No verão passado visitei a Holanda de uma ponta a outra, nos pequenos trens que a atravessam, e entendi porque este país gerou tantos gênios da pintura, do pensamento e da ótica. É por causa da luz. O modo pelo qual a luz esculpe objetos, tetos e horizontes é particularíssimo. Uma luz branca, puríssima, tão definida… como se antes de chegar à Terra tivesse atravessado uma das lentes de Spinoza.
Fotografia de Delft vista do canal, Anna Castagnoli
Johan Vermeer, Vista de Delft, 1660, Museo Mauritshuis de Haia
Na fotografia acima, feita durante a minha viagem, vocês podem ver a vista de Delft trezentos e cinquenta e sete anos depois que Vermeer a pintou, em 1660. Diante desta vista, entendi que nós, humanos, fazemos tudo errado. Construímos monumentos rígidos, torres, muros, fortalezas esperando arrancar à finitude uma fatia de mundo, quando – sem grande esforço – o que realmente atravessa o tempo e permanece são as nuvens, a água, a luz.
Nesta viagem, visitei também o estúdio de Dick Bruna, reproduzido dentro do Central Museum de Utrecht e tive a sensação de que a mesma luz influenciou a sua obra.
Para compreender profundamente a simplicidade da obra de Dick Bruna é preciso recordar que ele cresceu nos anos de máxima expressão de um dos movimentos culturais mais importantes do século XX: o Neoplasticismo, chamado também Movimento de Estilos ou Construtivismo Holandês, surgido justamente nos Países Baixos.
Em 1917 (Bruna nasce 10 anos depois) foi fundada na Holanda, por Theo Van Doesburg, Piet Mondrian e Bart van der Leck, a revista de design e arquitetura De Stijl. É o manifesto de uma revolução no campo da Arte, do Design e da Arquitetura.
Os objetos da vida cotidiana (design), as páginas dos jornais e dos livros (gráfica), as casas e as cidades (arquitetura), a Arte (Abstracionismo): tudo devia voltar a expressar uma ordem absoluta e ideal, à medida de Homem.
A nova palavra de ordem holandesa – que influenciou o desenvolvimento da Bauhaus na Alemanha – era: a essencialidade. O cubismo tinha quebrado os cânones da perspectiva central, o Neoplasticismo simplificou mais ainda aqueles cubos, tornando-os pura forma e puro equilíbrio.
A definição da luz holandesa, que havia esculpido a vista de Delft, tinha terminado o seu trabalho de elaboração: forma, cor pura e luz desenhavam, agora, a si mesmas.
Piet Mondrian em seu estúdio
Coleção de Yves Saint Laurent
Piet Mondrian
Dick Bruna, Miffy al museu, Franco Panini Editore
Theo van Doesburg
Logo original de De Stijl; poster de Bart van der Leck; poster de Van der Leck (c) printingcode.runemadsen.com
Bart van der Leck, Composition meisje met koe, ca. 1921
Dick Bruna pegou emprestado do Construtivismo a liberdade de decompor o mundo em elementos primários, e coloca-los em cena sem necessidade de mais nada, como no exemplo aqui embaixo, tão evidentemente inspirado na obra de Van Der Leck (Bruna e Van Der Leck moravam em Utrecht). No pôster, a parte negra é o muro externo da casa ou então é o nada: não importa. Aquela pequena janela iluminada basta a si mesma e ao ursinho que lê. Uma simplicidade perfeita para as crianças pequenas: a janela amarela é como um pequeno cubo que elas podem pegar com o olhar, para começar a compreender e a compor o mundo.
Dick Bruna, Black Bear, poster, 1963
Dick Bruna, Blues voor Voetstappen, capa
Encontramos outro exemplo na casa de Miffy: feito do tamanho de Miffy, como ensinavam as novas teorias da Arquitetura racionalista De Stijl, que pegavam a altura de um homem como medida para projetar a altura de um cômodo. Uma revolução em relação às amplas e altíssimas salas da arquitetura do Século XIX.
Schröder House de Gerrit Rietveld, Holanda
Dick Bruna, A casa de Miffy
Le Corbusier (1887-1965), A casa na medida do homem
Antes de tornar-se designer gráfico e ilustrador, Bruna tentou a carreira de artista. Depois de alguns estágios pouco frutíferos em livrarias e editoras (como recordei no artigo anterior, o pai queria que se tornasse editor), inscreveu-se na Academia de Belas Artes de Amsterdam, que abandonou depois de apenas seis meses. Era outra a escola que lhe interessava, fora das aulas da Academia.
Seus mestres são Picasso, Matisse, Léger.
Fernand Léger impressiona Bruna pela separação definida da linha negra das cores (hoje pode parecer uma coisa fácil, mas pensem em como era a arte antes que estas vanguardas abrissem espaço à liberdade de dispor linhas e cores sobre a tela! Esses artistas, na época da juventude de Bruna, eram considerados na Academia como “aqueles que só sujam telas”, e pelos regimes totalitários como degenerados que precisam ser proibidos).
