Literatura precisa “servir para”? O papel da maldade nos livros que as crianças leem

Post Author
renatapenzani@emilia.com Penzani Renata

“A criança-que-brinca se defende como pode dessa literatura edificante”. Foi Gianni Rodari, o eterno adulto-que-deu-certo, nos termos dele próprio, quem escreveu essa citação. O que ela nos diz sobre o cenário das produções para as infâncias neste século 21? Se incluíssemos aí linguagens tão distintas quanto o cinema, o teatro, a música, este texto provavelmente nunca chegaria ao ponto final. Escolhemos aqui nos ater, então, à literatura (perceba que, em um mundo ideal, dizer “literatura” bastaria).

O que podemos chamar de censura às histórias (faladas, escritas ou ilustradas) de recepção infantil não começou hoje, e parece existir desde que a primeira palavra, vírgula ou travessão ousou se dirigir à crianças como interlocutoras. No Brasil, temos, sem dúvida, coleções de momentos de virada, em que um possível moralismo disfarçado de proteção à infância foi vencido por produções artísticas capazes de ultrapassar limitações de discursos dominantes.

São testemunho de uma potência ativa – que, graças à capacidade inventiva da rede do livro no país – é mais criação do que mera reação – os movimentos de reconhecimento de autoria do ilustrador como autor, as iniciativas de coletivos de produção e pensamento sobre a literatura infantil, o levante de editoras frente a regras de mercado impraticáveis, à perda de direitos básicos ou a tentativas de inviabilizar a circulação de bibliodiversidade na educação brasileira, como ocorreu recentemente, com a recusa do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) por parte do Governo do Estado de São Paulo.

Assim, um resumo possível é que, apesar de observarmos avanços expressivos – muitos deles também fruto de mobilização da própria sociedade civil – temos presenciado tentativas de desmonte de um ideário pluralista para as literaturas e as infâncias. Livros e autores são proibidos em escolas, temas considerados tabu deixam de estar nas páginas de produções atuais, artistas são banidos em suas expressões. Nessa toada, crianças leem o mundo enviesado pelo pior do olhar adulto.

Como disse também Rodari, “a literatura infantil é um dos veículos da ideologia das classes dominantes”. Se na sua origem, na Europa do século XVII, os livros “infantis” pareciam se dirigir a uma criança meramente escolar e por isso mesmo artificial e ilusória, o que assistimos hoje se assemelha, em muitos aspectos, àquela abstração irreal das infâncias. “A própria literatura infantil nasce (também) no bojo de movimentos, podemos dizer, aliados a algum tipo de censura, cerceamento e controle. Afinal, a partir do momento em que nós, adultos, escolhemos o que as crianças podem ou devem ler ou não, já não estamos de certa forma exercendo censura e controle?”, reflete a pesquisadora Ana Carolina Carvalho, no texto Agora é Road Dahl, e agora?, publicado na Revista Emília.

É provável que surja deste cenário, mistura tanto de evoluções conquistadas à unha quanto de retrocessos acachapantes, uma série de implicações preocupantes ao teor temático das narrativas contemporâneas. Nesse sentido, cada país, cada contexto social e político, se defende como pode dos problemas que atravessam o caminho dos leitores. Problemas que, no Brasil, são da ordem do acesso, do direito à leitura, mas também da parcela artística de uma produção muitas vezes limitante – justamente porque limitada.

A La Revue des livres pour enfants, revista do Centro Nacional de Literatura Infantojuvenil da BnF (Biblioteca Nacional Francesa), dedicou, recentemente, um volume inteiro a discutir uma possível “extinção da maldade” nos livros para crianças e jovens. “Os malvados, uma espécie em extinção?” (no original, Les méchants, une espèce menacée?), diz o título da reportagem de capa. “O que vem nesta interrogação é se a maldade está ameaçada nos livros infantis”, questiona o texto da edição 330, publicada em maio de 2023. O material é composto por um dossiê que avalia o tema do ponto de vista de artistas, editores e pesquisadores do livro, e até da psicologia.

Comentando o texto da Revue, a pesquisadora Ana Garralón endossa a opinião do professor Vincent Jouve, um dos autores do dossiê, para quem “sem um vilão, não haveria nada para contar”. “Sim, o mal está extinto na LIJ. Falsidade, imoralidade, crueldade e, portanto, ambiguidade, obscuridade e complexidade estão desaparecendo do domínio da leitura infantil”, diz Garralón em uma newsletter publicada em agosto de 2023.

Para Jouve, a persona do vilão facilita muito a presença das emoções. “Uma história fictícia pode capturar quase toda gama de emoções conhecidas: tristeza, alívio, angústia, satisfação. (…) há três grandes emoções estruturalmente evocadas pela narrativa que todo leitor espera experimentar quando mergulha em uma ficção: a surpresa, o suspense e a curiosidade. Essas emoções narrativas, que compõem o lado emocionante da história, são rigorosamente programadas pelo texto na medida em que dependem da informação entregue ao leitor, diante do desfecho incerto de uma situação conhecida: a curiosidade é gerada por informações insuficientes”.

Para além do que chamamos de “cânone literário”, que nos dá a ler algumas obras consideradas hoje despudoradas ou imorais, como Road Dahl, Maurice Sendak e Astrid Lindgren, parece pertinente olhar para o cenário que está dado hoje e indagar onde estão os livros que não ensinam nada. Que não querem ensinar nada. Histórias que podem ser como a vida sempre é: caótica, imprevista, descontrolada, absurda. Nas palavras de Garralón: “Pessoalmente, eu adoro os personagens maus: são arquétipos que abalam uma história pacífica (…). Eles lembram que o mal está presente em suas múltiplas dimensões e prometem figuras ambivalentes, transgressoras e que abrem questões. Em qualquer manual de redação que se preze, é um ingrediente inevitável.”

