Escuta, confiança e possibilidade: a biblioteca como espaço de conversa aberta

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CeciliaBajour@revistaemilia.com.br Bajour Cecilia

Invitación

Me gustaría

que me oyeras la voz y yo pudiera

oír la tuya.

Sí, sí, hablo contigo

mirada silenciosa

que recorre estas líneas.

Y repruebas, tal vez, este imposible

deseo de salirse del papel y la tinta.

¿Qué nos diríamos?

No sé, pero siempre mejor

que el conversar a solas

dando vuelta a las frases, a sonidos,

(el poner y el sacar el paréntesis y al rato

colocarlos de nuevo).

Si tu voz irrumpiera

y quebrara esta misma

línea… ¡Adelante!

Ya te esperaba. Pasa.

Vamos al fondo. Hay algunos frutales.

Ya verás. Entra.

Circe Maia, en Breve sol, 2001

Convido este poema da poeta uruguaia Circe Maia chamado “Convite” para abrir nosso encontro sobre escuta e conversação em relação ao fazer e pensar das bibliotecas e seus protagonistas. No poema, a leitura é vista ou, melhor dizendo, desejada, como um encontro de vozes (“sempre melhor do que conversar sozinho”) e a voz enunciadora do poema diz que estava esperando pela voz de quem lê, por isso o (nos) convida a entrar onde crescem as árvores frutíferas. “Ya verás. Entra.” Um convite para confiar em algo que tem possibilidades de crescer.

Sigo o jogo metafórico do poema e penso nas bibliotecas como árvores frutíferas, lugares que podem oferecer frutos, também sombras, e convidam a caminhar entre eles buscando, desejando, provando sabores e aromas. Não penso nisso como uma paisagem idílica, mas como uma que devemos cuidar coletivamente para que continue crescendo, principalmente em épocas de tempestades, pragas e secas.

Enquanto pensava em sementes, plantios e colheitas compartilhadas, confirmava mais uma vez a necessidade fundamental das bibliotecas em nossas vidas, em nossos trabalhos, em nossos dias. Fiz então o exercício, muito estimulante para mim, de recordar esses vínculos em diversas tarefas e em diferentes momentos dos últimos anos. Uma espécie de autobiografia de bibliotecas, uma história inevitavelmente coletiva que pode ressoar em nós de maneiras diversas, por isso destaco alguns momentos porque acredito que neles estão enraizadas as conversas e a disposição para a escuta como algo que permanece brilhando na memória. Lembro, em primeiro lugar, da época em que coordenava propostas de formação sobre bibliotecas e bibliotecários escolares na Escola de Capacitação Docente, Cepa, na cidade de Buenos Aires: uma política pública de formação que se concentrava no papel fundamental da biblioteca na vida das escolas e sua relação com o ensino e a aprendizagem quando é considerada como o coração que pulsa nessa direção. Considerávamos todxs xs participantes a partir da convicção de que as bibliotecas são assuntos que envolvem todxs na instituição educacional e não apenas seus responsáveis: bibliotecárixs, professorxs, equipes de liderança das escolas, equipes de formação em diversas áreas de conhecimento, comunidades ligadas a cada instituição. Essa perspectiva coletiva pode ser construída dialogando e ouvindo. Também me veio à memória o convênio que continuamos celebrando entre a Unsam – Universidad Nacional de San Martín –  a biblioteca e centro de documentação em cultura da infância e literatura infantil La Nube (lugar de referência no tema em nosso país e na América Latina), que envolve múltiplas ações relacionadas à pesquisa, formação e extensão nestas temáticas: conversar com e pela literatura e a cultura das infâncias a partir de um acervo único construído há mais de 40 anos pelo mestre Pablo Medina. Nos últimos três anos, com uma equipe de nossa universidade, temos trabalhado no âmbito da Comissão Nacional de Bibliotecas Populares em uma proposta de formação sobre literatura infantil e promoção da leitura, uma iniciativa de extensão universitária que aprofunda o diálogo com o que acontece nos territórios de todo o nosso país a partir da atuação das bibliotecas que nascem e vivem impulsionando o vínculo comunitário por meio de diversas formas de ler e conversar com a cultura e as problemáticas dos mais diversos lugares onde estão localizadas, em todos os cantos da Argentina. Por essa razão, o foco de nossa proposta está em pensar e fortalecer o conceito de “cena de leitura” como manifestação singular e celular das conversas (falaremos mais sobre isso posteriormente).

E, mais recentemente, há cinco anos, participo de uma experiência comunitária que me convida a observar outras facetas do mundo das bibliotecas em relação à comunidade: a que protagonizamos com o coletivo da Biblioteca ao Passo Artigas, no bairro de Paternal, onde moro na cidade de Buenos Aires, que por sua vez se integra à rede de bibliotecas da minha cidade, outra maneira singular de encontro dos leitores com os livros e com propostas culturais na calçada, uma forma possível de revitalizar a rua com sentidos comunitários e solidários. As bibliotecas ao Passo se organizam a partir da proposta de levar um livro e deixar outro, ou seja, não existem mediadores que conduzam o empréstimo ou controlem o material, mas se autorregulam. São interessantes para pensar, a partir de outras perspectivas, o encontro com a cultura ao passo, criada pelos próprios moradores, ouvindo e ao mesmo tempo convidando a um sentir que tem a ver com a participação ativa no espaço público por meio da arte e da conversa cotidiana. Quis trazer a este encontro essas ressonâncias diversas de uma parte da experiência acumulada ao longo desses anos pela potência das conexões entre saberes e práticas que as diversas bibliotecas possibilitam e, sobretudo, porque as considero estratégicas ativadoras da interrogação, da expansão das culturas no plural, da abertura de espaços ainda não pensados, da investigação sobre caminhos alternativos, lacunas, desvios luminosos, colocando em discussão as certezas absolutas.

A metáfora dos pomares e a necessidade de criar condições climáticas, ventos favoráveis para que os frutos prosperem, me traz à memória uma imagem de Geneviève Patte, referência fundamental para pensar o papel das bibliotecas na vida das pessoas e das comunidades. Em um artigo publicado há trinta anos na revista Piedra Libre1, ela propunha a ideia de impulsionar “bibliotecas aos quatro ventos”: abertas ao vento da curiosidade, das perguntas, das paixões, abertas também para aqueles que podem e desejam compartilhar seus saberes. “Bibliotecas aos quatro ventos” sempre me pareceu uma imagem relacionada ao voo, às portas e janelas abertas, à potência da imaginação, à confiança na possibilidade de criar laços criativos com as comunidades consideradas  protagonistas principais desses voos.

A imagem dos quatro ventos ligada a bibliotecas sensíveis, acolhedoras e vitais me parece especialmente revigorante para refletir sobre alguns possíveis alcances dos encontros dialógicos em uma época tão complexa como a que estamos vivendo, que nos demanda um pensamento crítico.

O que faz com que uma biblioteca se torne um espaço de diálogo?

A que chamamos de espaço?

Por que e como um espaço pode se tornar habitado por conversas?

Os espaços não são dados, mas se constituem no ato de fazer por parte daqueles que participam de diversas posições, histórias de vida, formas de sentir e entender o compromisso, desejos dos mais variados. Michel De Certeau2 diz que um espaço é um lugar onde se entrecruzam mobilidades, forças ativas que se manifestam em um tempo determinado. E também diz que um espaço é objeto de práticas. Ele se define a partir das práticas realizadas ou imaginadas por aqueles que, em determinadas circunstâncias e conjunturas vitais, sociais e históricas, se relacionam com um lugar.

Portanto, as bibliotecas se tornam espaços singulares de acordo com a marca que aqueles que atuam como bibliotecários/as ou participam de outras tarefas de colaboração queiram e possam dar. Os espaços são expressões do que as pessoas fazem com eles, especialmente quando os sentem como seus.