Dick Bruna fará uma releitura desta separação entre o negro e a cor na sua obra de artista gráfico, fechando as formas livres de Léger dentro de outras mais geométricas, quadrados e retângulos, mais em linha com as teorias do construtivismo holandês.
Fernand Léger, The Black Root, 1948
Fernand Léger, Two Women Holding Flowers, 1954
Dick Bruna, mostra no Rijksmuseum, 2015 (foto: Jo Biddle/AFP/Getty Images)
Em 1947 Henri Matisse publica Jazz, um livro de artista impresso em um numero limitado de cópias, onde as imagens são simples formas retalhadas de folhas de papel colorido. Dick Bruna, deslumbrado por este livro, consegue adquirir uma das raras cópias numeradas (na foto abaixo a reprodução da cópia de Dick Bruna, no seu estúdio no Central Museum de Utrecht), e começa a experimentar a arte da colagem. Com esta técnica, realizará muitas das capas para a Editora do pai, a partir de 1953. E são as cores primarias de Matisse que inspirarão a palheta cromática de seus futuros livros para crianças.
O livro Jazz de Matisse que pertenceu a Dick Bruna. Estúdio de Dick Bruna al Central Museum, Utrecht
Matisse, Jazz, 1947
Dick Bruna, poster com seu personagem Black Bear
Henri Matisse, 1953, National Gallery of Art, Washington
Dick Bruna, Miffy al museu
Patitcha 1947
Henri Matisse. Apollinaire, Matisse, Rouveyre, Trois têtes. A l’amitié, (c. 1951-52, printed 1966)
Uma outra importante fonte de inspiração sua é a descoberta precoce do livro Leggende chassidiche ilustrado por Hendrik Nicolaas Werkman, que Dick folheia logo depois do fim da guerra. Bruna é conquistado pela possibilidade de dar uma sensação de profundidade de campo com a simples sobreposição de manchas de cor planas. A técnica de Werkman faz valer o uso de estêncis sucessivos: um para cada forma e cor. A cor é estendida com um rolo em volta – ou dentro – do estêncil. É uma das técnicas que Bruna utilizará nos seus trabalhos de graphic designer.
Bruna é conquistado pela possibilidade de dar uma sensação de profundidade de campo com a simples sobreposição de manchas de cor planas. A técnica de Werkman faz valer o uso de estêncis sucessivos: um para cada forma e cor. A cor é estendida com um rolo em volta – ou dentro – do estêncil. É uma das técnicas que Bruna utilizará nos seus trabalhos de graphic designer.
Hendrik Nicolaas Werkman, Chassidische Legenden, 1941-43
Dick Bruna, monotipia, 1962. A direita: Rooster, Dick Bruna, collage
Imagem de página do libro-catalogo Dick Bruna artist
A partir de 1959, os livros para crianças de Bruna adquirem uma característica peculiar. O formato torna-se quadrado e assim se manterá pelos próximos 50 anos de edições (mais de 120 títulos). E a imagem estará sempre à direita e o texto sempre à esquerda.
Dick Bruna, Chapeuzinho vermelho
O tipografo que mais inspirou Bruna foi o holandês Willem Sandberg (imagem abaixo). A tipografia de Bruna retoma a ideia de módulo, de elemento que não precisa de excessos. Neste texto, encontramos as fontes mais utilizadas por Bruna: Helvética, Mercator, Compacta, Volta. Quase sempre caracterizadas pela ausência de serifa.
A obra de Bruna, como de todo gráfico, é uma continua pesquisa das normas principais que regulam a página dupla do livro. Texto, cor e imagem não são rivais entre si, mas se fundem em uma perfeita unidade. É uma escolha estilística em oposição a um tipo de ilustração que tenta devolver a ilusão de realidade. Mais existe intenção de realidade (perspectiva, claro escuro, profundidade de campo) mais a imagem da ilustração se afasta da imagem do texto.
Dick Bruna foi um designer gráfico, sempre interessado na dimensão compositiva da imagem. Mas foi também um ilustrador pela graça com que soube dar uma alma às superfícies planas de cor. Seus personagens parecem ícones bidimensionais, são rígidos como placas de transito, e mesmo assim são vivos.
Esta magia é a Arte.
Santo de casa não faz milagre, diz o provérbio. A primeira retrospectiva da obra de Dick Bruna foi exposta no Centre Pompidou em Paris em 1991. Só em 2015 o Rijksmuseum de Amsterdam dedicou a ele uma grande mostra. As suas ilustrações foram penduradas ao lado de quadros de Léger, Matisse, Bart van der Leck, sob o mesmo teto de obras-primas de Rembrandt e Vermeer. Mas as crianças do mundo todo não precisaram esperar este reconhecimento para saber que por trás da simplicidade das formas de Bruna havia um dom de luz para elas.1Texto publicado originalmente no blog de Anna Castagnoli, Le figuri dei Libri, em 8 de março de 2017.
Tradução Claudia Souza
Notas
- 1Texto publicado originalmente no blog de Anna Castagnoli, Le figuri dei Libri, em 8 de março de 2017.