Uma história presente – Entre feminismo, justiça social e qualidade

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cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

Lendo as páginas do livro Una Storia Presente (Uma História Presente), é forte a percepção do valor concreto para a comunidade, gerado pela luta das mulheres feministas de Reggio Emilia.1Reggio Emilia, uma pequena cidade italiana, é famosa no mundo pela abordagem pedagógica das suas escolas da infância. [Nota da tradução]Inclusive no Brasil, hoje, há diversas escolas que se inspiram em tal abordagem, são muitos os livros de Reggio Emilia traduzidos, são diversos os parceiros que trabalham com as organizações de Reggio Emilia. É uma experiência considerada de alta qualidade no mundo todo, da China aos Estados Unidos, da Suécia à Argentina.

Mas de onde nasceu essa história, tão conhecida hoje no mundo inteiro?

Há alguns personagens-chave que tiveram um papel muito importante para o nascimento dessas escolas da infância. Nomear todos sem se esquecer de alguém é impossível. Certamente, o mais conhecido é o professor Loris Malaguzzi, que, nas escolas, cuidou dos conteúdos e da abordagem pedagógica. Menos conhecidas são as pessoas que criaram as condições para que tais escolas nascessem. Entre elas, Loretta Giaroni, Secretária Municipal da Escola e dos Serviços Sociais que, nos anos sessenta do século passado, entre outras, foi protagonista do nascimento e da difusão das escolas da infância, públicas e municipais.

Mas vamos dar um passo para trás. A tese que este artigo visa propor é a de que, em uma sociedade tendencialmente patriarcal, os processos e as inovações que nascem das mulheres e do movimento feminista são essencialmente equitativos e de qualidade. Equitativos, porque são baseados em um forte senso de justiça social. De qualidade, porque são tratados nos aspectos da participação e do valor intrínseco ao próprio projeto. Isso porque, para se sobressair social, economica e politicamente, um projeto com matriz fortemente feminina, infelizmente, precisa ser de qualidade superior. Há diversos exemplos desse tipo de processo, mas, para o que interessa à reflexão deste artigo, assumiremos o fato como uma reflexão verdadeira, dificilmente contestável em termos pragmáticos, e nos concentraremos na experiência de Reggio Emilia.

O primeiro pilar dessa abordagem pedagógica é a centralidade dos direitos das crianças. As crianças são consideradas cidadãs do hoje (e não só do amanhã) e, portanto, são portadoras de direitos, inclusive políticos, que devem ser respeitados e promovidos. No mesmo porto também irá ancorar a Declaração Universal dos Direitos da Infância das Nações Unidas, sancionada em Nova Iorque, em 1989. Em Reggio Emilia, tal consciência surgira muitos anos antes. Mas sempre foi assim?

Eu, como Município, como Secretária, sustentava o direito das mulheres a serem apoiadas pela política do Município, com os serviços para a infância, para conciliar família e trabalho. Foi em um segundo tempo que o direito da criança se tornou primário (Loretta Giaroni, Una Storia Presente, página 145).

Portanto, tal consciência, que emergiu muito cedo, descende do percurso que as mulheres fizeram a partir da exigência de terem os próprios direitos dentro de uma sociedade. Se assumirmos como verdadeira a narrativa de Loretta Giaroni, e de tantas e tantos outros, partindo-se dos direitos das mulheres, foram conquistados também direitos para as meninas e os meninos, para os seus pais, as suas famílias, para o território. E, observando a experiência de Reggio Emilia em um nível sucessivo, foram gerados também direitos de inclusão para meninas e meninos com deficiências, ou para crianças em condições sociais e econômicas de pobreza, bem como para filhos de famílias migrantes.

A luta das mulheres era, portanto, uma luta para todas e todos.

E este era o ponto principal da política da UDI (União Mulheres Italianas): remover os obstáculos de natureza vária – econômicos, políticos, sociais, culturais – que impediam às mulheres de se afirmarem na sociedade, não como os homens, mas de se afirmarem com os direitos que os outros cidadãos também tinham. E, então, nunca dissemos que as mulheres devem ser iguais aos homens; dissemos; “devem ter direitos iguais”, portanto, o acesso ao trabalho, ainda antes o direito ao voto, o direito a um salário igual por um trabalho igual, o acesso a todas as carreiras… (Loretta Giaroni, ibidem, pág. 144)

Atualmente, este tema é muito recorrente no percurso do feminismo contemporâneo: não uma luta só para as mulheres, mas uma luta pelos direitos de todas e todos. Para a época, era uma sensibilidade muito iluminada, que abordava o conceito de igualdade, mas precisamente, igualdade de direitos.
Qual era a condição anterior ao trabalho de Loretta Giaroni nas escolas? Por que o seu trabalho e o de outras mulheres (que aprofundaremos em artigos posteriores) deve ser considerado decisivo?

