Uma homenagem à Emília Ferreiro

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goldin@emilia.com.br Goldin Daniel

Há poucos dias, Emilia Ferreiro faleceu na Cidade do México (sua terra adotiva).

Para qualquer um dos muitos que tiveram o privilégio de conversar ou trabalhar com ela, será difícil esquecer o brilho nos seus olhos, revelando a sua inteligência aguçada e a sua curiosidade insaciável. O seu olhar era intenso, generoso, exigente e ao mesmo tempo implacável. Não foi exatamente fácil conversar ou colaborar com ela. Em todos os momentos nos forçando a (re)pensar, a (re)observar. Questionar e propor. Para verificar e continuar fazendo isso, sem descansar. Com aquela intensidade que só as crianças mais curiosas , que não raramente são também as mais desobedientes, costumam ter.

Quando já tínhamos confiança, certa vez ela me contou que as crianças eram muito engraçadas até entrarem na escola. Pode ser paradoxal que uma pessoa que dedicou praticamente toda a sua vida à Academia e ao trabalho na e pela Educação fizesse esta confissão. Mas também é revelador: ela nunca se sentiu intimidada pela Academia. Questionou as afirmações teóricas que serviam apenas para expor um discurso que não implicava em pensar. Cada postulado teórico poderia ser questionado e cada observação era razão para uma nova hipótese que, na realidade, era a semente de uma teorização. Sua capacidade de desmontar as respostas refúgio dos preguiçosos foi um estímulo, assim como sua capacidade de observar e ouvir atentamente, às vezes intimidadora. Diante dela estava sua generosidade em reconhecer a capacidade de pensar em qualquer pessoa, de qualquer idade. Dentro e fora da escola.

Uma verdadeira democratização do saber começa pelo reconhecimento do papel ativo de qualquer pessoa, alfabetizada ou não, na construção do conhecimento. E ela fez isso, não apenas reconhecendo e compreendendo o poder teorizador das crianças. Vive e fez muito, mas certamente faltou-lhe tempo para aprofundar e ampliar suas pesquisas.

Alguma vez, me falou com empatia de seu professor e mentor, Jean Piaget: “Podia te acordar às 4 da manhã para verificar uma informação. Você tinha que entender.”
Com certeza, ela se utilizava disso para se justificar. No seu caso, isto se combinava com o desejo de incidir no mundo. O seu compromisso político andou de mãos dadas com o seu rigor intelectual.

Embora seu trabalho principal se concentrasse na pesquisa e na docência, seu trabalho foi muito mais amplo. Como editora e gestora contribuiu decisivamente para (re)pensar o campo da leitura e a formação de leitores, incorporando questões, perspectivas e atores. Descobriu e criou vínculos e redes, cruzando e ligando disciplinas, grupos e continentes.

Jardín Lac (1) reconhece e valoriza sua marca fecunda ao convocar diversas pessoas próximas a ela para dar um pequeno depoimento e convidar nossos leitores a conhecer seu trabalho.

Daniel Goldin

Nota:

1 Texto originalmente publicado na Revista Jardin Lac, a quem agradecemos a autorização para publicação. Disponível em: <https://www.jardinlac.org/post/emilia-ferreiro-un-m%C3%ADnimo-homenaje>. Acesso em: 13 set. 2023. A autoria coletiva foi atribuída a Daniel Goldin, editor da Revista.

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Querida Emília,

Quando falamos de você em conversas, na França, mas também nos diversos países onde conheci pessoas que trabalham na educação, na pedagogia, na leitura e na escrita, na maioria das vezes, não falam de você como uma pessoa, mas como um nome próprio que se tornou uma referência, uma teoria, um paradigma, um emblema. Na Ilíada, quando Homero evoca Ulisses, inevitavelmente fala do “filho de Laertes, aquele das mil astúcias”, quando fala de Atenas, inevitavelmente se refere à “deusa dos olhos azul-esverdeados”.

Quando falam de você, na França, inevitavelmente se referem a dois epítetos: “construtivismo piagetiano” e “psicogênese da escrita”. Você é a “filha construtivista de Piaget”. É assim que você está inscrita, como todos os mortais, na procissão das filiações (em grego, a palavra para designar uma procissão é “teoria”: é exatamente isso). Você também tem, como os heróis ou imortais, seu próprio apelido, aquele que você ganhou por suas próprias façanhas: você é a deusa da “psicogênese”.