Vale ponderar que, no bojo das tais ficções imorais, é claro que não incluímos narrativas ofensivas para qualquer grupo cultural, que precisam sim ser revistas. Só há multiplicidade saudável quando todas as possibilidades de vida – existentes ou inexistentes – são narradas em toda sua plenitude, e isso inclui contemplar a maldade e a perversidade humana sem falsear qualquer tipo de pretensa perfeição.

Em um livro recentemente editado no Brasil, Somos mesmo todos censores? (Solisluna/Selo Emília, com tradução de Lenice Bueno), o pesquisador Perry Nodelman nos leva a pensar que a relação adulto-criança passa por um certo cinismo de aplacar a violência do mundo; na verdade, as crianças (de fato, qualquer outro indivíduo) se beneficiariam justamente do contrário: por saber que a vida pode ser cruel, os adultos poderiam tratar de ampará-las em ferramentas emocionais para lidar com essa realidade. “Rejeitamos livros com base na ideia de que eles podem ensinar a elas [às crianças] algo sobre o que nós mesmos já sabemos, mas que não desejamos que elas saibam de jeito algum”.

É certo que as histórias indecorosas continuam existindo – no pior dos casos, ao menos na cabeça dos escritores e ilustradores. Porém, elas circulam? Se circulam, são lidas? Se são lidas, são aceitas e difundidas, ou amaciadas e maquiadas a partir de ideais abstratos de comportamento e expressão? Questões como essas não são mera retórica, mas sim um exercício político de observação crítica da realidade – como escreveu a poeta Wislawa Szymborska, “somos filhos da época e a época é política”. Se é bem improvável a nós, adultos, escaparmos disso, não podemos esperar que seja diferente com as crianças.

Voltamos, então, à provocação de Rodari que inicia este texto. Se a infância (e aqui propositalmente escolhemos o singular do substantivo, pois falamos de “infância” enquanto período cronológico) precisa se defender de literaturas feitas para “edificar”, alternativas devem existir. Quais são os livros onde as crianças brasileiras deste século 21 se refugiam quando o mundo fica imperativo demais, exemplar demais, adulto demais? Quais são as histórias que realmente chegam aos leitores?

Como a escritora Susana Ventura declarou nesta entrevista recente ao Blog da Letrinhas, nem todos os livros têm a sorte de uma curva ascendente, pois há muitos aspectos que podem impactar na duração de uma obra ou autor. “Sobreviver ao tempo e ser reeditado e relido são determinados por muitos fatores, e nem sempre o que sobrevive e está no cânone é o melhor que foi produzido”, ela pontua.

Autores como o quadrinista Dav Pilkey, que passam ao largo de processos de adoção de livros pelas equipes pedagógicas, circulam pelas mãos das crianças como se fossem coisa proibida. Quem convive com crianças hoje, provavelmente já escutou alguma história sobre essa conexão, não referendada pelos adultos, e celebrada pelos pequenos. Humores de tipos diversos, personagens maus, sarcasmo, contradições: tudo isso povoa a literatura do autor de algumas das séries literárias mais vendidas do mundo: Capitão Cueca, O Homem-Cão e o Pepezinho. O caso nos leva a uma questão relevante: quais são os livros que as crianças buscam por si mesmas?

No texto Quando o pensamento se faz palavra, a pesquisadora Luisa Mattia reflete sobre o aspecto incapturável da infância, ao dizer que “as crianças são pessoas muito interessantes. São complexas, leves e profundas ao mesmo tempo (…) fabulando a vida, são tendencialmente anárquicas”. De forma aproximada, o escritor Jean de La Bruyère escreveu algo que parece cabível para sintetizar o convívio involuntário das contradições de que são feitas todas as pessoas – ou seja, também as crianças. “As crianças são altivas, desdenhosas, iradas, invejosas, curiosas, interessadas, preguiçosas, volúveis, tímidas, intemperantes, mentirosas, dissimuladas; riem e choram facilmente; têm alegrias imoderadas e aflições amargas sobre assuntos mínimos; não querem sofrer o mal e gostam de fazê-lo; já são homens”.

Nesse cenário em que tanto se faz para a manutenção de infâncias anódinas, alheias de seu próprio direito a uma complexidade de emoções, é permitido aos personagens contemporâneos que habitam os livros em diálogo com crianças e jovens espelharem (e espalharem) a característica essencialmente paradoxal da alma humana? A ficção atual é uma caixa de ressonância de que já somos capazes de ultrapassar os binarismos entre o bem e o mal, o certo e o errado, isto ou aquilo? Colocar essas perguntas em movimento é cuidar para que as crianças possam se referenciar em narrativas tão insondáveis e inclassificáveis quanto a vida é, e vai continuar sendo.

Imagem: Maja Lindberg

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Renata Penzani

    Pesquisadora, escritora e jornalista. Autora do livro de poemas "Maracujá" (Laranja Original, 2023) e do romance infantojuvenil "A coisa brutamontes" (Companhia Editora de Pernambuco, 2018), ganhador do Prêmio Cepe Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (2019), finalista do Prêmio Jabuti na categoria Juvenil e selecionado para o catálogo da Feira do Livro Infantil de Bolonha (2019). Mestre em Estudos da Linguagem, com foco em literaturas transetárias, pela UFRPE.

    renatapenzani@emilia.com Penzani Renata

Artigos Relacionados

Entre o céu e o chão

BarbaraPassos@revistaemilia.com Franceli Passos Bárbara

A realidade do fantástico

marcelacarranza@revistaemilia.com Carranza Marcela

A literatura como discurso artístico

rodolforodrigues@emilia.com.br Rodrigues Pontes Rodolfo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *