Pós-colonização e decolonização

Post Author
cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

Já soou a hora final do colonialismo e milhões de habitantes da África, Ásia e 

América Latina se levantam ao encontro da nova vida 

e impõe seu irrestrito direito à autodeterminação 

e desenvolvimento independente de suas nações.

Ernesto “Che” Guevara. Discurso às Nações Unidas, 11 de dezembro de 1964.

Os processos que antecederam a colonização muitas vezes apresentaram uma dinâmica linear. Não simples, mas linear. Países fortes, ricos e com tecnologias (especialmente de guerra) ocuparam lugares e exploraram populações que não tinham os mesmos recursos disponíveis. Pode parecer pouco rigoroso descrever o processo de colonização dessa maneira, e certamente o é, mas nada comparado ao processo, ainda em andamento, de decolonização.

Antes de tudo, a decolonização avança em diferentes ritmos em contextos diversos, mas, sobretudo, em alguns casos, observam-se novas formas de recolonização, talvez menos visíveis, mas ainda assim muito abrangentes. Trata-se, portanto, neste caso, de um processo não linear, complexo, por vezes difícil de interpretar. Hoje, por exemplo, observam-se novas sobreposições coloniais. Há uma nova onda de colonialismo chinês na África subsaariana e uma crescente presença russa, especialmente na região do Sahel, que propõe novos paradigmas de colonialismo, juntamente com formas conhecidas e tradicionais. Isso nos diz que o colonialismo não acabou e, de fato, ressurge em formas novas e em contextos desconhecidos até o momento. Pensemos, por exemplo, no mundo digital e na inteligência artificial.

Então, vamos tentar colocar alguma ordem em termos de terminologia, lembrando sempre que:

Qualquer tentativa de simplificar, esquematizar ou resumir histórias e debates complexos, contém sempre alguma medida de reducionismo e o estudo do colonialismo é particularmente vulnerável a esses problemas
devido às práticas e impactos heterogêneos que têm caracterizado o colonialismo nos últimos séculos.
1

Comecemos por dizer que os estudos pós-coloniais são anteriores aos estudos decoloniais, que tentam fornecer novas respostas onde as anteriores falharam. Há, portanto, uma primeira concatenação temporal. Os estudos pós-coloniais surgem antes dos decoloniais.

O pós-colonialismo é uma linha de estudo que remonta aos anos 1960, que se concentra na valorização das culturas locais, colocando em discussão o percurso do colonialismo, mas sobretudo do eurocentrismo.

A teoria pós-colonial é uma abordagem crítica que se ocupa da literatura produzida em países que já foram, e talvez ainda sejam, colônias de outros países. Centra-se, por exemplo, na literatura escrita por cidadãos dos países colonizadores, e que tratam, analisam, contam as colônias e seus povos. A teoria pós-colonial se baseia nos conceitos de alteridade e resistência. Isto tornou-se parte da teoria crítica na década de 1970. Os autores de referência são Lacan, Foucault e Derrida, embora muitos atribuam à obra Orientalismo e cultura do imperialismo, de Edward Said, o papel fundador da teoria.

O pós-colonialismo se ocupa dos efeitos da colonização na cultura e na sociedade. Originalmente utilizado por historiadores após a Segunda Guerra Mundial a expressão”pós-colonial” tinha um claro significado cronológico, designando o período pós-independência2. Desde o final dos anos 1970 o termo foi utilizado pela crítica literária para discutir os diversos efeitos culturais da colonização.

Um elemento que caracteriza esses estudos pós-coloniais é o fato de que se concentram na história, ao contrário dos decoloniais que se concentram nas estruturas de poder.

A decolonização, então, pode ser definida como um processo cultural, social, político ocorrido nos territórios legalmente dependentes de um estado europeu, que obtiveram sua independência constitucional e ingressaram no cenário mundial das relações internacionais como estados soberanos.

A decolonização recupera o que genuinamente não é Ocidental, seja na arte, nas práticas sociais, culturais e políticas, e nas tradições filosóficas. Essa abordagem da decolonização cultural (e, portanto, também educativa) traz com frequência muita tensão, pois é um processo controverso definir que algo é de fato autenticamente não ocidental. Isso geralmente é difícil de provar devido à profunda influência do encontro colonial nas sociedades colonizadas, mesmo na época pós-colonial, considerando as imagens sociais que vêm sendo construídas em torno do contexto colonizado, como por exemplo quando se fala do Oriente3.