Quando vejo a expressão “psicogênese da escrita” no trabalho dos alunos, quando a ouço na voz dos formadores ou professores, quando a leio impressa em revistas pedagógicas, raramente se trata de um conceito. Trata-se de evocar uma ambrosia celestial, aquele alimento reservado aos deuses, cuja existência os mortais conhecem, mas cujo sabor, nem é preciso dizer, nunca provaram, pois oferece a imortalidade.

Você, com seus incisivos olhos de deusa, viu a psicogênese do que está escrito nos rabiscos amorfos das crianças, soube ler o que ainda eram apenas sinais tênues, opacos ao comum dos mortais, as formas nascentes da escrita ainda por vir. Mas isso era fácil para uma deusa.

É uma palavra divina. Graças a você, atentos ao germe da escrita das crianças como se fosse o berço da humanidade, assistimos às etapas e esperamos o dia em que a escrita voe, milagre que se repete em cada criança com esta invenção da nossa humanidade.
Obviamente, este milagre deu origem, entre os seus mais fervorosos adeptos, a seitas concorrentes. Lutam para interpretar seus oráculos: teremos que esperar, prendendo a respiração, o vôo da borboleta? Ou, esperando a quebra do cristal, será necessário realizar, como no passado, os aprendizados tradicionais? Será necessário imaginar uma pedagogia que se inspire muito escrupulosamente nas etapas da aventura e as acompanhe? Ou as precede? Ou as provoque? Ou até mesmo as ensina? Ou que se contente em falar sobre elas com as crianças?

Você também fez com que escudos fossem levantados. Artigos foram escritos sobre você e contra você. Seu fim próximo foi previsto. Assim é com glória. Lembro-me de ter lido um velho artigo em que um militar argentino que pretendia ser filósofo coloca você ao lado de Platão, Duns Scoto, Guilherme de Ockham e de uma longa linhagem de pensadores tão subversivos como Berkeley e, sem dúvida, Hegel e Marx. Não era possível subestimar sua capacidade de pensar em falso e causar danos. Teria sido possível, alguma vez, ser prestada uma homenagem maior ao seu pensamento?

Adoro a ideia de você ter sido posta ao lado de Duns Scoto. Você faz parte da procissão dos pensadores, da teoria dos bem-aventurados imortais, com todos os riscos que isso acarreta: ser transformada em estátua. Alguém que é evocado, ou que é invocado, mas para pensar quê?

Então, quando na França, no Brasil ou noutros lugares presencio certas discussões que levam ao confronto, digo: “a última vez que Emília Ferreiro falou sobre este problema na minha presença, ela se perguntava se…, pensava que talvez… , acreditava que, talvez, fosse necessário procurar por esse lado”.

Meus interlocutores ficaram estupefatos: falo com a deusa. Digo a eles que você não é apenas um mito, mas é também uma pesquisadora que investiga; que você continua a se fazer perguntas; que você não entendeu tudo, assim como as crianças, que “aprendem a entender”. Você não adormeceu no travesseiro do construtivismo, nutrido pela ambrosia da psicogênese.

É a essa Emília a quem desejo um “Feliz Aniversário”. A quem desejo vida longa. Com quem desejo outros momentos de discussões apaixonadas na França, na Argentina, no México, ou naquele não-lugar que desafia as leis piagetianas de permanência dos objetos: a Internet. A deusa já é imortal, não adianta celebrá-la. Mas é a outra Emília, a que está viva, a oradora, a questionadora, a debatedora, a amiga muito querida, a quem envio um beijo com muito afeto.

Este texto festivo foi escrito em 2007, para comemorar os 70 anos de Emília na Argentina, onde ela retornou para uma homenagem acadêmica ao seu trabalho. Quinze anos depois, agora que ela nos deixou, pode ser lido como um testemunho de agradecimento por parte de professores, pesquisadores e profissionais que atuam nas salas de aula do ensino fundamental e da pré-escola. Graças a Emília, eles podem observar e compreender as produções escritas de crianças que aprendem de uma forma radicalmente nova. Esta lição fundamental que ele nos ensinou nunca será esquecida.

