As questões que o Conselho Nacional terá de enfrentar na análise da BNCC

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Está agora com o Conselho Nacional de Educação (CNE) a tarefa nada fácil de consolidar as contribuições à Base Nacional Comum Curricular, feitas nas cinco audiências públicas realizadas nos últimos meses, assim como aquelas enviadas por escrito ao órgão cuja missão institucional é assegurar a participação da sociedade no desenvolvimento, aprimoramento e consolidação da educação nacional de qualidade.

O CNE informa em caderno técnico que lhe cabe “publicar um parecer analítico da BNCC, mantendo, modificando ou complementando o documento elaborado pelo MEC”. Esse parecer será acompanhado de um projeto de resolução normativa que trará orientações e definições para os sistemas de ensino e escolas, com reflexo nas áreas de formação de professores, livros e materiais didáticos e sistemas de avaliação. O parecer será encaminhando ao MEC para análise e homologação. “Após homologação do MEC”, diz o CNE, “a BNCC é estabelecida como norma nacional e deve ser obrigatoriamente observada pelos sistemas de ensino, na criação ou reformulação de seus currículos, e pelas escolas, na elaboração dos seus projetos político-pedagógicos”.

É grande a expectativa de que o Conselho aponte caminhos para a melhoria da terceira versão e para a incorporação das críticas e proposições feitas entre julho e setembro, em alguns casos recuperando pontos que já estavam presentes na primeira ou na segunda versão.

A Comunidade Educativa CEDAC acompanhou o processo de elaboração da Base desde o seu início, em setembro de 2015, e vem pontuando, de uma versão para outra, as questões que considera críticas não só para a consolidação de um documento de qualidade, que represente uma visão de Estado para a educação nacional que busque assegurar direitos de aprendizagem para todos, mas também para a sua efetiva implementação como elemento norteador dos currículos a serem elaborados por Estados e municípios, sendo o investimento na formação inicial e continuada a mais premente das condições a serem asseguradas nesse processo de implementação.

Colocando o foco na Língua Portuguesa, destacamos aqui o que avaliamos como as principais perdas na terceira versão.

O primeiro aspecto diz respeito à própria organização da disciplina (inserida na área de Linguagens), que suprimiu elementos que considerávamos estruturantes tanto para o entendimento de qual é a visão da Língua na BNCC como para a prática do professor. A maior perda na alteração dessa estrutura foi a retirada da ideia de campos de atuação e das práticas de linguagem, que estava garantida na versão 2. A supressão desse importante conceito da sociologia faz com que saiam do foco também as situações comunicativas que aproximam as situações de leitura e escrita da escola daquelas que os leitores e escritores competentes realizam nas práticas sociais, ou seja, nas vivências que têm fora da escola.

Ao excluir o contexto das práticas de linguagem/campos de atuação, o documento retira da sala de aula as situações comunicativas reais e, dessa forma, reduz muito a possibilidade de as crianças colocarem em jogo o que já sabem sobre a Língua.

Na estrutura atual, cada eixo (oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais, e educação literária) está organizado por unidades temáticas (que, na verdade, se configuram como blocos de conteúdos) e assemelha-se mais às matrizes de avaliação do que à produção curricular do país, comprometendo a contextualização do conhecimento, que é necessária para que a aprendizagem aconteça.

Outro aspecto para o qual chamamos atenção em audiência pública, e que exploramos aqui, é o conceito de alfabetização presente no documento. A terceira versão reduz a complexidade do sistema de escrita a uma relação entre som e grafia e, desta forma, traz uma concepção de formação de leitores e escritores que restringe a garantia do direito de acesso e participação na cultura escrita. Não se trata de escolher uma ou outra concepção de como se alfabetiza, o que não cabe nesse documento, mas de deixar claro qual leitor e escritor queremos formar ao longo da escolaridade e trazer proposições que sejam coerentes com essa ideia.

Trata-se não só de um empobrecimento da visão da Língua como objeto de ensino, como um risco para o objetivo da Base de promover a equidade. Afinal, se os textos com que as crianças terão contato são utilizados apenas no contexto escolar, quais outras oportunidades as crianças que já não estão inseridas em uma família letrada terão de ter acesso à língua “de verdade”, aquela valorizada nas situações sociais que elas certamente encontrarão fora da escola? Por isso, mais do que uma questão semântica, o que estamos destacando aqui é uma questão de concepção e direcionamento do ensino da Língua que pode acentuar a desigualdade entre crianças e adolescentes oriundos de contextos familiares e sociais já bastante desiguais.