Os estudiosos da decolonização, ao contrário dos que se concentram no pós-colonialismo, são provenientes predominantemente de países colonizados. Um deles é Aimé Césaire. O diagnóstico que ele faz do imperialismo cultural nos fornece uma abordagem diferente da decolonização cultural. Embora Aimé estivesse profundamente preocupado com a destruição de práticas e modos de vida indígenas sob o colonialismo, argumentava que resistir ao colonialismo não seria uma simples tentativa de recuperar uma cultura autenticamente não europeia. Em vez disso, falando em um congresso de escritores e artistas anticoloniais que ajudou a organizar em 1959, Césaire aponta que o colonialismo criou uma “hierarquia de criadores e consumidores”, para quem, práticas e conhecimentos não ocidentais, como a ciência africana, eram considerados primitivos e mero folclore. Então, o problema com o imperialismo cultural é que anula a ação dos sujeitos coloniais de produzir práticas valiosas e contribuir para a melhoria da humanidade. Em vez disso, os povos colonizados são vistos como destinatários passivos do gênio europeu4.

A decolonização é o conceito e a prática que os povos indígenas e os povos colonizados do mundo todo estão usando para se libertarem dos ciclos de violência, discriminação e desespero que foram criados por centenas de anos de colonização. […] A decolonização pode significar menos dependência de estruturas impostas pelo poder colonizador dominante e está diretamente ligada à soberania tribal. O ato de decolonização é um caminho efetivo e essencial para a restauração dos direitos culturais. A decolonização implica dizer a verdade sobre a história, reconhecer os danos causados ​​pela assimilação, trabalhar para alcançar justiça e alcançar a verdadeira autodeterminação.5

Um outro elemento de diferença reside na maior radicalidade da decolonização em relação à modernidade eurocêntrica. Além disso, sendo posterior ao pós-colonialismo, a decolonialidade aborda as questões do colonialismo após suas mutações progressivas. Os estudos decoloniais, fortemente baseados na obra de autores africanos, asiáticos e latino-americanos, acolhem e propõem uma maior pluralidade de vozes no interior do debate. Por esta razão, a crítica epistemológica é mais forte nos estudos decoloniais.

Como este texto tem como foco a primeira infância, não será feito aqui um tratamento aprofundado de todos os desafios que os estudos anticoloniais têm de enfrentar, por razões de espaço e oportunidade.

No entanto, é útil abordar alguns deles, pois surgem persistentes e desafiadores quando se trata de infância, educação, estudos e até mesmo de mulheres e questões de gênero.

O primeiro desafio é sistêmico. Após anos, décadas, séculos, resulta muito mais
difícil criticar o colonialismo, separando nitidamente a mentalidade colonizadora da mentalidade colonizada, apesar de se ter clara a assimetria e a desigualdade. Se uma primeira fase do colonialismo foi (e, ciclicamente, é) baseada na invasão, violência, apropriação de recursos e submissão de uma população indígena, com o tempo, as relações se entrelaçam e hibridizam, as complexidades e interconexões na vida cultural, educacional e social se tornaram tão densas a ponto de tornar: o colonizador e o colonizado, além de tudo o que se opõe a eles, são tão diferentes e tão semelhantes como as matrioskas.6

Então, para ficar em nosso tema, quais as práticas educativas indígenas? E quais as coloniais? Como distinguir uma da outra? Provavelmente, a comunidade educacional deve estar ciente de que as interconexões entre as duas tradições educativas têm gerado, em alguns casos, um novo aporte cultural híbrido que surge da cumplicidade entre elas. Não digo que isso seja necessariamente um problema. Nos próximos artigos, serão focalizadas algumas áreas de trabalho em que o colonial é visível e, quem sabe, talvez isolável e erradicável, pelo menos em certa medida. O problema torna-se ainda mais complexo pelas identidades coloniais e decolonizadoras na diáspora.

Um segundo desafio é a de distinguir, se necessário, os níveis e as estratificações coloniais históricas. Um exemplo que conheço de perto diz respeito às Ilhas Seychelles7. As Ilhas Seychelles são uma república insular que teve uma primeira e forte colonização francesa, da qual há vestígios muito fortes nos sobrenomes, muitas vezes nos nomes, e no crioulo, que tem várias assonâncias reconhecíveis com o francês. No entanto, uma segunda colonização, a inglesa, trouxe a língua, mas também hábitos na alimentação e nos métodos de trabalho na coisa pública. Hoje se observa uma presença chinesa muito forte em Victoria e em todas as ilhas8. A recente visita do Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, à Victoria, testemunhada pelo Diplomat9, também reflete essa conclusão.