A apropriação não se decreta nem se converte por magia a partir da proclamação de slogans bem-intencionados sobre a leitura e as bibliotecas, mas é uma trama paciente e consciente que se alimenta artesanalmente pela experiência, pela capacitação e pelo diálogo com aqueles que participam da vida das bibliotecas em práticas que pensam a leitura de uma maneira expandida, muito além de simplesmente pegar emprestado um livro para ler. Nesse contexto, a escuta se torna fundamental, pois, como afirma Roger Chartier (referência central para o conceito de apropriação) em O pequeno Chartier ilustrado3, “o processo de apropriação é uma produção silenciosa de sentido”. Ao falar de “produção silenciosa de sentido” alude à atitude indômita e soberana com a qual cada leitor/a interpreta o que lê e ouve, seja em livros ou outros objetos da cultura. E acrescenta que “sempre na apropriação há uma forma de invenção de sentido, de produção de um sentido inesperado. Não se deve esquecer, ao mesmo tempo, que essa não é uma liberdade absoluta, mas sempre resulta de condições ou possibilidades econômicas, culturais e históricas.”Por isso, a invenção de sentidos por parte daqueles que recorrem à biblioteca e participam de diversas práticas de leitura e propostas culturais requer a co-invenção criativa e aberta por parte de bibliotecárixs e voluntárixs das bibliotecas, para que o acesso e os processos de apropriação por públicos diversificados se tornem uma realidade possível e não apenas uma declaração de expectativas. Na vida cotidiana da biblioteca, aqueles que trabalham ou colaboram lá precisam registrar e responder aos diversos modos de se expressar e se relacionar, promover conversas e tomar decisões levando em consideração as formas como os leitores e leitoras se relacionam com as práticas de leitura e orais em diferentes contextos. Por exemplo, jovens que procuram emprego, grupos de adultos que estão passando pela escolarização primária, intérpretes de hip hop e rap, crianças que vivem diferentes situações de vulnerabilidade, são todas variáveis do ponto de vista dos sujeitos que desafiam os mediadores a desenvolver estratégias de trabalho e intervenção diferenciadas, considerando que também serão diversos os modos como esses potenciais leitores e leitoras se vincularão com os materiais e propostas da biblioteca.

De que maneiras nos relacionamos com os outros e sua cultura em uma conversa? Mais precisamente, que ideologias entram em jogo quando se concretizam tempos e espaços de conversação na biblioteca, seja espontânea ou planejada?

As noções de dialogismo e polifonia de Mikhail Bakhtin4 são centrais para pensar como nossas palavras fazem parte de um tecido feito com as palavras dos outros. No centro de sua concepção de mundo, estão os sujeitos em interação permanente com seus semelhantes por meio da linguagem entendida como ato ético, ação e comunicação dinâmica. Todo discurso está relacionado à apropriação criativa de palavras alheias, portanto, nossas vozes não estão sozinhas: existem na medida em que nelas residem consciente ou inconscientemente as vozes dos outros. Essa ideia não é menos importante para refletir sobre o lugar dado ao outro nas situações de conversa. Tem a ver com a permeabilidade para dialogar com as outras vozes e que estas sejam escutadas assim como a nossa. Uma conversa, da forma como estamos pensando, não é uma encenação de vozes que se revezam apenas para se autoafirmar. Nesse sentido, a pergunta ou a incitação ao diálogo com os outros não é a antessala de uma resposta previamente planejada ou dirigida. Não é a ratificação de uma ideia pensada de antemão, imutável e, portanto, monológica, unívoca. É um espaço de saber hospitaleiro ao saber do outro e vice-versa. A disposição para se abrir ao diálogo com a diversidade (a do outro, a própria) em uma conversa não é uma celebração leve nem um discurso tranquilizante de consciências sobre as diferenças, mas sim um compromisso ético, vital e social com a experiência cultural do outro. A polifonia para Bakhtin implica a disputa de sentidos, a tensão entre vozes distintas e, às vezes, distantes entre si ideologicamente. Não é raro, então, que o sistema de metáforas que muitxs de nós usamos cotidianamente em diversos contextos culturais para expressar a noção de “discussão”, uma das formas como o diálogo se desenvolve, tenha a ver com a confrontação ou com o aspecto bélico. Lakoff e Johnson[v], em Metáforas da Vida Cotidiana, afirmam que “com base principalmente em evidências linguísticas, descobrimos que a maior parte de nosso sistema conceitual ordinário é de natureza metafórica”. Esses conceitos, segundo esses autores, estruturam nossa atividade cotidiana e nossas posições diante da realidade. O primeiro exemplo que eles fornecem é, precisamente, a metáfora conceitual de “Uma discussão é uma guerra”, evidente em expressões como “sua posição é indefensável”, “atacou seu argumento”, “desarmou-o com sua resposta”, “acertou em cheio quando respondeu”, “venceu no debate”, etc. O que caracteriza uma metáfora é entender e experimentar uma coisa em termos de outra. Ou seja, não é que a discussão seja uma subespécie da guerra, pois discutir e fazer a guerra, segundo os autores, são dois campos de ação e discurso diferentes, mas uma discussão é pensada, mencionada ou executada em grande medida a partir de termos bélicos e isso impregna nosso pensamento. O que eles propõem, então, é que os diversos sistemas metafóricos não se manifestam apenas no nível da linguagem, mas principalmente estruturam nossas maneiras de pensar e agir. Também levantam hipóteses de que seriam posicionamentos culturais, que então convidam a imaginar uma cultura na qual as discussões não sejam consideradas como eventos bélicos onde se ganha ou se perde, se ataca ou se defende, mas sejam visualizadas em termos vinculados à dança, por exemplo. Nessa cultura hipotética, afirmam, as pessoas considerariam as discussões de maneira diferente, as experimentariam de outra forma e falaria delas de maneira distinta. Desde nossa cultura, essa maneira de se referir ao ato de discutir pode parecer estranha, até podemos pensar que não se trata exatamente de discussões. Talvez seja uma provocação para não naturalizar os sistemas metafóricos que estruturam nosso pensar, falar e agir, mas sim considerar que sempre estamos atravessados pelas culturas das quais fazemos parte ao mesmo tempo em que produzimos cultura.

