Futuros emergentes

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cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

Todo país, contexto, lugar, espaço-tempo que foi colonizado merece ter um ou mais futuros emergentes.

Utilizo o adjetivo emergente na acepção que o sociólogo português Boaventura De Sousa Santos propõe quando fala de histórias emergentes e sociologias emergentes, em contraposição às histórias das ausências e às sociologias das ausências1.

Se a Sociologia das ausências descreve um início de apagamento, um ocultamento, a Sociologia das emergências se propõe a recuperar, recontar, desvendar e justamente fazer emergir ou ressurgir as histórias e as sociologias dos povos colonizados e invisibilizados.

O conceito é muito interessante sob vários pontos de vista, já que o objetivo final desta pesquisa é a justiça cognitiva.

Não pode haver justiça social global sem justiça cognitiva global.2

Trata-se, então de promover:

a recuperação dos saberes populares e vernaculares ativos durante as lutas, nunca reconhecidos pelos saberes científicos ou acadêmicos – seja pela Filosofia, Arte ou Ciências Humanas e Sociais – como contribuições relevantes para uma melhor compreensão do mundo.3

Assim, a pesquisa deve permitir a emergência da História e das histórias como forma de justiça. Um convite às Ciências Humanas para se sujarem com a política, para aceitar o risco de investigar seu potencial transformador. Afinal, foi Edward W. Said, um dos primeiros estudiosos do colonialismo, a esclarecer esse conceito.

Existe atualmente a tendência (no Ocidente e especialmente nos Estados Unidos) de exigir de todo estudioso, em qualquer ramo do conhecimento, uma atitude não política que, neste caso, significa rigorosa, bem documentada e imparcial, superior a qualquer partidarismo e a todo preconceito ideológico mesquinho. Essa exigência pode muito bem ser compartilhada, em teoria; na prática, porém, a situação se mostra bem mais complicada. Ninguém inventou ainda um sistema para separar o estudioso das circunstâncias da vida, da classe social a que pertence (esteja consciente disso ou não), das opiniões que ele deve, no entanto, formar sobre os muitos tópicos em que ele não é especialista, enfim, do fato de ser membro de uma sociedade, com todas as vantagens mas também com todas as limitações que isso acarreta. Tudo isso não pode deixar de influenciar sua atividade de pesquisador, ainda que ele se esforce para alcançar uma relativa independência das influências acima mencionadas. Existe, sem dúvida, um conhecimento que é mais, e não menos, objetivo do que o indivíduo que o produziu (distraído e confuso pelas circunstâncias de sua vida); mas não necessariamente, esse conhecimento não terá um caráter não político.4

Portanto, é essencial entender que o conhecimento pode ser, ou melhor, é político.

O que quero enfatizar aqui é que o consenso geral, nas sociedades liberais, da noção de que o conhecimento “verdadeiro” é fundamentalmente não político (e, inversamente, que um conhecimento político não é “verdadeiro”) obscurece a enorme importância, embora muitas vezes seja difícil de descrever e comprovar, das circunstâncias políticas para a produção do conhecimento humano em todas as suas formas. E se, então o conhecimento é político, também o é sua forma fundamental de construção, ou seja, a educação.5

Trata-se de um assunto global comprovado o fato que para mudar uma sociedade deve-se começar desde a primeira infância e, em particular, desde os primeiros seis anos de vida. A quantidade de pesquisas e estudos produzidos, por exemplo, pela UNESCO, em 2015, na antologia Investing against Evidence6 torna absolutamente visível o que há de positivo em investir com atenção, consciência e qualidade na primeira infância e na educação de crianças pequenas. A esta evidência, infelizmente, ainda não se seguiram fatos concretos que nos permitam ver os benefícios desta escolha à escala global, mas é igualmente verdade que há um investimento em políticas para a primeira infância em países em processo de descolonização e isso é um dado importante como ponto de partida reconfortante para a nossa reflexão.

Seguindo as reflexões do sociólogo português Sousa Santos, podemos identificar entre os males do Sul global uma tríade que está na origem de tantos problemas de desigualdade e injustiça social: capitalismo, colonialismo e patriarcado, três componentes de um mesmo caminho eurocêntrico fruto da modernidade, que são a causa de uma situação em que mais da metade das pessoas que vivem neste mundo enfrentam inúmeros percalços para levar uma vida digna e em conformidade com os tratados internacionais.