O exemplo das Seychelles é um entre muitos. Poderíamos citar Laos10, Vietnã11, Azerbaijão12 entre outros. Singular é a do Reino do Congo que, depois de Congo Belga, depois de Zaire, e de República Democrática do Congo, hoje é chamado também de Congo Kinshasa (para distingui-lo da República do Congo, também conhecida como Congo Brazzaville). Somente pelas denominações, é possível entender o caos gerado pelo colonialismo13.

Voltando ao nosso percurso principal, quais são os legados de um e do outro colonialismo? Hoje resulta difícil, senão impossível distinguir as responsabilidades culturais de um e de outro colonialismo.

Um terceiro desafio é o da inércia das ideias colonialistas, com seu peso patriarcal e capitalista. Apesar das muitas críticas razoáveis e fundamentadas, essa inércia mantém firmes nos países formalmente decolonizados as filosofias, culturas e estruturas sociais do capitalismo, em alguns casos convenientemente revisadas pela contemporaneidade, em outros ainda firmemente ancoradas em sua matriz original. Essa inércia é agravada por retornos reacionários eternos ou por novas ondas coloniais, não necessariamente baseadas em invasões ou novas guerras:

Desde o ano 2000, a situação mudou drasticamente. Em quase todos os lugares do chamado Norte global (mas também do Sul global), as políticas e ideias reacionárias tornaram-se mais visíveis e agressivas, com um impacto que se estendeu também à vida política e social. Especificamente, essas ideias promovem conceitos não igualitários de supremacia racial e hierarquias autoritárias, exclusivistas e liberais, tanto na política quanto na sociedade; elas defendem o racismo e o heteropatriarcado, destacando-se por suas apologias da política de extrema direita e do capitalismo histórico.14

Após o colonialismo e o período pós-colonial, surgem também formas de colonialismo interno. Isso é um processo resultante da era colonial, no qual algumas elites internas assumem o lugar dos colonizadores, replicando seus comportamentos e, sobretudo, modos e estruturas de poder. Além disso, há também o chamado neocolonialismo, uma forma ainda mais insidiosa e lamentavelmente emergente: o país, formalmente liberado do colonizador, continua (ou começa) a depender economicamente dele, criando países dominantes e países dependentes. É conhecido que muitos países colonizadores construíram estradas e portos por iniciativa própria para transportar recursos naturais e minerais das colônias para a metrópole. Os custos das estradas e portos foram transformados em dívidas que os países colonizados ainda têm com os invasores até hoje. Também é conhecido que muitas empresas e corporações enriqueceram através do comércio de recursos-chave, e essa riqueza ainda hoje constitui um elemento de domínio neocolonial. Um exemplo dentre muitos é o da companhia de seguros global Axa. Fala-se disso, por exemplo, no Le Monde, contando a história de Jacob du Pan, um colonizador de Santo Domingo, que retornou à França após a declaração de independência da ilha caribenha em 1804. Graças ao dinheiro obtido principalmente através de mão de obra escravizada em suas plantações de cana-de-açúcar, ele participou com seu próprio capital na criação, em 1816, da Compagnie d’Assurances Mutuelles contre l’Incendie de Paris. Esta companhia é reconhecida como parte do grupo Axa desde o final dos anos 1980.15

Portanto, a inércia das ideias coloniais e a nova onda reacionária parecem acompanhar a sociedade em direção a um retorno a um mundo pré-moderno.

Vimos, portanto, que o pós-colonialismo e a decolonização estão fortemente entrelaçados, muitas vezes são sinônimos, mas têm alguma forma de sequência temporal e, principalmente, uma gênese diferente. O pós-colonialismo surge, assim, em uma cultura europeia, enquanto a decolonização se fortalece nas vozes que vêm dos países colonizados. Trata-se, como já disse, de uma simplificação que, no entanto, deve orientar a leitura das próximas etapas deste trabalho.

Finalmente, observamos que tanto o pós-colonialismo quanto a decolonização não eliminaram a tensão colonial, que, pelo contrário, ressurge em formas sempre novas.

