Triz e também as histórias que ficaram em mim

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Não tenho como não começar esse pequeno texto sobre Triz falando de minha relação com este autor de literatura infantil, o Leo Lionni. Isso porque especialmente este autor habitou os anos  de minha infância, pelo simples fato de que dois livros seus, Teodoro y el hongo parlante e El ratón colaverde, presenteados por meus tios depois de uma viagem a Buenos Aires foram uma das melhores coisas que li quando criança. Tenho os livros até hoje, um tanto gastos e precisando de uma recauchutagem (ainda os levarei para uma reforma, até porque não tenho como repô-los em edição brasileira e contemporânea – alô, editoras, que tal publicá-los por aqui?). Devo confessar que apenas um deles me foi dado de presente, o outro era do meu irmão mais velho e eu simplesmente fiquei com ele, dado o impacto deste livro na minha vida de leitora iniciante.

Falo do impacto, porque ele perdura de tal modo, que me lembro das impressões que tive ao lê-los, do quanto essas impressões ficaram em mim, do modo como me diziam coisas importantes, que tinham a ver com a minha existência, como meus temores, mas também om minha potência. Foi tudo tão fortemente experimentado que até hoje a leitura de qualquer livro do Leo Lionni me leva para aquelas leituras iniciais. Não teria como escrever sobre qualquer livro deste autor sem mencionar essas experiências iniciais de leitura que permanecem tão fortes. De outro modo estaria me traindo como leitora.

Beatriz Helena Robledo, em artigo para a revista Emília 1https://emilia.org.br/avaliacao-e-selecao-de-livros/, ao tratar da avaliação e seleção de livros fala do efeito de duração que uma obra pode causar no leitor. Ela explica: “Não é o tempo da obra, nem o tempo que demora um leitor para lê-la. É algo que se produz no leitor e que está relacionado com o efeito estético. É dessa maneira que um livro, uma história, um poema, um conto, uma personagem, habita o íntimo do leitor”.

O livro que me foi dado – Teodoro e y el hongo parlante, ou: Teodoro e o cogumelo falante, trazia o seguinte enredo: Teodoro, um ratinho sem grandes qualidades vivia com outros bichos junto ao tronco de um carvalho. Um belo dia, todos eles gabavam-se de suas qualidades especiais e, quando chegou a vez de Teodoro, não lhe ocorreu dizer muitas coisas, a não ser que sabia correr como ninguém. Isso soou ridículo aos outros, até porque reforçava uma característica do ratinho, que era um medroso contumaz e estava sempre correndo de tudo. Foi assim, correndo de uma simples folha que, ao cair, lhe assustou, que ele descobriu, sem querer, um enorme cogumelo falante. A partir daí, Teodoro, ao se gabar de sua descoberta, aumentando-a e explorando-a ao máximo diante dos amigos, vai da glória à infâmia.  Algo aí me pegava. A falta de qualidades, o medo, a vontade da fama, a mentira, a queda perante os outros. Era forte, fazia pensar, grudava em meus temores da infância (e certamente em meus desejos também).

No caso de El ratón colaverde, O rato do rabo verde, a história também me impactou. Um pouco como o rato do campo e o rato da cidade, essa fábula de Leo Lionni parte da ideia do estrangeiro que traz encantos aos moradores de um pacato bosque. Neste caso, a festa de carnaval, evento desconhecido dos ingênuos ratinhos campestres. Tomados pela vontade de ter uma festa daquelas, os ratinhos resolvem fazer seu próprio carnaval, usando máscaras de animais ferozes como fantasias. O transe da festa é tal que eles se esquecem de suas identidades originais, passando a acreditar que eram mesmo animais ferozes, até o dia em que chega de visita um novo ratinho. Ou seria um rato gigante, do tamanho dos animais ferozes em que elas haviam se transformado? A tênue fronteira entre real e fantasia, o entregar-se perigosamente àquele carnaval, sem freios, também eram aspectos que mexiam comigo. De novo, desejo e medo. Como tinham o que me dizer aqueles dois livros! Eu os lia, mesmo em espanhol, por vezes confundindo palavras e significados. Colaverde foi covarde por um bom tempo, e me fazia sentido também assim, numa tradução particular.

Enfim, tudo isso para chegar no novo livro de Leo Lionni, publicado no Brasil pela editora Livros da Matriz em 2020. Este autor que nos mobiliza e que fala de verdade para a criança – e todos nós – dizendo das coisas que realmente importam: a nossa relação com os outros, os desejos, os medos, a forma como nos vemos, a vontade de ter experiências encantadoras e que nos desloquem, o medo de nos perdemos nelas, a necessidade de ser amado. A literatura como esse espaço de reflexão sobre a nossa condição.

E então, chegamos a Triz. Tudo nele tem sentido de profundezas. Triz é um peixinho mínimo e vive no fundo do mar, correndo os riscos que os animaizinhos pequenos correm no mundo selvagem. As aquarelas e os carimbos de Leo Lionni nos dão uma sensação de mergulho e de movimento das águas – tudo é meio borrado, é móvel. Como se estivéssemos mesmo vendo o fundo do mar, com suas águas e algas, movendo-se lentamente. Triz está sempre com seu cardume de peixinhos como ele, ou talvez nem tanto como ele – são todos vermelhos e ele é o único preto. Aos poucos, vemos que não é apenas a cor que o distingue. Triz movimenta-se mais rápido do que os outros. Talvez não seja só isso. Não apenas a cor ou a rapidez que o distingue dos outros. Mas algo que vai dentro dele, o seu íntimo. E aqui, encontramos a marca de Leo Lionni, especialista em revelar para o leitor aspectos da intimidade humana.

 Aquele peixinho, Triz, tem uma força e é isso o que vai salvá-lo.

Os movimentos suaves do fundo do mar são interrompidos com a chegada brusca e marcada de “um enorme atum que fura as ondas como se fosse um raio”, abalando a paz do cardume. O nosso herói se salva por um triz. Ele é o único, que passa a nadar triste e sozinho pelo oceano. Contudo, a beleza o salva. A poesia que ele encontra no mar, a graça dos bichos, as cores, o movimento das algas. Até que encontra outros peixinhos vermelhos como os peixinhos de seu antigo cardume. O que vai acontecer? Triz quer viver, quer nadar para ver aquelas belezas todas que há no mar. Mas, e os perigos?  Ele tem uma solução. Um jeito especial de nadar e seguir junto. Essa era a força, a sabedoria do pequeno Triz. Sozinho era quase nada. Mas e se juntasse o que ele sabia aos outros peixinhos?

Leo Lionni nos brinda com um bocado de esperança. Queremos ser como Triz. As crianças podem também desejar ser como ele. Além de revelar nossa intimidade, também não é para isso que os livros existem: para que nos apontem caminhos em meio à beleza da literatura? Vivendo a experiência de estar nas profundezas do oceano, mergulhamos nas possibilidades de caminhos e jeitos de se estar na vida, um tanto de mistério, outro tanto de perigo.

E para terminar, quero ainda dizer algumas palavrinhas sobre o projeto gráfico do livro: note como o formato contribui para que o leitor tenha essa experiência de mergulhar nas profundezas. E ainda: a tradução primorosa de Dani Gutfreund, além de imprimir poesia ao texto, nos oferece um novo nome para o peixinho. Triz. “Um quase nada que pode mudar tudo”, segundo o belo texto da tradutora que está na página de créditos. Que ele não passe desapercebido, pois é uma aula de tradução e de leitura dos textos que vêm de longe para a nossa biblioteca.

Indico mil vezes o Triz. E todos os livros do Leo Lionni que você puder encontrar por aí. Triz, Leo Lionni, tradução de Dani Gutfreund. Editora Livros da Matriz

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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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