Anne-Marie Chartier
Pesquisadora e docente, França

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Eterna Emília,

Nunca mais fomos capazes de olhar para meninos e meninas como antes. Muito menos falar com eles como se não soubessem do que se trata o mundo da escrita. Nunca mais conseguimos ensiná-los letra por letra, porque entendemos que era uma profunda falta de respeito. Essas cabecinhas que se esforçam para criar uma lógica para entender como as marcas para produzir e interpretar a linguagem são utilizadas só podem ser tratadas como “outros” que, como em tantos campos do saber e do conhecimento, pensam diferente; não pensam menos, não pensam pouco, não pensam pior, não pensam mal. Ninguém que tenha compreendido a teoria psicogenética da aquisição da escrita pode tratar um “outro” diferente como se não soubesse; está felizmente condenado a dialogar com o diferente, a deixar-se transformar por um ponto de vista diferente, a esforçar-se por compreendê-lo e a modificar-se para ser compreendido.

Penso que é disso que trata a teoria que Emília Ferreiro concebeu e nos legou. Uma teoria totalmente nova, revolucionária, pela profundidade da mudança de olhar que propunha, e subversiva, porque nada do que pensávamos saber ficou como o conhecíamos. Não só mudou o olhar sobre as crianças, como acabou fazendo isso sobre a própria escrita e, sem querer, sobre toda a escola.

Emília fundou uma teoria sobre a aquisição da escrita iniciada em 1979, que continuou desenvolvendo até pouco antes da sua partida e que os seus discípulos continuam escrevendo em diversos países, especialmente na América Latina. Uma teoria latino-americana, porque aqui nasceu e se desenvolveu. E da explosão dessa teoria nas paredes da escola nasceram inúmeros professores, acadêmicos/as, pesquisadores, tomadores de decisão nas políticas educacionais e outros atores que encontraram um lugar onde se colocar para fazer do ensino um lugar dialógico, do erro um espaço lógico e não patológico, da escola o espaço de construção coletiva onde as crianças podem ser protegidas da infantilização banal. Para que a alfabetização seja verdadeiramente um direito e não uma obrigação, os meninos e as meninas têm de ser ouvidos.

Emília está. E continuará estando nos seus discípulos e nos discípulos dos seus discípulos. Em todos que compreendemos, graças a ela, como pensam os nossos meninos e meninas. E nunca mais fomos capazes de tratá-los da mesma maneira. É quando damos aula, quando escrevemos, quando orientamos teses, quando nos reencontramos com as centenas de colegas que trabalham em torno do sua obra.

Semeou uma teoria psicolinguística e floresceu um movimento pedagógico.

Mirta Castedo
Pesquisadora e docente, La Plata, Argentina

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Conversar com Emília – de perto e de longe, ao longo do tempo e através do espaço – foi uma sorte e um privilégio. Desde Genebra, ela me mandava capítulos do Sistemas de Escrita no Desenvolvimento Infantil enquanto eu escrevia este livro com Ana Teberosky. Perguntei e ela respondeu mil coisas na correspondência daquela época, quando uma carta de Caracas para Genebra demorava mais de dez dias.

Se Emília não tivesse mostrado que as crianças são seres pensantes também quando interagem com esse objeto social que é a escrita – e não apenas em relação às noções matemáticas ou físicas estudadas por Piaget –, certamente eu teria continuado trabalhando apenas em Didática da Matemática. Se as suas pesquisas não nos tivessem permitido vislumbrar que era essencial produzir uma mudança decisiva no ensino para que todas as crianças pudessem aprender a ler e a escrever, certamente não teríamos insistido em desenhar propostas que aproximassem o ensino da aprendizagem.

Se as pesquisas psicogenéticas dirigidas por Emília foram tão rigorosas – e por isso mesmo nos forneceram conhecimentos sólidos sobre as conceituações infantis –, como poderiam limitar-se a fazer propostas didáticas sem estudar profundamente o seu desenvolvimento em sala de aula? Levar a sério os problemas que as crianças colocam sobre a escrita, bem como as hipóteses que desenvolvem e os conflitos que atravessam, exige uma análise profunda das situações e das intervenções pedagógicas que se revelam poderosas na promoção do progresso na aprendizagem. O nascimento da pesquisa didática latino-americana sobre alfabetização inicial está intimamente ligado aos desafios colocados pela psicogênese da escrita.

Além disso, Emília nos provocava: da pesquisa nas salas de aula – ela dizia – novas questões para a pesquisa psicolinguística devem surgir.

E também surgiam questões relativas a outros objetos de conhecimento: se as crianças elaboram hipóteses originais sobre a escrita, o mesmo não acontecerá com o sistema de numeração, esse outro sistema de representação com o qual eles interagem intensamente fora da escola e que é objeto de ensino também nas primeiras séries? Nossa pesquisa sobre o sistema numérico como problema didático também tem suas raízes no campo dos problemas que Emília abordou.

Por último, quero sublinhar o seu esforço constante para construir redes entre nós que trabalhamos com leitura e escrita em diferentes partes do mundo e em diferentes ramos do conhecimento. E também a sua extraordinária capacidade de convocar professores e professoras, de impactá-los realçando a inteligência e a originalidade das crianças, de plasmar ideias fortes em frases incisivas e inesquecíveis que todos citamos repetidas vezes…

Obrigada, Emília. Aqui você está e estará presente no nosso trabalho e no de muitos outros companheiros, colegas, professores.

Delia Lerner
Pesquisadora e docente, Argentina

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Quando Emília Ferreiro se juntou à equipe do Departamento de Investigação Educacional do Cinvestav, em 1979, as suas ideias transformaram tudo o que eu pensava saber desde a minha perspetiva antropológica sobre a transmissão intergeracional e sobre as diversas culturas escritas. As crianças com quem ela conversava não só tinham ideias sobre o que e como escrever que nenhum adulto lhes poderia transmitir (porque os adultos já tinham esquecido o que pensavam antes de se alfabetizarem). O mais surpreendente para mim foi que crianças de diferentes culturas e línguas apresentam as mesmas ideias na mesma sequência, cada uma no seu ritmo, sobre como funciona a escrita alfabética. A partir desse momento entendi que durante a infância são gerados processos de construção do pensamento lógico e do conhecimento que todos os seres humanos compartilham, mesmo quando sempre se expressam envoltos em roupas de múltiplas cores, texturas e sons que dão conta da diversidade cultural humana.

Sua contribuição consistiu em abordar, sob as premissas de seu mentor Jean Piaget, o desenvolvimento lógico das crianças em relação com um objeto cultural, a escrita. Descobriu que também existia “uma criança piagetiana” no desenvolvimento da alfabetização. Durante mais de cinco décadas, Emília e os seus colegas e alunos mostraram uma centena ou mais facetas de tudo o que as meninas e os meninos pensam sobre e fazem com aqueles sinais gráficos que encontram no seu ambiente e cuja relação com a fala não é nada óbvia. Para Emília, esses pequenos sempre foram seus principais colegas intelectuais”. Ela não propôs nenhum “método” novo aos professores; apenas os convidou “a acompanhar seus alunos com admiração e escuta atenta no processo gradual de seu ingresso na cultura escrita”.

O legado de Emília nos deixa um grande desafio: articular o seu amplo conhecimento sobre a psicogênese da escrita com perspectivas históricas e socioculturais, bem como outras emergentes. Felizmente, jovens investigadores que herdaram a sua formação já trabalham nesta linha.

Elsie Rockell
Pesquisadora e docente, México

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Estudios de escritura, del libro Alfabetización de niños y adultos.

Textos escogidos, Paideia Latinoamericana, 2007.

Conheci Emilia Ferreiro há cerca de 38 anos, na Universidade de Buenos Aires, UBA, num seminário de pesquisa que ela ministrou para os membros da Cátedra de Psicologia Genética a cargo de José Antonio Castorina. Acho que foi a primeira vez que ela teve a oportunidade de voltar à Argentina: a ditadura havia acabado. No final do seminário, contou-nos que tinha conseguido bolsas para ingressar no mestrado no DIE Cinvestav/IPN, o seu centro de trabalho. Quase automaticamente, levantei minha mão. Esse dia mudou a minha vida não só a nível acadêmico e profissional, mas também a nível pessoal, porque o meu destino passava a ser o México. Jamais deixarei de me sentir profundamente grata à Emília por este encontro incrível, inesperado e feliz.

Emília sempre foi e será para todos nós que a conhecemos uma pessoa brilhante. Sua capacidade de trabalho e exigência pessoal eram impressionantes; mas muito difícil de seguir. Podia pedir para entregar o andamento da sua tese um 25 de dezembro, quando todas estávamos pensando nas férias.