Tradução: Dolores Prades

Imagem: Foto de autoria do autor, escola do Distrito de Lubombo, região localizada em Eswatini, país da África, anteriormente conhecido como Suazilândia.

Nota dos editores: Este texto faz parte de uma série de artigos de autoria de Cristian Fabbi que serão publicados originalmente na Revista Emília. O primeiro da série é Futuros emergentes.

Notas:

  1. Loomba, Ania, Colonialism/Postcolonialism, Routledge, 2002. ↩︎
  2. Esse período se situa entre o final da década de 1950 e a década de 1970. ↩︎
  3. Said, E. W., 1978, Orientalismo e cultura do imperialismo, Companhia das Letras, 1978. ↩︎
  4. Césaire, A. Man of Culture and His Responsibilities, in Presence Africaine, 1959, p.125-132. ↩︎
  5. Genia, E. The Landscape and Language of Indigenous Peoples’ Cultural Rights, Arizona State University Law Journal, Vol. 44, No. 2, 2010. ↩︎
  6. De Sousa Santos, B. Decolonizzare la Storia, Castelvecchi, Roma, 2023, p. 31. ↩︎
  7. Trabalhei na República das Seychelles de 2016 a 2020 para o desenvolvimento de um plano de políticas para a primeira infância, em particular com o Instituto de Desenvolvimento da Primeira Infância de Seychelles, liderado por Shirley Choppy. ↩︎
  8. Veja, a título de exemplo, a página do site do Ministério das Relações Exteriores da China dedicado à embaixada das Seychelles. Disponível em: <https://www.mfa.gov.cn/eng/wjb_663304/zwjg_665342/zwbd_665378/202107/t20210702_9169772.htm>. ↩︎
  9. The Diplomat, January 12, 2021. China’s Foreign Minister Revives Belt and Road on 5-Country Africa Tour. Disponível em: <https://thediplomat.com/2021/01/chinas-foreign-minister-revives-belt-and-road-on-5-country-africa-tour/>. ↩︎
  10. Colonialismo francês, inglês e chinês. ↩︎
  11. O Vietnã, também inicialmente colonizado pelos franceses, após a invasão americana e a libertação seguinte, se aproximou da China acolhendo várias práticas coloniais, apenas para então redescobrir o encanto do Ocidente e dos próprios Estados Unidos. ↩︎
  12. Primeira importação Otomana, Turquia, depois União Soviética e agora parcialmente Estados Unidos. ↩︎
  13. A situação no Congo é muito complexa, difícil de resumir neste artigo, sendo infelizmente uma metáfora das piores experiências do colonialismo. Para conhecer a história do Congo, ou dos Congos, leia a obra monumental de David Van Reybrouck, Congo, Feltrinelli, 2010, vencedora de diversos prêmios literários. ↩︎
  14. De Sousa Santos, B, Ibidem, pag. 34-35. ↩︎
  15. Le Monde, La traite négrière, passé occulté par les entreprises françaises, 8/8/ 2020. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/economie/article/2020/08/08/la-traite-negriere-passe-occulte-par-les-entreprises-francaises_6048483_3234.html>. ↩︎

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Cristian Fabbi

    Cristian Fabbi é Presidente da Reggio Children. Tem vasta experiência na gestão de sistemas de educação da primeira infância nos setores público e privado. Desenvolveu programas e iniciativas para introduzir e fortalecer a educação de qualidade na África e na Ásia, em países como Azerbaijão, Camarões, Ciad, Eswatini, Guiné-Conakry, Laos, Ruanda e Seicheles. Trabalhou por longo tempo em Kosovo, com diversas ONG’s (Caritas, RTM). É membro do grupo de trabalho ECA (Early Childhood Authority) de Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos. Na Albânia, trabalhou com a UNICEF com a adaptação do framework para as cidades amigas das crianças. Trabalhou para a Save the Children na criação das Diretrizes para o ECCD, com o Observatório para os Direitos da Infância.

    cristian@revistaemilia.org Fabbi Cristian

Artigos Relacionados

Ficção, folclore e fake news

janu@email.com Alves Januária Cristina

re-vÊ-ja: Bradbury, Iversson e a TV

MagnoRodrigues@revistaemilia.com Rodrigues Faria Magno

Princesa intrépida e as arapucas do sexismo na literatura infantil contemporânea

vita@rmilia.org.nr

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *