Literatura para quem?

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Sobre censura, mutilações e desincentivo à leitura

Uma das inúmeras caixas de mensagens das redes sociais pula na tela do computador, “viu a publicação em diário oficial da FUNAP sobre a remição de pena?”. Não, não tínhamos visto e um arrepio nos percorre as espinhas.

Trata-se do Diário Oficial de 07 de julho de 2020, no qual está publicada a Portaria DIREX – 52, de 6-7-2020, que regula a gestão e a metodologia de ensino – Aprendizagem do Programa de Incentivo à Leitura – “Lendo a Liberdade” – PROLIB, realizado sob a responsabilidade da Fundação “Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel” (FUNAP), nos termos da Resolução SAP-82, de 12-07-2018.

Desde o episódio da censura ao projeto Remição em Rede e as conversas com a direção da FUNAP, passamos a um diálogo que nos apontava para uma possível retomada e reescrita de um novo termo de cooperação, com o propósito de seguirmos com a parceria para a realização de vinte clubes de leitura mensais, com quatrocentas pessoas privadas de liberdade, em vinte penitenciárias do Estado de São Paulo. Acervo liberado, mediadores e voluntárias pareceristas formadas, apenas o instrumento jurídico precisava ser formalizado. Recebemos o termo e apontamos o que, à época, chamamos de “equívocos conceituais”: referências a ensino-aprendizagem, exigência de elaboração de “provas”, foco na escolha de livros privilegiando temas edificantes e preocupação com formação profissional.

Entendemos que nem sempre quem redige o texto jurídico conhece os pressupostos de formação de leitores e pode confundir fruição com utilitarismo tecnicista. Entendemos que também pode não passar pela cabeça do redator que a escolha ampla e irrestrita de livros literários é o que vai possibilitar a humanização, a alteridade e a ampliação do universo de cada leitor, bem como pode também não perceber que há uma distância significativa entre educar para o exercício da cidadania e formar mão de obra barata para o trabalho operacional. Ingênuas, ou talvez tentando nos agarrar a um último fio de esperança, seguimos nas explicações. Aprofundamos os fundamentos e pressupostos que nos guiam na busca pelo prazer em ler, falamos da importância de valorizarmos a bibliodiversidade e de diálogos em clubes de leitura que partam da liberdade, da leitura da obra como um todo, apontando que qualquer compartimentação seria prejudicial. Grifamos cada parágrafo e palavra que não estava em consonância com uma formação ampla, irrestrita e libertária e nos foi prometida uma construção conjunta. E então veio a pandemia e uma sociedade inteira entrou em suspensão, inclusive, e principalmente, a perspectiva de reunir pessoas presas em torno do livro e da literatura. Diante das urgências, o direito à vida se impôs ao direito à literatura.1 Não vamos entrar aqui no cenário desolador nos presídios em tempos de pandemia. Cabe uma outra reflexão longa, um protesto, uma mobilização social, frente ao cenário de genocídio.

Mas para quem tem interesse em ver uma sociedade subjugada, a pandemia, tal como uma facada, pode ter vindo a calhar. Encerra-se o debate e parte-se para a canetada e como resultado está aí a portaria, com palavras bonitas como “liberdade”, “dignidade da pessoa humana” e “repulsa de qualquer ato censurador”, como se nós não soubéssemos ler as entrelinhas. Ou as linhas mesmo. Falta de leitura que justamente desejam para a sociedade brasileira, em especial para aquela que está dentro dos cárceres.

A portaria é um desserviço a qualquer programa coerente que de fato queira formar leitores. O texto se refere às resenhas, elaboradas após a leitura das obras, sempre com um traço ao lado escrito “prova” (resenha/prova). O clube de leitura mensal passa a ter quatro encontros sobre um mesmo livro, com a ideia de compartimentar e fragmentar, assim como uma sociedade injusta e manipuladora quer nos fragmentar e desconectar do todo. Consta também uma nova modalidade de análise de resenhas e há gradações para que se chegue a uma nota no final (entenderam, nota!, o objetivo final é uma nota)2Sobre os critérios de análise de resenhas do Remição em Rede leiam “Na dúvida, sim” de Janine Durand., justamente o que não se faz para formar leitores. E um dos critérios de avaliação, pasmem, é o emprego da norma culta da língua.

De acordo com os dados do Inaf – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, de 2018, apenas 34% da população brasileira que tem nível superior pode ser considerada proficiente na língua portuguesa. Ou seja, mesmo dentre as pessoas com graduação e até pós-graduação, 66% não consegue elaborar textos de maior complexidade com base em elementos de um contexto dado e opinar sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto. Mas, mesmo com o alto risco de o próprio criador da norma não ser proficiente na língua, exige-se que pessoas em situação de cárcere tenham suas resenhas avaliadas, dentre outros, pelos critérios da estética, da construção do argumento e de posicionamento crítico, do emprego da norma culta, especialmente quanto à correção gramatical (Valter Hugo Mãe, com suas letras todas minúsculas, não passaria na prova) e da coesão – conexão textual por meio do uso de advérbios, pronomes, de conectivos, sinônimos, dentre outros. Sim, são esses alguns dos critérios exigidos da população carcerária ao escrever uma resenha sobre uma obra literária lida. Dá até para lançar um desafio e ver quem, no topo dessa estrutura toda, consegue não só ler um livro do escritor Hermann Hesse, como muitos presos leram lindamente, e ainda escrever uma resenha cumprindo todos esses requisitos.