Sempre fui uma aluna apaixonada e indisciplinada que tinha problemas por seguir ou questionar uma ideia, custasse o que custasse, razão pela qual acabei ficando para trás. Emília sempre exigiu disciplina e cumprimento de prazos; aconteceu o inevitável: ela me escreveu uma carta informando que não seria mais minha orientadora de tese. Era o fim. Consegui convencê-la e depois de seis meses terminei. A minha surpresa foi o dia em que defendi a minha tese: nunca pensei que Emília fosse ler a carta e que manifestasse o seu respeito por quem lutou por aquilo em que acreditava ou por uma simples hipótese. Na verdade, não foi descabido, porque ela sempre valorizou e lutou por aquilo em que acreditava, tanto no âmbito político como no campo acadêmico, custe o que custar.

A sua tenacidade e paixão na sua busca para compreender como as meninas e os meninos reinventam o sistema de escrita na sua busca para descobrir os princípios que o regem revolucionaram completamente o campo da alfabetização, uma verdadeira mudança de paradigma. A escrita deixou de ser uma habilidade psicomotora para se tornar um ato cognitivo muito complexo.

Claro que para isso ela sempre teve a sorte de contar com mentes brilhantes que a acompanharam e completaram seu trabalho. No campo educativo, o impacto dos estudos sobre a didática da língua escrita juntamente com os estudos da psicogênese ganharam grande força, especialmente na América Latina: quase uma odisséia “espacial”.

Há muitos anos trabalho com professores do setor de educação indígena: quando compartilho com eles os estudos sobre psicogênese, o fascínio que isso lhes causa é diretamente proporcional ao seu espanto: ao verem um “rabisco” eles começam a distinguir uma escrita muito peculiar. A partir desse momento, como diria Freire, torna-se possível um diálogo inteligente e respeitoso; um diálogo capaz de mediar o processo de escrita, um processo intersubjetivo, diriam os vygotskianos. Isso altera o contrato didático e estabelece um novo vínculo entre quem ensina e quem aprende. Com o Programa Infância (UAM) entendi que esse é um direito das crianças.

Acredito realmente que Emília é uma das herdeiras e representante mais influente da escola piagetiana; o que era de se esperar porque ele tinha um profundo conhecimento da teoria psicogenética, corria em suas veias; além disso, ela admirava e estava profundamente grata a Piaget pela sua história de exílio. Ele era a sua bússola, mas ela propôs um tema que ia além do estudo das noções centrais das ciências; núcleo duro do programa de pesquisa psicogenética, sempre regido pela questão epistemológica sobre as condições de constituição e validação do conhecimento científico. A genialidade de Emília surge desde o início, porque ela se animou e dedicou sua vida a ampliar esse horizonte para um objeto cultural: a escrita.

Graciela Quinteros
Pesquisadora e docente, Argentina e México

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Existem pessoas que podem revolucionar a nossa vida. Emília teve esse impacto na minha. Penso nela e faço-o com profunda gratidão. São muitas razões pelas quais tenho que fazer isso. Me ensinou a pensar de outra maneira. Me ajudou a fazer novas perguntas e me forçou a procurar respostas fora da caixa e me ensinou como trabalhar por horas com dados.

Ela não era uma mulher de trato simples ou amável. Mas o que lhe faltava de empatia, lhe sobrava em inteligência. A sua vocação na vida não era fazer amigos, mas sim revolucionar ideias. E ele conseguiu. Mudou para sempre a forma de compreender o conhecimento da linguagem escrita. E não me refiro apenas que permitiu compreender os processos de aprendizagem; mas que também ajudou a ver a escrita de outra forma. Fez-nos buscar na história, na antropologia, na sociologia, na linguística e em outras disciplinas para compreender esse objeto cultural. Ela sempre ia além do limite de sua disciplina. Isso a levou a integrar essa maravilhosa coleção LEA (Leitura, Escrita e Alfabetização) publicada pela editora Gedisa que nos aproximou de autores que de outra forma seriam difíceis de localizar em meados dos anos 1990. Iniciou suas pesquisas antes de ter acesso aos computadores pessoais, mas sempre se entusiasmou com as inovações tecnológicas. Foi uma das primeiras pesquisadoras que teve um computador no Departamento de Pesquisas Educativas, acho que era uma Sinclair. Foi também uma das primeiras a dar aos seus dados um tratamento informático. Os dados da pesquisa realizada em 1982 em colaboração com a Educación Especial foram analisados ​​no Centro de Processamento “Arturo Rosenbleuth”. Uma grande inovação em sua época.