As referências às ideias sobre as metáforas na vida cotidiana de Lakoff e Johnson5 não invalidam que o diálogo, em seus diversos formatos, debate, discussão, conversa, etc., se enriqueça quando há abertura, ou seja, escuta, para a palavra e a experiência alheia. A luta de ideias não necessariamente implica a destruição ou o silenciamento da palavra alheia por meio de diferentes táticas de violência simbólica. Pelo contrário, voltando a Bakhtin, o verdadeiro diálogo é inconcluso, vivo, disponível para a palavra alheia. Nesse sentido, o caráter dialógico está relacionado ao pensamento crítico, já que não fica preso à certeza unilateral, monológica, de quem sustenta uma verdade inalterável.

A crítica é a base do pensamento autônomo, por isso é o oposto do dogma. O dogmatismo pressupõe a aceitação acrítica de enunciados, visões de mundo e práticas concretas que se apresentam como únicas e certas. Podem ser de qualquer signo ideológico. Mais do que com o conteúdo, o dogmático tem a ver com a forma. O conteúdo pode ser de corte progressista, mas se for comunicado como um ato de fé, como uma verdade inquestionável, deixa de lado uma característica fundamental do pensamento crítico, que é a abertura ao questionamento e o caráter polifônico e social de toda construção de conhecimento.

A prática do “não saber” como postura metodológica e ideológica pode ser aliada para construir saberes e diálogos não dogmáticos. Como disse a poeta Wislawa Szymborska em um fragmento de seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel em 1996: “Por isso tenho em tão alta estima duas pequenas palavras: ‘não sei’. Pequenas, mas com asas potentes. Que nos alargam os horizontes em direção a territórios que se situam dentro de nós mesmos e em direção a extensões em que pende nossa minguada terra.”

Retomo o sentido do “não sei” para Szymborska: palavras aladas e antidogmáticas, que acendem a aprendizagem no mundo e nas bibliotecas.

Gostaria de associar essa prática do não saber, no sentido de que não há uma palavra ou certeza última, definitiva, com o conceito e prática da confiança, pensada como porta aberta aos saberes e ações dxs outrxs.

O especialista em educação Laurence Cornu6 (1999), tomando um enunciado de Simmel, diz que a confiança é uma “hipótese sobre a ação futura” do outrx, e acrescenta que é “uma espécie de aposta que consiste em não se preocupar pala falta de controle do outro e do tempo” (p.19).

Talvez a dificuldade para muitxs em relação à confiança pode ter a ver com o medo de perder o controle sobre situações e pessoas (inclusive sobre si mesmas), especialmente no contexto das conversas. Por isso, é enriquecedor cruzar a ideia de diálogo inconcluso proposto por Bakhtin com a construção da confiança, criando uma ponte entre o presente e o futuro. Sem generalizar, parece interessante pensar, em termos de uma época, no que acontece com a confiança nxs outrxs como garantia de diálogo. Não posso deixar de pensar que estamos passando por uma crise inédita da confiança, que se manifesta de diversas maneiras. Por isso, me parece importante examinar alguns fatos que desafiam os vínculos sociais e contribuem para a perda de empatia, expressão fundamental da confiança. Em primeiro lugar, pela forte investida global contra a vida em comum, a justiça social e o desenvolvimento humano como foi a pandemia, cujas consequências em várias facetas da vida social e pessoal ainda não conseguimos vislumbrar completamente: as consequências nos modos de relacionamento, na sensibilidade, no cognitivo e nos mecanismos de controle social têm uma magnitude cuja gravidade estamos apenas começando a dimensionar. É preocupante a tendência de esquecer rapidamente o tsunami pandêmico que ocorreu há apenas dois anos e abalou o mundo com milhões de mortos e afetados na saúde física e mental. Nenhuma análise sobre os vínculos humanos deveria ignorar ou subestimar como isso impactou e continua impactando nas diversas manifestações das crises políticas, sociais, culturais e econômicas desta época. Seria perigoso, ao pensar na relação entre confiança e diálogo, não avaliar quais marcas foram deixadas na vida atual pelo isolamento, o contato zero em momentos específicos, o aumento astronômico da dependência do mundo digital, o afastamento da corporeidade como forma de encontro, entre tantos flagelos que hoje, em muitos casos, se naturalizam.

Em um mundo hoje marcado por guerras dolorosas que parecem não ter fim e que envolvem de maneira dilacerante o sacrifício de tantas vidas inocentes, a crise de confiança leva, em muitos casos, a não se posicionar claramente a favor de valorizar o humano e a desconhecer ou olhar acriticamente para a história complexa e a multicausalidade que desencadeiam os eventos que hoje abalam o mundo.

A crise de confiança também encontra uma possível explicação em uma tendência crescente ao politicamente correto que se expressa no suposto medo de ferir sensibilidades de pessoas, grupos e identidades diversas, o que leva a ações autoritárias como cancelamentos, censuras e discursos excludentes disfarçados de inclusão.

Outra das causas fundamentais da crise de confiança atual provém de diversas formas de engano que são aceitas sem questionamentos ou exigência de autenticação por um número significativo de pessoas, confiando apenas no impacto emocional como evidência suficiente para dar crédito ao evidentemente falso. A proliferação de notícias falsas que buscam influenciar comportamentos individuais e sociais mina a confiança no que é comprovado pelos fatos e pelos estudos científicos.

Poderia continuar apontando fontes atuais da desconfiança que derivam fundamentalmente da falta de resposta e negligência por parte de visões políticas hegemônicas diante do aumento da desigualdade social global. No entanto, acredito que é imperativo nos questionarmos sobre se é possível reverter e transformar um estado de espírito e uma relação com o conhecimento feridos por várias manifestações de desconfiança. E em relação a esse espaço singular de pensamento e ação, o que as bibliotecas podem fazer para fortalecer relações de confiança?

Nos últimos anos, recebi notícias sobre bibliotecas colombianas que se autodenominam “de confiança”, em um caso, porque chegam a bairros populares com o propósito de disponibilizar livros que são emprestados livremente, incentivando a devolução do mesmo ou de outro livro e o cuidado coletivo do mobiliário e dos livros disponíveis, como acontece em nossa experiência com as bibliotecas ao passo; em outro caso, no âmbito de uma universidade colombiana, na extensão dos horários, na autogestão do empréstimo pelos estudantes, certas características que visam tornar o ambiente e a permanência mais confortáveis, e a discrição por parte dos responsáveis na forma de organizar essa hospitalidade seriam as chaves do que chamam de confiável.

A inclusão do atributo “de confiança” no título dessas propostas me fez pensar se por acaso não seria uma característica que toda biblioteca poderia ter. Uma cultura de bibliotecas não deveria sempre incluir o estímulo para estabelecer vínculos de confiança? A relação de familiaridade com o espaço e suas práticas será uma aspiração que distingue as bibliotecas quando se apresentam como ambientes acolhedores para a diversidade, começando por se conceberem como diversas, empáticas e inclusivas?

Geneviève Patte, em um artigo recentemente publicado pela Revista Emília, se refere a essa cultura familiar como “uma encantadora maneira de estar juntos”. Acredito que esse encanto compartilhado ao qual ela se refere pode dialogar com a palavra “confiança”, já que em sua raiz, especialmente no prefixo “con”, está a ideia de uma ponte que é percorrida não de maneira solitária, mas com outros, no sentido mais amplo de abertura ao diferente.

Em dias recentes, Ramón Salaberria, especialista em bibliotecas de origem basca e atualmente residente no México, compartilhou em redes sociais alguns documentos escritos e audiovisuais a partir de sua experiência em torno da chamada Biblioteca Humana que ajudou a impulsionar entre 2014 e 2018, fazendo parte da equipe responsável pela Biblioteca Vasconcelos na Cidade do México. Acho interessante trazer para nossa conversa a riqueza dessa proposta original em relação ao diálogo, à escuta e à confiança em uma época marcada por preocupantes manifestações de exclusão do diferente. O projeto da Biblioteca Humana nasceu em Copenhague no ano 2000 como uma ação que posteriormente deu origem à formação de uma organização não governamental e uma página da web que pode ser consultada on-line. Inspirou que se replicara em mais de 80 países, na maioria dos quais se realizaram a partir da iniciativa de organizações locais. A experiência consiste em pessoas de diversas origens e posições sociais, especialmente aquelas que geralmente são inviabilizadas, marginalizadas ou estigmatizadas em nossas sociedades, tornarem-se Livros humanos, contando com sua própria voz uma experiência pessoal para quem quiser ouvir por meio da escuta. Um livro humano pode ser escolhido por várixs leitorxs/ouvintes participantes para gerar um encontro íntimo de escuta compartilhada da história que tem para oferecer.

O seguinte trecho, que faz parte do guia Como fazer uma biblioteca humana7, publicado online com acesso gratuito para leitura pelo espaço educativo La aventura de aprender, destaca a centralidade do diálogo na proposta da Biblioteca Humana:

“O diálogo resultante de uma Biblioteca Humana torna visível e reconhece a experiência de todas as pessoas igualmente. Em um contexto onde o conhecimento amador, as perspectivas particulares, as emoções e sentimentos não são considerados valiosos, muito menos autoridade na compreensão dos problemas que enfrentamos, a comunicação oral em grupos pequenos formados pelo livro humano e seus leitores cria um ambiente inigualável para uma cultura de inclusão: ninguém, como os envolvidos, pode narrar e compartilhar como é a vida com deficiência, o que levou um migrante a deixar sua casa, como um ex-combatente de guerra luta consigo mesmo, como superar a violência de gênero, a pobreza dos sem-teto, a exclusão dos sem documentos ou a doença crônica. As histórias de vida disponibilizadas aos leitores revelam um acervo inédito de conhecimento no qual ‘as perguntas mais difíceis são esperadas, apreciadas e respondidas’. No diálogo, não apenas há aprendizado para os leitores; os livros humanos também visibilizam e compreendem sua própria história.”

Como Leandro Jacob destaca, coautor juntamente com Ramón Salaberria e Teresa Avedoy de Biblioteca humana. Un manual8, livro recentemente editado pela Imprenta Rescate, também disponível gratuitamente, trata-se de uma experiência coletiva e íntima ao mesmo tempo, onde se relacionam um relato (a escrita oral) e a escuta (a leitura atenta e viva).

O lugar da oralidade, considerado neste caso como outra forma de escrita, legitimando as vozes que geralmente não são ouvidas, pode ser considerado outro pilar das relações de confiança, opondo-se ao silenciamento ou subestimação da fala e da experiência daqueles que vivem vidas marcadas por diferentes formas de exclusão.

A voz humana encarna no corpo e nas gestualidades que também falam. As bibliotecas, em toda a diversidade de formatos, tamanhos e localizações em que se manifestam, podem ser espaços onde os corpos e almas sintam que podem ter um lugar próprio, amigável e confiável para se sentirem protagonistas. E, acima de tudo, podem contribuir para a transformação do que obstaculiza a justiça social, graças à visibilização da luta pelos direitos de cada pessoa e cada comunidade.

As cenas de oralidade compartilhadas por meio do diálogo sobre leituras e experiências são uma expressão valiosa para conectar o passado pessoal e comunitário com o presente, principalmente em tempos em que a memória parece se desvanecer devido ao excesso e também à má utilização que explode e dificulta estabelecer laços verdadeiros com a experiência vivida e com as conquistas sociais em prol da vida em comum.

Pensar nas conversas sobre leituras e experiências como cenas, como instâncias performáticas ou como eventos implica deixar de lado a generalização e observar seu caráter situado, levando em consideração os diversos modos de abordagem de acordo com contextos específicos, participantes específicos, situações específicas, textos específicos, conjunturas específicas (a insistência no adjetivo é intencional).

O fato de as bibliotecas serem espaços nos quais, por meio de conversas e escuta genuína, todas essas variáveis possam ser colocadas em jogo as torna convocantes para transformar o injusto e o assimétrico, contribuindo para a democratização dos laços sociais. Talvez esse seja o significado que Ursula Le Guin atribui à escuta: em diálogo com suas palavras inspiradoras, gostaria de encerrar as minhas.

“(…) A comunicação recíproca entre quem fala e quem escuta é um ato poderoso. O poder de quem fala é amplificado, aumenta, pela sincronização de quem escuta. A força de uma comunidade é amplificada, aumenta, pela sincronização recíproca da fala.

Daí que falar seja algo mágico.

As palavras têm poder. Os nomes têm poder. As palavras são eventos, fazem coisas, mudam as coisas. (…)”

Ursula K. Le Guin,

Contar é Escutar9

* Palestra realizada virtualmente para o Instituto Cervantes, Madrid, 14 de novembro de 2023.

Imagem: Jonathan Wolstenholme

Tradução: Dolores Prades

Notas

  1. Patte, Genevieve. “La biblioteca a los cuatro vientos”. Piedra Libre 7. Córdoba. Março 1991. (Pág. 16-
    19). ↩︎
  2. De Certeau, Michel. Cap. 3. “Relatos de espacio” en La invención de lo cotidiano. I. Artes de hacer.
    México. Universidad Iberoamericana. 2000. ↩︎
  3. Chartier, Roger. El pequeño Chartier ilustrado. Breve diccionario del libro, la lectura y la cultura escrita. Buenos Aires, Ampersand, 2022 ↩︎
  4. Bajtín, Mijail. (2005) Problemas de la poética de Dostoyevski. México. Fondo de Cultura Económica. ↩︎
  5. Lakoff, George, Johnson, Mark (1998). Metáforas de la vida cotidiana, Madrid. Cátedra. ↩︎
  6. Cornu, L. (1999). La confianza en las relaciones pedagógicas. En Frigerio, G. y otros Construyendo un saber sobre el interior de la escuela (pp. 19-26). Buenos Aires: Novedades Educativas. ↩︎
  7. Epstein Cal y Mayor, Paula. Cómo hacer una Biblioteca humana. Guía de La aventura de aprender.
    Disponible en línea en: https://laaventuradeaprender.intef.es/proyectos_colab/como-hacer-una-biblioteca-humana/. ↩︎
  8. Salaberria, Ramón, Avedoy, Teresa, Jacob, Leandro. (2023). Bibliotecas humanas. Un manual. Buenos Aires, Imprenta Rescate. Disponible en http://eprints.rclis.org/44986/. ↩︎
  9. Le Guin, Ursula K. (2018) Contar es escuchar: sobre la escritura, la lectura, la imaginación. Madrid, Círculo de tiza. ↩︎

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  • Cecilia Bajour

    Nasceu na Argentina, é crítica literária de livros para crianças e jovens, com expressiva atuação na formação de professores e mediadores de leitura. Autora de vários livros, escreve assiduamente em publicações especializadas em literatura infantil, promoção de leitura, educação e bibliotecas em diferentes mídias em toda a América Latina. Membro da Rede de Apoio Emilia.

    CeciliaBajour@revistaemilia.com.br Bajour Cecilia

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