formato digital]. Ponta Grossa: FAEB –UEPG, CLEA, 2014.

Notas

  • 1
    BOSI, 1979, p. 339.
  • 2
    BREDARIOLLI, 2014, p. 4.
  • 3
    As reflexões deste artigo resultam da dissertação de Mestrado da autora, denominada “Trajetórias de um fio de rio: narrar por imagens no contexto do livro ilustrado”. Disponível integralmente no Repositório Institucional da UNESP.

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  • Anita Prades

    Ilustradora, designer e atriz. Mestre pelo Instituto de Artes da Unesp. Ilustrou os livros Alberta e o pássaro azul (Terceiro Nome), de Cristina Mutarelli; Fábulas de La Fontaine (Melhoramentos), de Fernanda Lopes de Almeida; Cadê o Pintinho e Os incomodados que se mudem (Pulo do Gato), ambos de autoria de Márcia Leite; dentre outros. Autora do livro Fio de Rio (LIVRE/ Selo Emília). Membro da equipe editorial da Revista e do Selo Emília.

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