Ir com ela entrevistar crianças foi uma delícia e um privilégio. Lá ela se transformava, era outra pessoa, conseguia estabelecer conversas incríveis até com os alunos mais tímidos. Com eles ela tinha uma magia que não vi em outras pessoas.

A participação rigorosa nos seminários de terça-feira foi altamente formativa. Foram anos de muito aprendizado, tempo de aproveitar a convivência com o grupo de participantes e alunos. E foi também um momento de decisões difíceis, algumas das quais a deixaram muito irritada. Lembro-me de quando a Fundação Kellogg ofereceu a primeira bolsa para a área de educação. Emília propôs que eu recebesse a bolsa para fazer um doutorado em linguística na UNICAMP – Universidade de Campinas. Depois das entrevistas e da papelada, desisti. Dizer que ele ficou brava é um eufemismo. Seu aborrecimento foi tão grande que me pediu para deixar de ir ao seminário. Isso me rendeu um lugar entre suas alunas rebeldes, ou seja, aquelas que em algum momento disseram NÃO a algo que ela considerava bom para nossas vidas. Quando a raiva dela passou e descobriu que eu estava pesquisando os requisitos para estudar na Colmex, ele me ligou para avisar que eu tinha que continuar no DIE. Então fiz meu doutorado sob sua orientação e continuei trabalhando com ela por vários anos.

Posteriormente tive a oportunidade de trabalhar em duas linhas complementares: pesquisa e desenvolvimento de propostas educacionais. Meu trabalho tem sido marcado pelo que aprendi com ela e com alguns de seus grandes colegas. Em todos os momentos o diálogo continuou com ela (pessoalmente ou mentalmente). Suas ideias estão presentes na educação mexicana desde a publicação do Programa de Educação Pré-escolar (1992). Depois vieram outros, muitos outros, os últimos foram os livros didáticos gratuitos de espanhol para o 1º e 2º ano do ensino fundamental, em cuja elaboração participaram pessoas que estudaram com Emília.
Além de ter me ensinado a pesquisar, sou grata pela possibilidade de ter construído uma rede de amizades que me ajudam a continuar pensando e estão ali para compartilhar a vida.
Em tempos difíceis para a educação, é necessário invocá-la para esclarecer confusões.

Célia Diaz-Arquero
Pesquisadora, México

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Este ano de 2023, para mim, foi o pior da minha vida. Perdi o meu filho, três amigos íntimos (incluindo Yolanda Corona, que me apresentou Emília Ferreiro) e agora a própria Emília.

Durante 25 anos trabalhei muito próximo a ela, mas nos distanciamos nos últimos anos. O respeito e o carinho mútuos sempre estiveram presentes.

Conheci a Emília Ferreiro quando eu era estudante de licenciatura, tinha 21 anos, e ela tinha acabado de chegar ao DIE. Expressei meu desejo de aprender a pesquisar e trabalhar de graça. Emília primeiro me entrevistou e depois me incorporou à equipe de trabalho sobre as conceituações da linguagem escrita em adultos analfabetos.

A equipe era formada por vários jovens. Fomos a cidades distantes, fábricas e até prisões para procurar e entrevistar os nossos sujeitos de pesquisa. Com elas aprendi e compartilhei muitas aventuras, muitas risadas e muitas tensões. Logo em seguida continuamos com o trabalho de pesquisa básica com crianças.

Lembro-me também da primeira vez que li Sistemas de escrita no desenvolvimento infantil, logo após sua publicação. Acho que aquela “primeira” leitura durou meses, senão anos. Também participei do seminário de epistemologia genética de Rolando García na UAMX. Todas nós que permanecemos algum tempo nos dois seminários continuamos no processo de conseguir nos apropriar do conhecimento que eles nos transmitiram.

Uma das primeiras ações da equipe de pesquisa foi a criação do seminário interno, ao qual foram sendo incorporados novos alunos e colaboradores. Frequentei religiosamente o seminário por mais de duas décadas. Pedimos o seminário à Emília porque no início não entendemos nada. Lembro-me que a primeira palestra do seminário foi de David Olson, sobre as consequências cognitivas da linguagem escrita. Minha curiosidade foi super aguçada.