Isso porque ainda nem mencionamos a preocupação, constante da Portaria, com o processo de escolha das obras, privilegiando temáticas relacionadas à proteção da vida, à cultura da não violência, à preservação do meio ambiente, ao empreendedorismo, e por aí vai. Como ouvimos em algumas reuniões: por que escolher esses livros de literatura que ninguém entende e não selecionar livros de autoajuda e de religião? Porque, nós explicamos, um bom livro de literatura estrutura o raciocínio, gera reflexão, apresenta a beleza e faz as pessoas entenderem que não é preciso matar o próximo se pudermos fabular sobre essa morte. E porque toda pessoa gosta do que é bom. E toda pessoa tem direito de ser apresentada ao que é bom. Mais: toda pessoa tem o direito de não ter sua inteligência diminuída, de forma que nunca subestimamos os leitores.

Palavras soltas no ar. Provavelmente riram das nossas caras. Porque tudo é feito em nome da promessa do tal ensino-aprendizagem, cuja profundidade das referências que os guiam nós adoraríamos entender. Humanizar, para quem está no topo dessa estrutura, é dar um livro sobre empreendedorismo para quem passar horas por dia alisando penas de avestruz, que servirão de recheio para alguns travesseiros. Tudo muito coerente com as palavras recentes do Ministro Paulo Guedes, sobre a taxação dos livros que pretende ver aprovada: se quem compra livro é a elite, ela pode pagar mais. Para os pobres, os livros serão dados. Quais livros, Ministro? Quem decide quais livros os pobres irão ler? Trata-se, na verdade, de um projeto de ceifar até mesmo o direito à escolha. Trata-se de um projeto perverso de manipulação dos mais vulneráveis. Dar a quem nada ou quase nada tem apenas as migalhas. E migalhas escolhidas pela tal elite. Se estivéssemos lidando com pessoas pelo menos bem intencionadas, valeria indicar a leitura do ensaio “O direito à literatura”, do Professor Antonio Candido. Mas são pessoas mal intencionadas e que não conseguirão nem mesmo entender o que está escrito.

Talvez tenham ciência do poder transformador da literatura. E talvez tenham mesmo é medo de ler reflexões como essa do Rodolfo, colocada em uma resenha do livro O sol é para todos, da Harper Lee: “lendo O sol é para Todos percebi que fui vítima de racismo a vida toda. Pedi para as minhas filhas comprarem o livro e lerem para que a história delas seja diferente”. Ou medo de depoimentos como o da Lúcia, que na rodada do clube de leitura sobre o livro Assim na Terra como embaixo da Terra, da Ana Paula Maia, nos trouxe uma reflexão profunda sobre a diferença de se cometer um delito e ser cruel e exercer o domínio e praticar a tortura. Ou da resenha do Luís, sobre o livro As montanhas de Buda, do Javier Moro, que destacou que a leitura lhe trouxe conhecimento histórico sobre a China e o Tibet e o deixou impressionado com a travessia que as monjas fizeram, o que fortalecia sua própria travessia. Por fim, lembramos do comentário do João Antonio, que ao abordar a narrativa do cubano Leonardo Padura, mencionou que o livro o levou à empatia com o transexual da trama, pois até então ele nunca havia pensado na dor dessas pessoas.

O programa Remição em Rede não tem medo da potência do ser humano. Pelo contrário, acredita nele. Uma sociedade só será minimamente justa e igualitária se der condições para que todas as pessoas desenvolvam seus potenciais. E isso só se consegue com confiança na capacidade de aprendizado do ser humano. Exatamente o contrário do que quer um grupo de pessoas desejosas de um Estado autoritário e cerceador.


Imagem: Cena do filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, 1966.


Notas

  • 1
    Não vamos entrar aqui no cenário desolador nos presídios em tempos de pandemia. Cabe uma outra reflexão longa, um protesto, uma mobilização social, frente ao cenário de genocídio.
  • 2
    Sobre os critérios de análise de resenhas do Remição em Rede leiam “Na dúvida, sim” de Janine Durand.

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Autores

  • Janine Durand

    Janine Durand é educadora e fundadora da Jnana Consultoria. Responsável por implementar mais de 150 clubes de leitura pelo Brasil, é articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede e articulista da Revista Emília.

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  • Luciana Gerbovic

    É advogada e sócia da Escrevedeira Centro Cultural Literário, em São Paulo. Há mais de 10 anos atua como mediadora de clubes de leitura e facilitadora na formação de leitores e mediadores de leitura. Com Janine Durand, é articuladora do programa Remição em Rede.

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