Para incidir em políticas pós-coloniais é necessário, portanto, manter o olhar nas políticas que contrastam colonialismo, capitalismo e patriarcado. Seria simples dizer que a escola gratuita, de qualidade e acessível seria a melhor resposta para contrastar com essa tríade. Embora isso seja verdadeiro, a maneira de como atingir o objetivo, ou ao menos aproximar-se de tal utopia é, certamente, muito mais complexa e requer uma análise da situação da primeira infância, um estudo de caso e uma identificação das teorias que possam permitir que o mundo se mova na direção indicada.

No plano político e econômico, o hiperliberalismo assumido como política nacional por Margaret Thatcher no Reino Unido7, e que se tornou referência para muitos países ao redor do mundo entre 1990 e as duas primeiras décadas dos anos 2000, tem levado a importantes desequilíbrios na divisão de recursos e riquezas, desenvolvendo um clima de insatisfação e descontentamento e a consequente emergência de extremas direitas racistas, homofóbicas, xenófobas, violentas e propensas à conspiração em benefício das elites. No entanto, tal atitude conforma um Ocidente onde o moderno e o pós-moderno evidentemente chegam juntos ao fim de sua trajetória.

Esta e as próximas contribuições nos obrigam a ir em busca de novos paradigmas, não sozinhos, mas em forte aliança com os muitos movimentos que hoje começam a questionar a tríade, como o feminismo, o ecologismo e toda a Jornada do Friday for future8, e as muitas pequenas batalhas locais organizadas em torno de um desejo único de justiça social e extensão dos direitos de todas e todos. Um percurso que não consegue encontrar unidade e por isso mesmo facilmente combatido pelo capitalismo eurocêntrico.

No entanto, são inúmeros os autores, pensadores, ativistas e pesquisadores que se empenham na construção de um pensamento comum para a justiça social. São e estamos convencidos de que meninas e meninos desde a primeira infância são capazes de nos indicar o caminho ou nos dar pistas muito profundas e adequadas para traçar esse caminho de igualdade de direitos, sustentabilidade da vida, respeito aos direitos sociais e civis, de co-evolução sustentável e de paz.

A construção de futuros emergentes para todos os países do mundo depende, pois, da vontade de cada uma e de cada um de nós em contribuir para a mudança da sociedade capitalista, colonialista e patriarcal.

Tradução: Dolores Prades

Nota dos editores: Este texto faz parte de uma série de artigos de autoria de Cristian Fabbi que serão publicados originalmente na Revista Emília. Na sequencia deste primeiro já está disponível Pós-colonização e decolonização.

Notas

  1. De Sousa Santos usa muito frequentemente o plural: histórias, sociologias, epistemologias. Também o faço, no telhado, com a mesma inspiração inclusiva e acolhedora do sociólogo português. ↩︎
  2. De Sousa Santos, B., 2023, Descolonizar a história. Além do capitalismo, colonialismo e patriarcado, Castelvecchi, Roma. Título original: Decolonisar. Eu me abro para a história do presente. ↩︎
  3. Ibid. ↩︎
  4. Said, E. W., 1978, Orientalismo, Feltrinelli, Milano. ↩︎
  5. Said, E. W., Ibidem. ↩︎
  6. Marope, P. T. M., e Kaga, Y., 2015, Investing against Evidence: the global state of early childhood care and education,UNESCO, Paris. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233558>. ↩︎
  7. Para uma posição crítica sobre a obra política de Margaret Thatcher, ver, por exemplo, Mulholland, M., Margaret Thatcher 1925-2013, in Jacobin, 04.09.2013. Disponível em: <https://jacobin.com/2013/04/margaret-thatcher-1925-2013>. ↩︎
  8. Friday for future é um movimento internacional crescente, principalmente de estudantes, manifestando-se para exigir ações contra o aquecimento global e as mudanças climáticas. O movimento ganhou força quando a ativista sueca Greta Thunberg começou a se manifestar em frente ao Parlamento sueco, em agosto de 2018. [NT]. ↩︎

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  • Cristian Fabbi

    Cristian Fabbi é Presidente da Reggio Children. Tem vasta experiência na gestão de sistemas de educação da primeira infância nos setores público e privado. Desenvolveu programas e iniciativas para introduzir e fortalecer a educação de qualidade na África e na Ásia, em países como Azerbaijão, Camarões, Ciad, Eswatini, Guiné-Conakry, Laos, Ruanda e Seicheles. Trabalhou por longo tempo em Kosovo, com diversas ONG’s (Caritas, RTM). É membro do grupo de trabalho ECA (Early Childhood Authority) de Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos. Na Albânia, trabalhou com a UNICEF com a adaptação do framework para as cidades amigas das crianças. Trabalhou para a Save the Children na criação das Diretrizes para o ECCD, com o Observatório para os Direitos da Infância.

    cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

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