O terceiro aspecto que consideramos fundamental apontar para a revisão diz respeito ao eixo educação literária. A criação de um elemento exclusivamente dedicado à literatura pode ter a boa intenção de ressaltar a necessidade de um trabalho mais específico e intencional com a formação estética dos leitores, o que é mesmo necessário, mas, sendo ele apresentado de forma apartada dos eixos de leitura e escrita, implica uma fragmentação artificial das práticas e prejudica a formação integral dos alunos como leitores.

A versão atual da Base diz que “o eixo Educação Literária tem estreita relação com o eixo Leitura, mas se diferencia deste por seus objetivos: (…) predomina a formação para conhecer e apreciar textos literários orais e escritos, de autores de língua portuguesa e de traduções de autores de clássicos da literatura internacional. Não se trata, pois, no eixo Educação Literária, de ensinar literatura, mas de promover o contato com a literatura para a formação do leitor literário, capaz de apreender e apreciar o que há de singular em um texto cuja intencionalidade não é imediatamente prática, mas artística. O leitor descobre, assim, a literatura como possibilidade de fruição estética, alternativa de leitura prazerosa. Além disso, se a leitura literária possibilita a vivência de mundos ficcionais, possibilita também a ampliação da visão de mundo, pela experiência vicária com outras épocas, outros espaços, outras culturas, outros modos de vida, outros seres humanos”.

Ao deslocar os textos literários para um eixo específico, educação literária, o documento prioriza a leitura deleite e abre margem para a interpretação de que apenas o fato de ler textos literários é suficiente para gerar as experiências necessárias para a formação leitora. Além disso, deixa para o eixo de Leitura apenas textos não ficcionais, configurando assim uma quebra com a cultura do ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, em que a presença dos textos literários é estruturante em função de um entendimento já consolidado de que não há divórcio entre letramento e letramento literário; na realidade ele é parte do processo de construção da relação da criança com a linguagem escrita.

Ainda em relação ao eixo educação literária, consideramos preocupante a seguinte afirmação: “Nesse eixo [literário], e também no eixo Leitura, a escolha dos textos para leitura pelos alunos deve ser criteriosa, para não expô-los a mensagens impróprias ao seu entendimento, consoante determinam os Artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei número 8.069/1990).”

O artigo 78 dispõe que “as revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência do seu conteúdo; Parágrafo Único: As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca. O artigo 79 dispõe que as revistas e publicações dedicadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Entendemos que esses artigos são importantes regulamentações no contexto da publicidade e da comercialização de produtos editoriais, mas não contribuem para a discussão dos critérios para a seleção de textos para as crianças na escola.

A menção à não utilização de obras que tenham “conteúdos impróprios ao seu entendimento” nos preocupa pela chance de essa “seleção criteriosa” resvalar em censura – como demonstra o episódio recente da retirada do livro que contém o conto A triste história de Eredegalda – e na privação da criança do contato com obras que poderiam, citando o próprio texto, promover a “ampliação da visão de mundo, pela experiência vicária com outras épocas, outros espaços, outras culturas, outros modos de vida, outros seres humanos”.

Acreditamos que outros artigos do ECA poderiam ser a referência no tratamento da literatura na Base. Destacamos dois que dispõem sobre o direito das crianças e adolescentes ao patrimônio cultural: o artigo 54, que atribui ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;” e o artigo 58, que afirma que “no processo educacional, respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

Esses são apenas alguns dos aspectos a serem considerados pelo Conselho Nacional de Educação na sua análise da terceira versão e na elaboração do seu parecer. Torçamos para que os conselheiros consigam, diante da diversidade de visões expressas, do volume de contribuições e dos dilemas políticos e pedagógicos que se colocam, apontar um caminho que posicione a Base como documento que respeita o processo de mobilização dos últimos dois anos e apresenta a legitimidade necessária para, juntamente com as outras condições a serem asseguradas, permitir que avancemos rumo às metas que nos propusemos no nosso Plano Nacional de Educação.


Imagem: Ilustração de Helme Heine, Cuanto Cuenta Un Elefante, Altea, 1982.


Links
Página do MEC sobre a Base.
CE CEDAC fala de equidade na última audiência pública sobre a Base no CNE.
Em bate-papo, Sandra Medrano (CE CEDAC) e Maria José Nóbrega analisam o que significa ensinar e aprender Língua Portuguesa na 3ª versão da Base.
A polêmica história de Eredegalda.

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