Todas as participantes estudávamos e discutíamos muitíssimo. Novos alunos e colaboradores juntaram-se gradualmente a estes encontros apaixonantes. Foi também um espaço de intercâmbio com pesquisadores de diferentes universidades do México e da Argentina. Todos nós tentávamos freneticamente acompanhar o ritmo e os pensamentos de Emília.

Emília (e Rolando) ofereceram uma mudança conceitual muito importante sobre como entendemos o mundo, como nos desenvolvemos e como nos alfabetizamos. É algo que até hoje me nutre, me desafia e permeia o meu trabalho profissional diário com colegas, alunos, professores e crianças. Os ensinamentos de Emília estão em minhas interações diárias com o mundo. Uma parte importante da minha vida foi dedicada a transmitir aos outros os conhecimentos e possibilidades que herdamos. Outra parte foi dedicada às crianças, no desejo de respeitar as suas ideias e formas de aprender. Serei sempre grata a Emília pelo seu legado e sempre ficarei maravilhada com a sua genialidade.

Também agradeço por ter conhecido, através da Emília, um grupo de pesquisadores e educadores que muito apreço e aos quais estou muito grata por tudo o que me ensinaram.

Sofia Vernon
Pesquisadora e docente, México

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“Simplesmente” Emília Ferreiro

Como homenagear, em meio à dor da perda, uma pessoa que deixa um legado tão descomunal? Talvez começando do início. E o começo é que Emília mudou minha vida.
Em 1973 me formei no curso de Ciências da Educação da Universidade de Buenos Aires e era uma psicopedagoga que atendia crianças com “problemas de aprendizagem”. Uma amiga, Ana Teberosky, me convidou para ouvir uma palestra que ia ser proferida por uma pessoa que tinha feito o doutoramento em Genebra, orientada por Piaget, e que se chamava Emília Ferreiro.

Sentamo-nos e ela começou sua palestra dizendo: “A teoria de Piaget não teme o erro ou o esquecimento”. Fiquei absolutamente perplexa porque, como boa psicopedagoga comportamental, a única coisa que temia era que meus pacientes cometessem erros ou esquecessem o que aprenderam… Naquele momento tomei consciência de que precisava tentar entender o que aquela mulher estava dizendo. Descobri que junto com o marido Rolando García fundou o IPSE (Instituto de Psicologia e Epistemologia) e lá fui eu.

Participei em vários seminários que retificaram a minha aprendizagem psicogenética da Faculdade e depois tive a sorte de Emília me convidar para participar como assistente na sua cátedra e na primeira investigação sobre a psicogênese da escrita, que decorreu numa escola que falhou nos primeiros anos de escolaridade, frequentada por crianças de uma população muito vulnerável.

Continuei participando de suas pesquisas no México (onde morei vários anos durante a ditadura militar argentina), o que abriu a possibilidade de me conectar com um coletivo de colegas que seguiam um caminho paralelo ao meu: ensinar a ler e a escrever com uma perspectiva diferente, que reconceitualiza não apenas o aprendiz – aquela criança pensante que reconstrói progressivamente o mundo que o rodeia – mas também o objeto de ensino – as práticas sociais de leitura e escrita – e o papel dialógico do professor.

Sem ser educadora, suas pesquisas psicolinguísticas e psicogenéticas revolucionaram o campo da alfabetização de forma irreversível. Isto, logicamente, traz consigo a rejeição daqueles que querem continuar com os sistemas de ensino em vigor há cinquenta anos, quando começaram as primeiras investigações.

Não baixaremos sua bandeira, Emília, essencial para alcançar o que Gianni Rodari enunciou com a clareza de sua prosa: O uso total da palavra para todos me parece um bom slogan, com uma bela sonoridade democrática. Não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo.

Ana Maria Kaufman
Pesquisadora e docente, Argentina

Imagem:  Rogério Albuquerque | Nova escola.

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  • Daniel Goldin

    Daniel Goldin Halfon nasceu no México. É editor, escritor e ensaísta. Pensador, estudioso e teórico de grande relevância no mundo da promoção do livro e da leitura na América Latina. É autor de Al otro lado de la página, imágenes de la lectura en México (Santillana, 2008) e coautor de Bibliotecas y escuelas – Retos y posibilidades en la sociedad del conocimiento (Océano Travesía, 2008). Os dias e os livros — Divagações sobre a hospitalidade da leitura é seu primeiro livro publicado no Brasil, pela Editora Pulo do Gato.

    goldin@emilia.com.br Goldin Daniel

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