Quando chego, em 1967, havia só duas escolas municipais para 220 crianças; metade das crianças residentes estava fora de qualquer escola e as escolas que existiam eram paroquiais, exceto as poucas da UDI que permaneceram, porque vinte anos de resistência às dificuldades econômicas tinham destruído essas instituições, abertas logo após a Libertação.

A libertação mencionada é o percurso de saída da Itália da ditadura fascista e da ocupação nazista, percurso no qual as mulheres tiveram um papel tão fundamental quanto os homens, tanto em termos de resistência, quanto, posteriormente, em termos de reconstrução do país.

Na época, a cidade de Reggio Emilia, era governada pelo Partido Comunista Italiano, ao qual aderiam também grande parte das mulheres que fizeram a história presente. Todavia, são numerosas as narrativas e os testemunhos de autonomia do movimento feminista e, até mesmo, de contraste aos homens do mesmo partido, quando se tratava de direitos e de liberdade. Era, de fato, uma sociedade muito patriarcal e o trabalho das mulheres era certamente muito fadigoso. Era especialmente difícil fazer emergir projetualidades, como as que estamos mencionando. Teve um papel muito importante, tanto em termos de escuta, mas também de promoção do percurso de nascimento das escolas, o prefeito Renzo Bonazzi, que possibilitou o surgimento e o crescimento dos serviços educacionais de maneira importante.

Eu chego com este compromisso, praticamente moral, mas também político, de fazer de tudo para criar, rapidamente, escolas da infância. Em cada reunião que fazíamos com as mulheres, havia sempre alguma que dizia: “Mas, enfim, são tantos anos, por que não em Reggio? Por que os outros sim?” (Loretta Giaroni, Ibidem, página 145).

Começa assim o trabalho para a criação de escolas. Muitas serão abertas naqueles anos, construídas do início ou regeneradas de edifícios já existentes.

Lembro-me de um debate do conselho, em fevereiro de 1971, em que estávamos em uma fase nova, mais avançada: já tínhamos começado a consolidar o serviço e ali apresentamos um plano ao conselho municipal de 15 novas escolas, para passar de 57% a 90% a escolarização das crianças de três a seis anos. A palavra de ordem era: escolas financiadas pelo Estado, programadas pelas regiões e administradas pelos municípios, com a colaboração das famílias e das forças organizadas da localidade.

Do trabalho que emerge desses documentos, compreende-se que as escolas da infância também eram uma ocasião de discussão sobre a organização do Estado e dos serviços públicos. As pessoas envolvidas tinham uma ideia de funcionamento da máquina pública muito avançada sob o ponto de vista político e administrativo. Mesmo sem terem tido estudos particularmente complexos, haviam entendido como os serviços deveriam funcionar, para garantirem equidade e qualidade. A mesma reflexão feita para a organização do Estado também encontra uma conjugação no interior dos serviços do município.

Enquanto Malaguzzi cuidava fundamentalmente dos conteúdos das escolas, das experimentações, enfim, da experiência de dentro das escolas, com o trabalho educativo, o meu trabalho era este: fazer as escolas, porque, se não existissem, ninguém poderia trabalhar lá dentro… então, houve meio que uma espécie de divisão de tarefas, ainda que houvesse uma comissão de vigilância, escolhida pelo Conselho Municipal, que discutia sobre todos os aspectos da política das escolas municipais.

Dessa narrativa, surge o conceito de divisão e integração das competências. A política cuidava da criação de condições para que houvesse as escolas, a equipe, a administração necessária para o funcionamento das mesmas e, naturalmente, os recursos econômicos. Os pedagogistas, 2Pedagogista – terminologia utilizada para designar o profissional com formação em Pedagogia, que coordena mais de uma escola da infância e trabalha em contato direto com a equipe. [Nota da tradução] principalmente o professor Malaguzzi, trabalhavam na geração do projeto educativo, construído juntamente à equipe com a participação dos pais, do qual as meninas e os meninos eram os protagonistas. Dessa maneira, cada um levava uma contribuição concreta, de acordo com a própria profissão, identidade e potencialidades individuais.

Certamente, temos que reconhecer também o valor visionário e criativo do professor Malaguzzi, das pedagogistas, dos atelieristas3Atelierista – profissional com formação artística, que trabalha em tempo integral nas escolas da infância, em parceria com os educadores, levando as próprias competências, dando maior valor ao projeto pedagógico.[Nota da tradução] e da equipe educativa, que, naqueles anos, lançaram as bases para o nascimento e o desenvolvimento do Reggio Emilia Approach.

O percurso gerado pelas feministas foi portanto uma revolução política, antes mesmo que pedagógica, na qual as mulheres assumiram os serviços educacionais (e podemos dizer a mesma coisa para os serviços sociais) e criaram bases de equidade de acesso para todas e todos, através de um percurso de participação, no qual a contribuição de cada uma e cada um era absolutamente decisivo, sempre dentro de um framework administrativo que estava se consolidando, ganhando força graças às experiências que estavam sendo feitas, em um percurso recursivo. A qualidade teve a contribuição de muitas e muitos que participaram da construção do projeto educativo, no centro do qual o conceito de direito é fundamental e essencial.

Dessa história, além do valor pedagógico das escolas da infância, podemos extrair alguns elementos que a política atual do mundo todo, em fase de regressão, deveria levar em consideração.
As mulheres, organizadas ou não em associações, são um recurso muito pouco representado, tanto nas funções políticas, quando nas de liderança. Trata-se de um gravíssimo desperdício de recursos e de humanidade, que leva a uma perda geral de inteligências e sensibilidades, das quais há uma grande necessidade. As instituições, os serviços, o tecido produtivo, cultural, econômico, jurídico precisam de uma grande renovação que leve em consideração a paridade de acesso, a igualdade de direitos reclamada por Loretta Giaroni e por outras mulheres da época, e que, ainda hoje, são um ponto sobre o qual refletir de maneira decidida, para que passos importantes sejam dados.

O fato de que esse tipo de percurso também gera qualidade é outro elemento a ser considerado, de maneira atenta e consciente, em uma sociedade que tende a uma simplificação, além de leituras e soluções grosseiras para problemas complexos.

A história de Reggio Emilia, uma história presente, nos ensina que, onde as mulheres encontram espaço de expressão política e profissional, são gerados percursos de equidade, justiça social e qualidade, que podem proporcionar desenvolvimento, crescimento, direitos para todas e todos e, principalmente, bem-estar para toda a comunidade.

Tradução: Thais Bonini

Notas

Os testemunhos de Loretta Giaroni são extraídos do livro Una Storia Presente. L’esperienza delle scuole comunali dell’infanzia di Reggio Emilia, Corsiero Editore, 2020.

  • 1
    Reggio Emilia, uma pequena cidade italiana, é famosa no mundo pela abordagem pedagógica das suas escolas da infância. [Nota da tradução]
  • 2
    Pedagogista – terminologia utilizada para designar o profissional com formação em Pedagogia, que coordena mais de uma escola da infância e trabalha em contato direto com a equipe. [Nota da tradução]
  • 3
    Atelierista – profissional com formação artística, que trabalha em tempo integral nas escolas da infância, em parceria com os educadores, levando as próprias competências, dando maior valor ao projeto pedagógico.[Nota da tradução]

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  • Cristian Fabbi

    Cristian Fabbi é Presidente da Reggio Children. Tem vasta experiência na gestão de sistemas de educação da primeira infância nos setores público e privado. Desenvolveu programas e iniciativas para introduzir e fortalecer a educação de qualidade na África e na Ásia, em países como Azerbaijão, Camarões, Ciad, Eswatini, Guiné-Conakry, Laos, Ruanda e Seicheles. Trabalhou por longo tempo em Kosovo, com diversas ONG’s (Caritas, RTM). É membro do grupo de trabalho ECA (Early Childhood Authority) de Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos. Na Albânia, trabalhou com a UNICEF com a adaptação do framework para as cidades amigas das crianças. Trabalhou para a Save the Children na criação das Diretrizes para o ECCD, com o Observatório para os Direitos da Infância.

    cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

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